quinta-feira, 30 de abril de 2020

Recursos de Filosofia: Filosofia Política e Filosofia da Religião


Eu e a Sara Raposo elaborámos novamente alguns materiais de apoio que Editora Leya disponibilizou gratuitamente na Aula Digital:


Para o 10º ano escolhemos três textos de Michael Sandel e elaborámos uma ficha de trabalho sobre os mesmos. Esta é interativa (no final indica a pontuação obtida e as respostas corretas, em caso de erro), tendo que ser respondida na plataforma Aula Digital.

Para o 11º ano escolhemos pequenos textos sobre alguns conceitos iniciais da Filosofia da Religião (teísmo, deísmo, ateísmo, agnosticismo, etc.) e elaborámos uma ficha de trabalho sobre esses conceitos. A ficha também é interativa e contém diversas questões que incluem cartoons, fotografias e uma canção.

Tanto no 10º como no 11º existem propostas de planificação das atividades a realizar.

Os documentos que contêm os textos são editáveis, podendo os professores suprimir, acrescentar ou alterar o que entenderem.

Oxalá possam ser úteis!

Para aceder basta fazer uma rápida inscrição e depois visualizar o menu de recursos na Aula Digital.

(Na próxima semana serão publicados no mesmo sítio materiais dos colegas Domingos Faria, Luís Veríssimo e Manuel João Pires.)

Agnosticismo e ateísmo





Uma pessoa agnóstica considera que não possui conhecimento suficiente para provar quer a existência quer a inexistência de Deus (ou de qualquer outra divindade). Por isso, suspende o juízo, isto é, abstém-se de tomar qualquer tipo de posição sobre o problema.
Um ateu defende a inexistência de Deus ou de qualquer outra divindade.

terça-feira, 28 de abril de 2020

Argumento cosmológico: o texto de Tomás de Aquino e algumas reconstituições do argumento


Tomás de Aquino, de Gentile da Fabriano (1370-1427)


«A existência de Deus pode ser provada de cinco maneiras:
(…) A segunda maneira parte da natureza da causa eficiente. No mundo dos sentidos encontramos uma ordem de causas eficientes. Não há qualquer caso conhecido (nem isso seria, de facto, possível) em que uma coisa é causa eficiente de si própria. Para isto, teria de ser anterior a si própria, o que é impossível. Ora, não é possível haver uma série infinita de causas eficientes, porque nas causas que se seguem umas às outras na série, a primeira é a causa da intermédia, e esta é a causa da última, sejam várias ou apenas uma as causas intermédias. Ora, fazer desaparecer a causa é fazer desaparecer o efeito. Logo, se não há uma primeira causa na série das causas eficientes não haverá uma última nem qualquer causa intermédia. Mas se é possível haver uma série infinita de causas eficientes, não há uma primeira causa eficiente, nem um efeito último, nem quaisquer causas eficientes intermédias; tudo isto é obviamente falso. Logo, é necessário admitir uma primeira causa eficiente, a que todos dão o nome de Deus.»



Confrontar os alunos com o texto do próprio Tomás de Aquino parece-me pedagogicamente acertado, mas convém apresentar uma reconstituição do argumento de modo a facilitar a compreensão e a discussão. Eis três possibilidades:


«Premissa 1: No mundo, todas as coisas têm uma causa.
Premissa 2: Nada pode ser a causa de si próprio.
Premissa 3: As cadeias causais não podem regredir infinitamente.
Logo, existe uma causa primeira que é Deus.»

Aires Almeida e outros, A Arte de Pensar – volume 2, Didáctica Editora, Lisboa, 2007, pág. 133.


«1. Na natureza ocorrem acontecimentos.
2. Na natureza todo o acontecimento tem uma causa e nenhum acontecimento é a causa de si mesmo.
3. Na natureza as causas precedem os efeitos.
4. Na natureza não há cadeias infinitas de causa/efeito.
5. Logo, há uma entidade fora da natureza (um ser sobrenatural) que causa o primeiro acontecimento que ocorre na natureza.
6. Logo, Deus existe.»

