quinta-feira, 16 de julho de 2020

Chegar ao outro lado


Lendo as opiniões que muitos professores de Filosofia expressam nos jornais e nas redes sociais, e ouvindo certas conversas nas escolas, percebe-se rapidamente que há bastantes divergências acerca de coisas importantes como, por exemplo, as metodologias de ensino, as finalidades da avaliação e, naturalmente, a natureza da própria filosofia. 
Há várias linhas de separação, mas a principal talvez seja entre os defensores da chamada “filosofia analítica” e aqueles que a criticam ou, pelo menos, não se reveem nela. 
A existência de divergências de opinião não é um mal (antes pelo contrário), nomeadamente numa disciplina que se dedica há séculos a debater problemas em aberto e sem respostas consensuais. 
Mas, dado que existem também algumas incompreensões mútuas e as discussões parecem muitas vezes conversas de surdos, talvez fosse bom fazer alguma coisa para promover a compreensão mútua e tornar os debates mais profícuos. 
Até porque esses desentendimentos, que frequentemente tocam a hostilidade, têm uma dimensão prática importante, pois incidem muitas vezes nos documentos que têm orientado o ensino da disciplina [Programa de Filosofia - 10.º e 11.º anos; Aprendizagens Essenciais] e servido de referencial para o exame nacional de Filosofia. Tanto a qualidade como a legitimidade desses documentos têm sido postas em causa. Alguns professores criticam o Programa, outros criticam as Aprendizagens Essenciais e outros criticam ambas as coisas. Creio que essa situação não credibiliza os professores de Filosofia e não fornece poder reivindicativo junto do governo, por exemplo para reclamar mais tempo para a disciplina (não devemos esquecer que, em muitas escolas, a carga horária de Filosofia é apenas 150 m). 
Mas fazer o quê?
Parece-me que tem de ser algo mais do que publicar bons livros ou promover boas conferências explicando os méritos da filosofia analítica e da filosofia não analítica (chame-se-lhe “continental” ou outra coisa qualquer), pois isso não tem sido suficiente para chegar ao “outro lado”. 
Talvez algo mais prático. Por exemplo, um encontro de professores (se possível presencial) em que professores com perspetivas diferentes, nomeadamente “analíticos” e “não analíticos”, em total igualdade de condições, pudessem mostrar uns aos outros, e aos assistentes, experiências / propostas pedagógicas significativas e representativas da sua perspetiva. 
Isso não mudaria certamente (e ainda bem!) as ideias divergentes da maioria dos envolvidos, mas talvez mostrasse que é possível ensinar bem filosofia quer de modo analítico quer de modo não analítico, que as semelhanças são mais significativas que as diferenças e que não há razões filosóficas ou pedagógicas substanciais que impeçam a existência de um programa de Filosofia em que a generalidade dos professores, independentemente das suas perspetivas teóricas, se reconheça.  
Se as organizações representativas dos professores de Filosofia organizarem uma coisa do género, ou então algo diferente mas com a mesma intenção, eu inscrevo-me no próprio dia e pago sem refilar (embora ache que devia ser gratuito). 

Imagem: pormenor de A Escola de Atenas, de Rafael. 



terça-feira, 7 de julho de 2020

Um filósofo que começou a sua carreira a estudar Psicologia e o exame nacional de Filosofia



O filósofo Colin McGinn, apesar de se interessar por filosofia desde a adolescência, estudou psicologia na Universidade (provinha de uma família pobre e por isso pareceu-lhe necessário estudar algo mais prático e profissionalmente promissor). Contudo, o seu interesse pela filosofia não desapareceu e acabou mesmo por se inscrever no curso de filosofia, onde tinha colegas que já estudavam filosofia há mais tempo e que mostravam ter muitos conhecimentos que ele não tinha. Apesar disso, decidiu concorrer ao prestigiado prémio John Locke, cujo vencedor recebia uma recompensa monetária e muito prestígio. Para sua surpresa, ficou em primeiro lugar. Na sua autobiografia (intelectual) Colin McGinn explicou o sucedido do seguinte modo:

“Olhando para trás, julgo que o que aconteceu é que a minha inexperiência relativa funcionou a meu favor, pois tive de lutar para criar as minhas próprias respostas às perguntas, devido à falta de conhecimento sobre o que os outros tinham dito. Em vez de encher as minhas respostas com demasiado conhecimento em segunda mão retirado da bibliografia filosófica, fui forçado a prosseguir com uma linha de pensamento da minha autoria, mostrando assim uma capacidade para participar com pensamento filosófico original.” 

Colin McGinn, Como se faz um filósofo, Bizâncio, Lisboa, 2007, pág. 96 (tradução de Célia Teixiera).

Oxalá amanhã, no exame nacional de Filosofia, os alunos portugueses também consigam ir além dos conhecimentos adquiridos e acrescentem linhas de pensamento da sua autoria!