“As nossas crenças mais justificadas não têm qualquer outra garantia sobre a qual assentar, senão um convite permanente ao mundo inteiro para provar que carecem de fundamento.” John Stuart Mill
domingo, 30 de agosto de 2009
sábado, 29 de agosto de 2009
O antropomorfismo na religião: Deus à imagem e semelhança do Homem
O antropomorfismo é a representação dos deuses, dos animais ou da natureza em geral com características humanas – nomeadamente desejos, emoções e pensamentos. Por exemplo: a crença de que “A Natureza é sábia” é antropomórfica, tal como a representação de Deus como um velho de barbas brancas.
A atribuição de características humanas a seres que não as possuem faz com que essas representações sejam falsas ou fantasiosas.
Não é difícil encontrar elementos antropomórficos nas diversas religiões. Embora em graus diferentes, todas elas representam Deus ou os deuses à imagem e semelhança dos seres humanos. Como disse o filósofo grego Xenófanes (séc. VI-V a. C.), “Julgam os mortais que os deuses foram gerados, que têm os trajes deles, e a mesma voz e corpo.”
Exemplos dados por Xenófanes: “Dizem os Etíopes que os seus deuses são negros e de nariz chato, fazem-nos os Trácios de olhos azuis e cabelos ruivos.”
Outros exemplos: segundo a antiga religião grega os seus deuses apaixonavam-se, casavam, tinham casos extra-conjugais, zangavam-se, etc.; na Bíblia são vários os episódios em que Deus se encoleriza ou em que se ouve a sua voz.
Mas será apenas na religião popular (isto é, no modo como a maior parte dos crentes de uma religião concebe o objecto da sua fé) que existe antropomorfismo?
Julgo que não. Por muito intelectualmente refinados que sejam o conceito de Deus e os argumentos com que os teólogos e alguns filósofos tentam provar a sua existência, subsistem sempre neles alguns vestígios de antropomorfismo.
De acordo com a concepção de Deus que tem mais adeptos (o teísmo), este é omnipotente, omnisciente e, entre outros atributos, é perfeitamente bom. Ora, o conceito de bondade é um conceito claramente humano, ou seja, tem sentido quando aplicado a seres humanos e revela-se inadequado para classificar os animais não humanos e qualquer outra parte da natureza ou mesmo a natureza no seu conjunto (os leões, as flores e as pedras não são nem bons nem maus). É, no mínimo, duvidoso que seja adequado para descrever um ser que se admite ser omnipotente, omnisciente e o criador de tudo o que existe (e, por isso, radicalmente diferente dos outros seres). O teísmo é, portanto, antropomórfico.
Considerações semelhantes poderiam ser feitas a propósito de elementos existentes em muitas religiões: a crença de que Deus quer que o amemos e lhe prestemos culto, a crença de que Deus atende pedidos, a crença de que Deus distribui castigos e recompensas, etc.
Por isso, uma tal ideia de Deus é falsa: ou Deus não existe (tal como não existem o ouriço e o coelho falantes das histórias de Paul Stewart e Chris Riddell) ou existe, mas é um ser diferente da representação antropomórfica feita pelas diversas religiões.
As citações de Xenófanes correspondem, respectivamente, aos Fragmentos Diels 16 e 14, retirados de: Hélade – Antologia da Cultura Grega, 5ª edição, organizada e traduzida do original por Maria Helena da Rocha Pereira, Coimbra, 1990, pág. 121.
O Cartoon é de Daniel Paz.
quinta-feira, 27 de agosto de 2009
O que acrescentaria aos primeiros posts escritos há um ano atrás
Neste mesmo dia, há um ano atrás, coloquei neste blogue os primeiros posts: dois textos (ver aqui e aqui), o primeiro escrito por um filósofo e o segundo por um jornalista.
Ambos expressam ideias essenciais: a valorização da clareza e do esforço permanente de aproximação à verdade, o conhecimento do passado como o único meio de compreender o presente (e ultrapassar assim o provincianismo de tempo característico da nossa época).
A quem escolhe orientar-se por estes ideais cabe a difícil tarefa de os procurar – naturalmente sempre de forma imperfeita e incompleta - alcançar.