Artur Polónio e outros, Criticamente, de Porto Editora, 2007, pág. 227.


«1. Existem coisas no mundo.
2. Se existem coisas no mundo, então tais coisas foram causadas a existir por alguma outra coisa.
3. Se as coisas do mundo foram causadas a existir por alguma outra coisa, então ou há uma cadeia causal que regride infinitamente ou há apenas uma primeira causa que é a origem da cadeia causal.
4. Mas não há uma cadeia causal que regride infinitamente.
5. Logo, há apenas uma maneira causa (a que chamamos Deus) que é a origem da cadeia causal. (De 1 a 4)»

Domingos Faria e Luís Veríssimo, Exame 11, Leya, Lisboa, 2020, pág. 258.

Imagem: Tomás de Aquino, de Gentile da Fabriano (1370-1427)

sábado, 25 de abril de 2020

A propósito do 25 de abril: Sapere aude!


«Iluminismo é a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem. Tal menoridade é por culpa própria, se a sua causa não residir na carência de entendimento, mas na falta de decisão e de coragem em se servir de si mesmo, sem a guia de outrem. Sapere aude! Tem a coragem de te servires do teu próprio entendimento! Eis a palavra de ordem do Iluminismo.
A preguiça e a cobardia são as causas de os homens em tão grande parte, após a natureza os ter há muito libertado do controlo alheio, continuarem, todavia, de bom grado menores durante toda a vida; e também de a outros se tornar tão fácil assumir-se como seus tutores. É tão cómodo ser menor. Se eu tiver um livro que tem entendimento por mim, um diretor espiritual que em vez de mim tem consciência moral, um médico que por mim decide da dieta, etc., então não preciso de eu próprio me esforçar. Não me é forçoso pensar, quando posso simplesmente pagar; outros empreenderão por mim essa tarefa aborrecida. Porque a imensa maioria dos homens (…) considera a passagem à maioridade difícil e também muito perigosa é que os tutores de bom grado tomaram a seu cargo a superintendência deles. Depois de terem, primeiro, embrutecido os seus animais domésticos e evitado cuidadosamente que estas criaturas pacíficas ousassem dar um passo para fora da carroça em que as encerraram, mostram-lhes em seguida o perigo que as ameaça, se tentarem andar sozinhas. Ora, este perigo não é assim tão grande, pois acabariam por aprender muito bem a andar. Só que um tal exemplo intimida e, em geral, gera pavor perante todas as tentativas ulteriores.
É, pois, difícil a cada homem desprender-se da menoridade que para ele se tomou quase uma natureza. Até lhe ganhou amor e é por agora realmente incapaz de se servir do seu próprio entendimento, porque nunca se lhe permitiu fazer semelhante tentativa. (…)
Mas é perfeitamente possível que um público a si mesmo se esclareça. Mais ainda, é quase inevitável, se para tal lhe for concedida a liberdade.»

Immanuel Kant, Resposta à pergunta: “Que é o Iluminismo?”, Lusosofia - http://www.lusosofia.net/textos/kant_o_iluminismo_1784.pdf

quinta-feira, 23 de abril de 2020

Deus criou o melhor mundo que era possível criar


Leibniz é o autor de referência indicado nas AE para o problema do mal. Leibniz pensava que este é o melhor mundo possível e não pode ser melhorado, pelo que criou uma teodiceia, isto é, uma tentativa de mostrar que o mal existente no mundo não é incompatível com a existência de um Deus omnipotente e bom. 

Eis uma das passagens em que esse filósofo defende que Deus criou o melhor mundo que era possível criar. 

