terça-feira, 31 de março de 2009

O Lobo do Mar: filosofia no meio de uma aventura


Imagine que se chama Humphrey van Weyden e que numa viagem de barco cai borda fora. Após horas a flutuar na água fria, é recolhido por um navio que está a iniciar a temporada da caça à foca. O capitão desse navio é um homem violento e impiedoso que recusa ir pô-lo em Terra (apesar disso significar apenas um atraso de poucas horas numa viagem de muitos meses). Dá-lhe a escolher entre regressar à água fria do mar e o trabalho como criado de bordo. Como o caro leitor é uma pessoa rica, que nunca lavou um prato nem sabe fazer sopa, tem de aprender a efectuar inúmeras tarefas práticas. Enquanto faz essa dura aprendizagem descobre que o capitão, conhecido como Lobo Larsen, é um homem muito inteligente. É um autodidacta que lê avidamente obras literárias, científicas e filosóficas. Lobo Larsen é capaz de questionar todas as crenças, por muito comuns que sejam, e de lançar dúvidas pertinentes quanto à sua justificação. Ou seja: Lobo Larsen é um filósofo, apesar de ser capaz de espancar um marinheiro por causa de uma ninharia.

No final da aventura Humphrey van Weyden ganhará, além da mulher dos seus sonhos, algo que por vezes a filosofia também permite: um melhor conhecimento de si próprio. Jack London escreve tão bem que o caro leitor, se ler o “Lobo do Mar”, talvez ganhe o mesmo.

Eis um excerto:

“- No menor número possível de palavras – começou ele – Spencer põe a questão mais ou menos assim: primeiro, o homem deve agir em seu próprio benefício… proceder dessa maneira é ser-se bom e moral; a seguir, deve agir em benefício dos filhos; e, em terceiro lugar, em benefício da sua raça.

- E a conduta mais elevada, melhor e mais certa interrompi – é aquela que beneficia ao mesmo tempo o homem, os seus filhos e a sua raça.

- Não perfilho essas ideias – replicou. – Não as acho necessárias nem sensatas. Suprimo a raça e os filhos. Não sacrificaria nada por eles. Não passa de sentimentalismo, pelo menos para aqueles que não acreditam na vida eterna. Com a perspectiva da imortalidade, o altruísmo tornar-se-ia uma operação compensadora. (…) Mas sem nada de eterno diante de mim, a não ser a morte, apenas com um curto espaço de tempo para que este fermento, que se chama vida, rasteje e se contorça… Ora, será imoral praticar qualquer acto que constitua um sacrifício para mim. Qualquer sacrifício que me faça perder um único movimento, uma única vibração, é rematada loucura; mais: representa um acto prejudicial a mim próprio, um acto cruel. (…)

- Então o senhor é um individualista, um materialista e, consequentemente, um hedonista.

- Palavras pomposas! – disse ele sorrindo. – Que é um hedonista?”

Este excerto foi retirado da edição do “Lobo do Mar” da Livraria Civilização de 1988, pág. 63. Essa edição parece estar esgotada. A acreditar no Google e nos funcionários de várias livrarias, a única tradução em língua portuguesa actualmente disponível é da editora brasileira Martin Claret.

Ocorreu-me escrever este post depois de ler, no blogue da revista Crítica, um texto - intitulado "Pensamento selvagem" - de Desidério Murcho acerca de outros dois livros de Jack London: “O Apelo da Selva” (The Call of the Wild) e “Canino Branco” (White Fang). Vale a pena ler.

domingo, 29 de março de 2009

Anedota: é verdade que "0,5+0,5=1", mas...

Vendedor: Minha senhora, este aspirador fará o seu trabalho em metade do tempo.
Cliente: Fantástico! Quero dois.
Thomas Cathcart e Daniel Klein, Platão e um Ornitorrinco entram num Bar..., Dom Quixote, Lisboa, 2008, pág.63.

sábado, 28 de março de 2009

Hobbes: O filósofo ou o tigre do Calvin?




