Assim, passado um ano e após muitos posts, acrescentaria à leitura dos primeiros dois textos já referidos, este outro:
“Como toda a gente, só disponho de três meios para avaliar a existência humana: o estudo de nós próprios, o mais difícil e o mais perigoso, mas também o mais fecundo dos métodos; a observação dos homens, que na maior parte dos casos fazem tudo para nos esconder os seus segredos ou para nos convencer que os têm; os livros, com os erros particulares de perspectiva que nascem entre as suas linhas (…). A palavra escrita ensinou-me a escutar a voz humana, assim como as grandes atitudes imóveis das estátuas me ensinaram a apreciar os gestos. Em contrapartida, e posteriormente, a vida fez-me compreender os livros.”
Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano, Editora Ulisseia, Lisboa, 1997, pp. 23-24.
Para ouvir filosofando, ou mesmo sem filosofar
Nota: Agradeço ao meu aluno que fez notar, nas sugestões musicais do Dúvida Metódica, uma falha grave: a ausência de canções do Tom Waits.
terça-feira, 25 de agosto de 2009
Os argumentos são mais baratos e, surpresa, mais eficazes!
Segundo o jornal Público, o PS e o PSD tencionam gastar mais de 50 milhões de euros na campanha das eleições autárquicas.
Há objecções óbvias relacionadas com o desperdício de dinheiro que isso constitui, sobretudo numa altura de crise económica. Mas a objecção mais importante não se relaciona com dinheiro. E, se em vez de tentarem convencer as pessoas com a exibição de bandeirinhas e com a oferta de sacos de plástico, os candidatos experimentassem apresentar argumentos? Talvez os eleitores apreciassem ser tratados como seres racionais.
Reler os clássicos: Histórias de Heródoto (2)
Quadro do pintor Georg Baselitz, intitulado Oberon (Remix) de 2005.
Sólon, um famoso legislador ateniense, numa das inúmeras viagens que realizou foi visitar o rei Creso a Sardes. A propósito desta visita Heródoto relata o seguinte:
«À sua chegada, foi hospedado por Creso no seu palácio. Depois, no terceiro e no quarto dia, por ordem de Creso, os servidores passearam Sólon pelos tesouros e mostraram-lhe toda a riqueza e opulência aí existentes. Depois de ter observado e examinado tudo, quando considerou o momento oportuno, Creso perguntou-lhe: “Hóspede ateniense, até nós chegaram muitas vezes relatos a teu respeito, por causa da tua sabedoria e das tuas viagens, como, por amor à sabedoria, tens percorrido toda a terra, levado pela curiosidade. Veio-me agora o desejo de te perguntar se já viste alguém que fosse o mais feliz dos homens”. Interrogou-o dessa forma, na esperança de ser ele o mais feliz de todos, mas Sólon, sem qualquer lisonja e com sinceridade, responde: “Sim, ó rei, Telo de Atenas”. Surpreendido com a resposta, Creso perguntou com interesse: “Porque julgas que Telo é o mais feliz?” E ele explicou: “Natural de uma cidade próspera, por um lado, teve filhos belos e bons e de todos eles viu nascerem filhos e todos permanecerem com vida; por outro lado, depois de gozar uma vida próspera, para o nosso meio, teve o mais brilhante termo de vida. Declarada guerra pelos Atenienses contra os seus vizinhos de Elêusis, ele ocorreu em auxílio, provocou a fuga dos inimigos e morreu da forma mais gloriosa. Os Atenienses sepultaram-no com exéquias públicas no próprio local em que tombou e tributaram-lhe grandes honras.”
“ (…) Ora, no longo tempo de uma vida, há ocasião para ver e padecer muitas coisas que uma pessoa não queria (…). É necessário ver o fim de cada coisa e como se vai concluir. É que a muitos deixa o deus a felicidade e depois os abate sem apelo”.
Ao falar assim, Sólon não agradou nada a Creso e foi despedido, sem dele receber qualquer palavra. Considerava grande estultícia que alguém, sem ter em conta os bens presentes, aconselhasse a observar o fim de cada coisa».
Heródoto, Histórias (livro 1º), Lisboa, 1994, Edições 70, pp. 74-77.
Estas duas concepções opostas de felicidade - de Creso e Sólon – continuarão a dizer-nos alguma coisa?
Ou estarão, do ponto de vista histórico, completamente ultrapassadas?
segunda-feira, 24 de agosto de 2009
Explicação matemática da ‘aposta de Pascal’
Blaise Pascal era um filósofo e matemático francês que, no século XVII, argumentou a favor da existência de Deus recorrendo à ideia de “aposta” – a aposta de Pascal. No post Deus existe ou não? Vai uma aposta? encontra uma explicação simples e sumária desse argumento. Pascal formulou o argumento em termos matemáticos, como explica Leonard Mlodinow.
“Pascal fez uma análise pormenorizada dos prós e dos contras do dever para com Deus como se estivesse a calcular matematicamente a sensatez de uma aposta.
A sua grande inovação foi o método de pesar estes prós e contras, um conceito a que se dá hoje o nome de esperança matemática.
A esperança matemática é um importante conceito, não só nos jogos de azar como na tomada de decisões. Com efeito, a aposta de Pascal é muitas vezes considerada a fundação da disciplina matemática da teoria dos jogos, o estudo quantitativo das estratégias de decisão óptimas nos jogos.
O raciocínio de Pascal era o seguinte. Admitamos que não sabemos se Deus existe ou não, e, por conseguinte, atribuamos uma probabilidade de 50% para cada uma das proposições. Como pesar esta probabilidade na decisão de levar ou não uma vida piedosa? Se vivermos piedosamente e Deus existir, argumentava Pascal, o nosso ganho – a felicidade eterna – é infinito. Se, por outro lado, Deus não existir, a nossa perda, ou lucro negativo, é pequena – os sacrifícios da piedade. E, para pesar estes possíveis ganhos e perdas, Pascal propunha que se multiplicasse a probabilidade de cada resultado possível pela sua recompensa e se somasse tudo, formando uma espécie de recompensa média ou esperada. Por outras palavras, a esperança matemática do nosso lucro com a piedade é metade de infinito (o ganho se Deus existir) menos metade de um número pequeno (a nossa perda se Ele não existir). Pascal sabia o suficiente sobre o infinito para saber que a resposta deste cálculo era infinito, pelo que o lucro esperado com a piedade é infinitamente positivo. E assim, concluiu Pascal, qualquer pessoa sensata deve seguir as leis de Deus. Hoje, chama-se a este argumento a aposta de Pascal.”
Leonard Mlodinow, O Passeio do Bêbado, Editorial Bizâncio, Lisboa, 2009, pág. 92.
(Clique no nome do livro se quiser obter informações úteis acerca do mesmo.)
sexta-feira, 21 de agosto de 2009
O que é a ideologia?
Por vezes lamenta-se que haja cada vez menos ideologia na política, substituída pelo pragmatismo e pela mera defesa dos interessas próprios – subentendendo-se, portanto, que a ideologia é uma coisa boa.
Muitas outras vezes a palavra é utilizada num sentido claramente negativo, como quando se diz “George Orwell não é um escritor ideológico” (aqui) ou “O ‘eduquês’ é uma ideologia pedagógica que promove a desigualdade social”.
No primeiro caso considera-se que uma ideologia é um conjunto de ideais e princípios, ou seja, ideias acerca do modo como as coisas deveriam ser, nomeadamente na política. Por exemplo: o socialismo e o liberalismo são ideologias políticas. Dito por outras palavras: “qualquer sistema abrangente de crenças, categorias e maneiras de pensar que possa constituir o fundamento de projectos de acção política e social é uma ideologia: um esquema conceptual com uma aplicação prática.” (Simon Blackburn, Dicionário de Filosofia, Gradiva, Lisboa, 1997, pág. 219.)
No segundo caso considera-se que uma ideologia é um conjunto de preconceitos, de ideias anteriores à experiência e à análise crítica e racional e que, nas palavras de Simon Blackburn, funcionam como “uma espécie de óculos que distorcem e dissimulam” a realidade. Nessa acepção, a ideologia leva a ajustar os factos à teoria e não a teoria aos factos, ou seja, é uma maneira de pensar que deturpa e ilude.
Para explicar de modo mais completo a relação entre as duas utilizações da palavra seria necessário invocar as ideias de Karl Marx e de Friedrich Engels. Em vez disso, faço apenas notar que nem sempre é óbvio se estamos perante a ideologia no primeiro ou no segundo sentido.
Sucede por vezes que os adversários de uma ideologia no primeiro sentido (por exemplo, alguns socialistas quando criticam o liberalismo ou alguns liberais quando criticam o socialismo) a tentam reduzir ao segundo sentido (incorrendo por isso na falácia do homem de palha).
Por vezes são os próprios defensores de uma ideologia a fazer essa redução do primeiro ao segundo sentido: agarram-se tão cega e teimosamente aos seus ideais que estes se tornam meros preconceitos - ideias cristalizadas incapazes de explicar o mundo e as suas mudanças, repetidas com convicção e paixão mas de modo acrítico.