Numa das aulas do 10º ano, sobre filosofia política, escrevi no quadro a palavra “Hobbes” e perguntei se alguém sabia dizer quem era. Um dos meus alunos observou-me: "É o tigre do Calvin" (personagem da banda desenhada do americano Bill Watterson).
Tal como disse ao aluno, foi uma boa resposta, por diferentes motivos:
Demonstra conhecimento de uma banda desenhada genial, onde além da qualidade dos desenhos, se colocam com humor questões filosóficas, se apresentam e discutem argumentos filosóficos e, sobretudo, se mostra, com exemplos concretos, quais são as consequências da aplicação de determinadas ideias, defendidas por ilustres filósofos, à nossa vida.
Ainda que o meu aluno não soubesse, de facto o nome do tigre do Calvin foi inspirado no filósofo inglês Thomas Hobbes. Como disse o próprio Bill Watterson a propósito do seu personagem: “Tem o nome de um filósofo inglês do século XVII que tinha uma perspectiva pessimista da natureza humana (…). Com a maior parte dos animais das BD o humor resulta do seu comportamento humano. Claro que Hobbes tem uma postura vertical e fala, mas tento preservar o seu lado felino, tanto no comportamento como na atitude física. A reserva e o tacto de que dá mostras, bem como o orgulho mal contido de não pertencer à espécie humana, parecem-me muito felinos.”
Já agora, e a título de curiosidade, o personagem Calvin “tem o nome de um teólogo do século XVI que acreditava na predestinação (Calvino)”.
Em tempo de férias, sugiro como leitura o livro de onde tirei estas citações que, além das BD, tem comentários e explicações do próprio Bill Watterson (1).
Além do contacto com os livros, sugiro, em especial a alguns dos meus alunos que ocupam muito do seu tempo a jogar computador, o contacto com a natureza.
Talvez possa ajudar mudar o vosso ponto de vista em relação à escola e à vida...

(1) Bill Watterson, Parabéns Calvin e Hobbes, Edição comemorativa do 10º aniversário, Lisboa, Edições Gradiva.

As noções de “estado de natureza” e “contrato social” na perspectiva de Hobbes


Retrato de Thomas Hobbes (1588-1679) de John Michael Wright.

«Hobbes começa por perguntar como seria se não houvesse regras sociais e nenhum mecanismo comummente aceite para as impor. Imaginemos, se quisermos, que não havia governos – nem leis, polícias ou tribunais. Nesta situação, cada um de nós seria livre de fazer o que quisesse. Hobbes chamou a isto estado de natureza. Como seria?

Hobbes pensava que seria horrível. No Leviathan escreveu que "não haveria maneira de ser empreendedor, pois o fruto do trabalho seria incerto: e consequentemente a terra não seria cultivada; não haveria navegação nem utilização dos produtos que podem ser transportados por mar; nem edifícios confortáveis; nem instrumentos para auxiliar a deslocação e remoção de coisas que requerem muita força; nem conhecimento da face da Terra; nem mecanismos para contar o tempo; nem artes; nem letras; nem sociedade; e, o que é pior, haveria um medo contínuo e perigo de morte violenta; e a vida do homem seria solitária, pobre, sórdida, brutal e curta."

(…) Todos precisamos das mesmas coisas básicas, e [nesse estado de natureza] não as há em quantidade suficiente para sobrevivermos. Logo, seremos colocados numa espécie de competição por elas. Mas nenhum de nós tem capacidade para triunfar sobre a concorrência, e ninguém – ou quase ninguém – estará disposto a abdicar da satisfação das suas necessidades em favor dos outros. O resultado é nas palavras de Hobbes, um “estado de guerra constante de um contra todos”. E trata-se de uma guerra que ninguém pode esperar vencer. Uma pessoa razoável que queira sobreviver, tentará recolher o que precisa e preparar-se para o defender dos outros atacantes. Mas os outros farão a mesma coisa. São estas as razões pelas quais a vida no estado de natureza seria intolerável.

Hobbes não pensava que tudo isto fosse mera especulação. Sublinhou até que isto é o que acontece de facto quando os governos caem, como durante uma insurreição civil. As pessoas começam desesperadamente a armazenar comida, a armar-se e a afastar-se dos vizinhos (O que faria o leitor se amanhã de manhã ao acordar descobrisse que por causa de qualquer catástrofe o governo tinha caído, não havendo leis, polícia ou tribunais em funcionamento?).

(…) Para escapar ao estado de natureza as pessoas têm, pois, de concordar no estabelecimento de regras para governar as suas relações, e têm de concordar no estabelecimento de um intermediário – o Estado – com o poder necessário para aplicar estas regras. Segundo Hobbes, tal acordo existe de facto, e torna a vida possível em sociedade. A este acordo, do qual cada cidadão é parte, chama-se contrato social (…).

No estado de natureza é cada um por si; aí, seria estúpido alguém adoptar a política de “olhar pelos outros”, porque só se poderia fazer isso à custa de colocar permanentemente os seus próprios interesses em risco. Mas em sociedade o altruísmo torna-se possível. Ao libertar-nos do “medo contínuo de uma morte violenta”, o contrato social liberta-nos para cuidar dos outros.»

James Rachels, Elementos de Filosofia moral, Lisboa, Edições Gradiva, 2004, pp. 204-208.

É de salientar que, de acordo com este filósofo, a satisfação das necessidades mais elevadas, como o conhecimento ou a arte, não é possível se não estiverem asseguradas necessidades básicas como a alimentação ou segurança.

Além disso, Hobbes parte do princípio que os interesses egoístas de cada ser humano, no estado de natureza, prevalecem sempre relativamente à promoção imparcial do bem comum. Será mesmo assim? Ou pelo contrário, podemos apresentar argumentos para refutar este pressuposto central da filosofia política de Hobbes?

Se sim, quais?

Se não, porquê?