Wiley Miller, neste genial cartoon (“A invenção da ideologia”, tirado daqui), refere-se claramente à ideologia no segundo sentido. A legenda poderia ser: “A marca segura de ideologia, tanto na ciência e filosofia como na política, é a negação de factos óbvios.” (Colin McGinn, Como se faz um filósofo, Bizâncio, Lisboa, 2007, pág. 63.)
Agora que, em Portugal, se aproximam dois actos eleitorais bastante importantes, talvez valha a pena pensar na distinção entre a ideologia como conjunto de ideais e princípios e a ideologia como conjunto de preconceitos. Basta folhear os jornais ou ligar a TV para perceber que há muitos factos óbvios que andam a ser negados. Em nome de elevados ideais e princípios, claro.
Se clicar no nome dos livros poderá obter mais informações acerca deles.
quinta-feira, 20 de agosto de 2009
quarta-feira, 19 de agosto de 2009
Silly season chega à filosofia
«Filósofo suíço está a escrever um livro no aeroporto de Heathrow. Para escrever o novo livro, Alain De Botton, autor de "A arte de viajar" e "Como Proust pode mudar tua vida", tornou-se residente desse aeroporto, o de maior tráfego na Europa.»
O livro chamar-se-à "Uma semana no aeroporto: Diário de Heathrow". Vamos aguardar para saber se haverá alguma filosofia no livro ou se esta se ausentou. De avião.
Clique aqui se quiser informar-se melhor acerca desta patetice.
Reflectir sobre a arte: três sugestões
Para fugir do imenso calor lisboeta pode-se procurar refúgio em Museus: locais de temperatura aprazível e sem grandes ajuntamentos.
Encontra-se, temporariamente, no Museu Gulbenkian uma exposição do pintor Henri Fantin-Latour (1836-1904) que vale mesmo a pena ser visitada (para mais informações ver aqui e aqui).
Destaco, dos quadros expostos, A Leitura (1870, Óleo sobre tela, 95 x 123 cm).
Outro local visitável é o Museu Berardo (no Centro Cultural de Belém), nomeadamente a exposição Arriscar o real, onde poderá apreciar, além da obra apresentada na imagem seguinte, objectos como cortinas, telas pintadas de uma só cor, por exemplo.
Após a experiência de contactar, nos dois museus, com objectos tão distintos – todos eles designados como “obras de arte” - pode-se colocar a questão:
Qualquer objecto pode ser uma obra de arte ou deverá possuir determinadas características para ser assim considerado?
Para ajudar a responder a esta pergunta filosófica e a muitas outras (sem o discurso pretensioso que, por vezes, é adoptado por quem trata estes assuntos), sugiro a leitura do livro: O que é a arte, de Nigel Warburton, da Editora Bizâncio (para saber mais clicar aqui).
segunda-feira, 17 de agosto de 2009
domingo, 16 de agosto de 2009
7º encontro nacional de professores de Filosofia
A organização do encontro é da Sociedade Portuguesa de Filosofia, em colaboração com a Escola Secundária Alves Martins, de Viseu.
Mais informações no Crítica: blog. Pode consultar o programa aqui.
Os temas das conferências, comunicações e workshops dizem respeito à Filosofia da Religião e à Didáctica da Filosofia.
Um dos conferencistas será o filósofo Richard Swinburne, autor do livro Será que Deus Existe?, editado pela Gradiva. No site Filosofia e Educação pode ler um texto desse filósofo (intitulado ‘Argumentos do desígnio’), em que este defende que temos boas razões para admitir que Deus existe. A conferência de Richard Swinburne intitular-se-á ‘God and Morality’.
Apologia dos exames e da exigência
Recentemente foram publicados no blogue De Rerum Natura três textos imprescindíveis acerca da importância dos exames e da exigência no ensino:
Sobre os exames, de Miguel Galrinho.
Exames e igualdade, de Helena Damião (com extensa citação de D. Schwanitz, que analisa a situação na Alemanha).
O difícil exame para corrermos o risco do futuro, do sociólogo italiano Francesco Alberoni.
Um dos aspectos presentes nesses três textos é a refutação da ideia absurda (mas muito cara ao “eduquês”) de que os exames promovem a desigualdade social.
Eis algumas linhas do texto de Alberoni, para abrir o apetite:
“A vida, na sua essência, na sua estrutura, é projecto e risco. Há sempre um momento em que ficamos suspensos à espera (...). Não compreendo os pedagogos que pretendem acabar com os exames nas escolas. O exame é parte integrante da educação. Não compreendo os pais que pretendem evitar esse stress aos filhos. Viver significa prever, calcular, dominar o stress.”
domingo, 9 de agosto de 2009
Raul Solnado: “Sff, minha senhora, é aqui que é a guerra?”
O actor e humorista Raul Solnado faleceu sábado de manhã no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, aos 79 anos. O funeral foi hoje em Lisboa. Segundo o jornal Público, quando o carro funerário chegou à entrada do cemitério dos Olivais várias centenas de pessoas bateram palmas. Merecidas, sem dúvida!
Aires Almeida publicou, no Crítica: blog, um texto chamado A natureza do humor em que esboçou as “três principais teorias filosóficas sobre a natureza do humor: a teoria da superioridade, a teoria da incongruência e a teoria da libertação”.
Leia o texto e tente classificar o humor de Raul Solnado, nomeadamente o humor do genial sketch “A guerra de 1908”, que pode ouvir no vídeo – superioridade, incongruência ou libertação?
Castigar porquê?
Perante notícias de crimes, como por exemplo os assassinatos perpetrados pela organização terrorista ETA, as pessoas pensam imediatamente que os responsáveis devem ser castigados e esperam que o Estado o faça – prendendo os criminosos ou, nalguns países, condenando-os à morte. Raramente se interrogam acerca da justificação do castigo.
Que razões podem ser dadas para justificar que se subtraia a liberdade (ou a vida, no caso da pena de morte) ou que se imponha outra pena qualquer (multas, trabalho comunitário, etc.)?
Os filósofos têm tentado justificar o castigo pelo Estado de pessoas que cometem crimes com base em quatro ideias principais, defendendo uma delas ou combinando-as umas com as outras de diversos modos.
A retribuição. Aqueles que violam a lei merecem o seu castigo, independentemente de existirem ou não quaisquer consequências benéficas para eles ou para a sociedade.
A dissuasão. A existência de castigos desencoraja a violação da lei, quer pela pessoa que é castigada, quer pelas outras que sabem que o castigo existe e que lhes será aplicado se violarem a lei.
A protecção da sociedade. Os castigos permitem defender a sociedade das pessoas que têm tendência para violar a lei, pois limitam a reincidência.
A reabilitação. Os castigos permitem muitas vezes reabilitar os criminosos, na medida em que os conduzem ao arrependimento e a mudanças no seu carácter, fazendo assim com que não voltem a cometer crimes. (No caso da pena de morte claro que não existe possibilidade de reabilitação, o que de resto constitui uma das objecções contra a pena capital.)
Todavia, todas essas hipóteses podem ser alvo de diversas críticas e contra-exemplos. Eis alguns exemplos. O retributivismo é demasiado parecido à vingança (ao “olho por olho dente por dente”) para ser justo. A dissuasão não funciona no caso de muitos criminosos, que cedem a impulsos irracionais. Nem a necessidade de proteger a sociedade nem a reabilitação permitem justificar todos os castigos, pois há crimes pontuais (por exemplo certos assassinatos por motivos amorosos) em que as probabilidades de reincidência são muito baixas e em que as pessoas que cometem esses crimes não precisam de ser reabilitadas.
No que diz respeito ao caso específico da pena de morte é preciso sublinhar que esta levanta outros problemas, uma vez que se trata de tirar uma vida. (Relativamente a esses problemas o leitor pode encontrar diversos posts na etiqueta “Pena de morte”.)
Claro que a dificuldade de justificar filosoficamente o castigo, ou pelo menos de encontrar uma justificação aplicável a todos os casos, não faz desaparecer a necessidade da sua existência. Uma sociedade em que o Estado não sancionasse a violação da lei não seria certamente uma sociedade segura.
(Há outro post no Dúvida Metódica sobre este assunto: veja aqui.)
Parte do texto é uma adaptação de alguns parágrafos do excelente livro de Nigel Warburton: Elementos Básicos de Filosofia, 2ª edição, Gradiva, Lisboa, 2007, pp. 135 e ss.
Se clicar no nome e na capa do livro poderá obter mais informações acerca dele.
Sofista ou surfista?
A Surfista, fotografia de Gustavo Moreira Tavares (tirada daqui).
Os sofistas - pensadores gregos, cujos nomes mais conhecidos são Górgias e Protágoras – foram os primeiros a reflectir sobre o poder persuasivo da palavra. Foram também educadores: ensinavam aos cidadãos gregos a retórica, preparando-os assim para participar na vida política da polis.
No Fédon, Platão atribui, por intermédio de Sócrates, as seguintes características aos sofistas: “(…) é mesmo o filósofo que vos fala, aquele que ama o saber, e não um desses homens sem sombra de cultura, que amam apenas o triunfo das suas teses! Refiro-me aos que, em qualquer tipo de discussão, relegam para segundo plano a natureza real das questões a tratar, e se empenham exclusivamente em convencer os seus ouvintes das opiniões que eles mesmos sustentam (…).”
Destes pensadores, além das referências efectuadas por filósofos posteriores, não chegaram até nós mais do que fragmentos dos escritos originais. Como por exemplo este, da autoria de Górgias (séc. V a. C): “Nunca me falta assunto num discurso”.
A má fama, talvez injusta, que a palavra “sofista” adquiriu – sinónimo de manipulador, daquele que, numa discussão, não olha a meios para alcançar os seus fins – tem em Platão um dos seus principais responsáveis.
Do ponto de vista platónico, o sofista é, por oposição ao filósofo, aquele que pretende convencer o auditório, independentemente da verdade. Assim, em vez de procurar persuadir de forma racional e lógica, recorre a todo e qualquer tipo de subterfúgios. Se necessário utiliza argumentos intelectualmente desonestos, que nada têm a ver com a discussão do assunto em causa, como por exemplo o ataque às características pessoais do interlocutor, o apelo aos sentimentos do auditório, o uso de ameaças, a utilização da autoridade de forma ilegítima, entre muitos outros (designados em Filosofia por falácias informais).
Uma das principais objecções de Platão às ideias dos sofistas prende-se com o facto destes defenderem o relativismo (Protágoras afirmou “o homem é a medida de todas as coisas”). A ideia que a verdade depende do ponto de vista de cada um e, por isso, não existe uma verdade objectiva que possa ser partilhada por todos.
Platão, no diálogo intitulado Górgias, levanta algumas objecções à perspectiva relativista. Se fosse correcta, como se poderia distinguir o verdadeiro do falso? Que sentido faria as pessoas discutirem, se nenhuma opinião poderia ser considerada errada, por mais absurda que fosse? Se cada um possui a sua verdade para quê trocar argumentos? Que valor teria a procura do conhecimento?
Platão conclui que a troca de argumentos só faz sentido no pressuposto de que não estamos condenados ao domínio da subjectividade - não vivemos no reino das opiniões, argumentamos racionalmente para nos tentarmos aproximar da verdade.
Estas considerações vêm a propósito de notícias recentes relativas à vida política portuguesa: a apresentação das listas e dos programas eleitorais dos vários partidos. Percebi, de súbito, devido a este estímulo exterior, o significado de um erro cometido por alguns dos meus alunos ao escreverem surfista em vez de sofista.
Como é que se pode confundir a arte de bem falar com a arte de usar a prancha?
Uma forma possível de explicar este equívoco linguístico é: os sofistas ao abdicarem da procura da verdade e ao recorrem a qualquer meio para alcançar as suas conveniências pessoais – como frequentemente observamos entre os políticos – estão, tal como os surfistas, a cavalgar a onda.
Existem afinidades que nem sempre são evidentes…
Nota: A citação de Platão foi retirada do seu livro Fédon, Lisboa Editora, 1997, pág. 87.
sexta-feira, 7 de agosto de 2009
De manhã, à tarde ou à noite: quem sou eu?
A MINHA TARDE
Disponho do vento disponho do sol disponho da árvore
arranjo pássaros arranjo crianças
tenho mesmo à minha disposição o mar
talvez com tudo isto possa formar uma tarde
uma tarde azul onde me possa refugiar
Mas e as ideias as doutrinas os problemas?
Se nem resolvi o problema da unha do dedo mínimo
como pretender ter resolvido o mínimo problema?
E as ideias que só servem para dividir?
As ideias têm números inúmeros
e é difícil caminhar na multidão
Podia dizer (mas não me deixa descansado):
Sou novo. Tenho por isso a razão pelo meu lado
Deixai os pássaros cantar as crianças brincar
o tempo não urge o coração não arde
Quem sou eu? Eu só e a minha tarde
As crianças com as suas vozes brancas
riscam alegremente o céu azul
passam as aves em seu voo rasante
desde Sá de Miranda a Jorge de Sena
E o tempo passa assim. Sou eu e o passado
Era novo. Não tenho a razão pelo meu ladoRuy Belo, Homem de Palavra(s)
Fotografias de Gérard Castello-Lopes.
quinta-feira, 6 de agosto de 2009
quarta-feira, 5 de agosto de 2009
Deus existe ou não? Vai uma aposta?
Enquanto empurrava o neto no baloiço uma senhora idosa ia conversando com uma senhora mais jovem.
- O que tu precisas, filha, é de Deus e não de comprimidos e psicólogos. Nem de cigarros, já agora.
- Quem a ouvisse pensaria que basta acreditar em Deus para os problemas desaparecerem. Seja como for, eu não acredito…
- Então começa a acreditar!
- Mas, mãe, como é que…
- O que tens a perder? Começa a acreditar… Reza, vai à missa, lê a Bíblia. Curas a depressão e ganhas a felicidade eterna.
- Não é assim que as coisas se passam. As pessoas não decidem acreditar: acreditam ou não acreditam, independentemente de quaisquer decisões.
- Porquê? Como te disse, não tens nada a perder. Repara: se acreditares em Deus e ele de facto existir estás do lado certo, por assim dizer. Ganhas a aposta, percebes?
- Aposta?
- É uma maneira de falar, Maria Francisca. Se Deus afinal não existir… Bem, paciência. Mas a confiança e a tranquilidade dadas pela fé já ninguém tas tirará.
Como resposta a Maria Francisca abanou a cabeça e acendeu um cigarro.
- Se há alguma coisa que eu sei, filha é que Deus existe. Mas não interessa o que eu sei. Exista ou não exista, ganhas em acreditar.
- Não percebo como é que uma pessoa tão religiosa como a mãe pode defender uma ideia dessas. Parece um negócio: arranjar fé porque dá lucro. Se Deus existe e é tão sábio e bondoso como a mãe acredita que é, aposto que não fica nada satisfeito com as pessoas que fazem isso… Esta aposta parece-me bem melhor que a outra.
Maria Francisca riu-se ao dizer estas últimas palavras. Não ouvi a resposta da mãe, pois acompanhei a retirada do meu filho do baloiço para o escorrega. Enquanto tentava acompanhar os seus rápidos passinhos, procurei recordar as palavras do filósofo e matemático francês Blaise Pascal (certamente um desconhecido para as duas senhoras) que, no século XVII, argumentou a favor da existência de Deus recorrendo à ideia de “aposta” – a aposta de Pascal.
“Deus existe ou não existe. Mas para que lado nos vamos inclinar [nós que somos tão imperfeitos e ignorantes]? (…) É preciso apostar. Pesemos as vantagens e as desvantagens de apostar na existência de Deus. Calculemos estes dois casos: se ganharmos, ganhamos tudo; se perdermos, nada perdemos. Apostemos então sem hesitar que ele existe.”
Pascal, Pensées, nº 233, Garnier-Flammarion, 1986, pág. 114.
segunda-feira, 3 de agosto de 2009
Deus? Qual deles?
O fotográfo Andy Craddock usou uma igreja anglicana do século XIII como cenário para um ensaio fotográfico erótico e não escapou a um processo judicial (sendo acusado de violação da propriedade privada, pois fotografou sem autorização). Segundo as autoridades anglicanas, o que Craddock fez é uma blasfémia. Em entrevista ao jornal i, Craddock defendeu-se dizendo que a Igreja Anglicana só poderia acusá-lo de blasfémia se provasse que Deus existe. (Leia mais aqui.)
O único aspecto da história que merece alguma atenção é essa afirmação de Craddock. Se – por hipótese - se provasse que Deus existe, já seria racionalmente defensável a Igreja Anglicana acusar alguém de blasfémia? Vou procurar mostrar que não.
Se – por hipótese - descobríssemos que um dos argumentos clássicos a favor da existência de Deus (por exemplo o argumento ontológico ou o argumento do desígnio) prova a existência de um tal ser, não saberíamos ainda assim qual das religiões é verdadeira.
O “ser mais perfeito do que o qual nada pode ser pensado” do argumento ontológico é compatível com qualquer uma das religiões monoteístas. Por isso, mesmo que considerássemos verdadeira a conclusão (“Deus existe”) desse argumento, isso por si só não nos permitiria decidir qual dessas religiões é verdadeira. (Para ler mais sobre o argumento ontológico veja aqui e aqui.)
Quanto ao argumento do desígnio a situação é ainda mais confusa, pois esse argumento é compatível não só com as religiões monoteístas mas também com muitas religiões politeístas. Este argumento procura mostrar que o Universo teve necessariamente um Criador inteligente. Ora, mesmo que se admitisse essa necessidade isso não implicaria que esse Criador tivesse as características referidas pelas religiões monoteístas: poderia tratar-se, por exemplo, de um ser muito poderoso, mas não omnipotente; muito sábio mas não omnisciente; poderia não ser sequer o único Criador – como sucede em diversas religiões politeístas. (Para ler mais sobre o argumento do desígnio veja aqui.)
Numa religião existem diversas crenças específicas associadas à crença na existência de Deus. Religiões como o Judaísmo, o Cristianismo ou o Islamismo têm crenças específicas diferentes, apesar de partilharem uma concepção de Deus bastante semelhante. Quando atrás escrevi que, mesmo que a existência de Deus fosse provada, não saberíamos qual das religiões é verdadeira, queria dizer que essa prova não nos permitiria escolher racionalmente entre os vários conjuntos de crenças específicas que existem.
Uma acusação de blasfémia implica algumas dessas crenças específicas. Por isso, mesmo que descobríssemos que um desses argumentos é sólido não seria racionalmente defensável fazer uma afirmação como “a ideia Y é blasfema”.
A injustiça da morte: uma história de M. S. Lourenço
Há anos atrás, M. S. Lourenço escreveu no semanário O Independente várias crónicas chamadas Os Degraus de Parnaso, depois publicadas em livro com o mesmo nome.
Na crónica que mais gostei (e cujo título infelizmente não recordo) descreveu uma situação ocorrida em Angola, na Guerra Colonial. Recordo que, em poucas linhas, descreve magistralmente o sufocante calor africano e a sua atrapalhação por ter de comandar um posto militar, já que o capitão que tinha essa responsabilidade metera baixa (por motivos psicológicos, se bem me lembro) e ele era o oficial mais graduado.
M. S. Lourenço conta que um dia, após o almoço, estava ele mergulhado na leitura de um livro, um grupo de pessoas se aproximou inesperadamente do posto militar, fazendo muito barulho e atirando algumas pedras. Os soldados de sentinela (assustados, confundidos pelo calor, pelo barulho e pela poeira) julgaram tratar-se de um ataque e dispararam alguns tiros.
Perceberam depois que se tratava de um grupo de homens, mulheres e crianças a quem um missionário evangélico qualquer dissera que na Bíblia estava escrito que os portugueses não deviam estar em África. Aquelas pessoas tinham ido, portanto, explicar aos soldados portugueses que se deviam ir embora. Iam de Bíblia na mão e entoando ruidosos e frenéticos cânticos. Não estavam armadas. Não era um ataque!
Havia diversos mortos e feridos. M. S. Lourenço ajudou o médico a tratar dos vivos e dos mortos. Quando terminaram, horas depois, o médico disse. “Não acredito na ressurreição dos mortos. Mas agora vejo que é uma ideia justa.”
M. S. Lourenço morreu no sábado: 1 de Agosto de 2009. Além de filósofo, foi professor de Filosofia, poeta e tradutor. Dedicou a maior parte do seu trabalho à Lógica e à Filosofia da Matemática. Embora muitos dos seus trabalhos não sejam acessíveis a não especialistas, vale a pena espreitar a sua página pessoal - M. S. Lourenço.
domingo, 2 de agosto de 2009
Em homenagem ao professor M. S. Lourenço
Fernando Taborda, Estrada da Vida, 1954.
(A fotografia foi tirada deste sítio.)
Li as traduções de textos filosóficos que o professor M. S. Lourenço fez, alguns dos textos que escreveu e aprendi com ele. Surpreendeu-me o seu súbito desaparecimento.
Fica, para todos os que se interessam em Portugal pela Filosofia, a obra e também o exemplo (ler aqui).
Excesso de franqueza
É verdade que errar é humano. Mas, como diz o provérbio, “nem todas as verdades se querem ditas”…
O cartoon é de Quino.
sábado, 1 de agosto de 2009
Poor… tugal! Poor…tugal!
Imagem encontrada na Net sem referência ao autor.
Há anos que se fala de cortes orçamentais e a crise económica parece que chegou para durar, mas nada disso inibe os amantes do futebol e das despesas sem retorno. Alguns querem que Portugal organize o Mundial de 2018 com a Espanha – o que implicará, no mínimo, obras de remodelação em diversos estádios. Veja aqui um relato dessa insanidade.
Fazem figuras destas e depois dizem que é preciso ensinar aos jovens o valor da democracia!
Não há educação para a cidadania capaz de explicar estas coisas a uma pessoa (nem aos seus filhos) que se levanta de manhã cedo para trabalhar e mesmo assim tem dificuldade em pagar as contas no final do mês. Leia aqui para perceber porque é que a abstenção é tão elevada em Portugal.