«89. Pode-se ainda dizer que Deus como Arquiteto contenta em tudo a Deus como Legislador; e que assim os pecados devem arrastar o seu castigo com eles pela ordem da natureza, e em virtude mesmo da estrutura mecânica das coisas; e que da mesma maneira as belas ações atrairão as suas recompensas por vias maquinais em relação aos corpos; embora isso não possa e não deva acontecer sempre de imediato.
90. Finalmente, sob este governo perfeito, não haveria boa Ação sem recompensa nem má sem castigo: e tudo deve resultar para o bem dos bons, quer dizer, daqueles que não estão descontentes neste grande Estado, que se confiam à Providência depois de terem feito o seu dever, e que amam e imitam, como é devido, o Autor de todo o bem, comprazendo-se na consideração das suas perfeições segundo a natureza do puro amor verdadeiro, que leva a ter prazer na felicidade daquilo que se ama. É o que faz trabalhar as pessoas sábias e virtuosas para tudo o que se revela conforme à vontade divina presuntiva ou antecedente, e não obstante contentar-se com o que Deus faz acontecer efetivamente pela sua vontade secreta, consequente e decisiva; reconhecendo que, se pudéssemos entender bastante a ordem do universo, acharíamos que ela ultrapassa todos os desejos dos mais sábios, e que é impossível torna-la melhor do que é; não só para o todo em geral mas também para nós mesmos em particular, se estivermos ligados como é preciso ao Autor do todo, não só como ao Arquiteto e à causa eficiente do nosso ser mas também como ao nosso Senhor e à causa Final que deve todo o fim da nossa vontade, e é o único que pode fazer a nossa felicidade.»

Leibniz, Monadologia, Edições Colibri, Lisboa, 2016, pp. 63-64.

Pintura: Vincent van Gogh: Às portas da eternidade.

sexta-feira, 17 de abril de 2020

Recursos de Filosofia: Lógica informal e Filosofia da ciência

Eu e a Sara Raposo elaborámos novamente alguns materiais de apoio que editora Leya disponibilizou gratuitamente na Aula Digital: 


Pensamos que muitos professores irão começar este 3º período com revisões e consolidações de matérias já lecionadas. Por isso, fizemos

- uma ficha de trabalho de Lógica informal (utilizável também no 11º ano na preparação de alunos para o exame nacional);

- duas propostas no âmbito da Filosofia da ciência: um Guião de análise de dois vídeos (um sobre a importância de Darwin e outro sobre a pseudociência) e uma ficha de trabalho acerca de Popper e Kuhn, com questões diversificadas, nomeadamente questões baseadas em exemplos.

Procurámos que a maioria das questões apelassem ao raciocínio e exigissem aplicação em vez da mera reprodução.

Todos esses materiais são acompanhados de propostas de resolução e planificações das atividades a realizar.

É de referir que todos esses materiais são editáveis, podendo os professores suprimir, acrescentar ou alterar o que entenderem.
Oxalá possam ser úteis!

Para aceder basta fazer uma rápida inscrição e depois visualizar o menu de recursos na Aula Digital.

Na próxima semana serão publicados no mesmo sítio materiais dos colegas Domingos Faria, Luís Veríssimo e Manuel João Pires.

terça-feira, 14 de abril de 2020

O conceito de Deus




«Antes de surgir a crença de que o mundo no seu todo está sob o controlo soberano de um único ser, as pessoas acreditavam amiúde numa pluralidade de seres divinos ou deuses, posição religiosa a que se chama politeísmo. Na antiguidade grega e romana, por exemplo, os diversos deuses controlavam diferentes aspetos da vida, de modo que se venerava, naturalmente, vários deuses — um deus da guerra, uma deusa do amor, e por aí em diante. Às vezes, porém, podia‐se acreditar que há diversos deuses mas venerar apenas um, o deus da própria tribo, posição religiosa a que se chama henoteísmo. No Antigo Testamento, por exemplo, há referências frequentes a deuses de outras tribos, embora os hebreus se mantenham fiéis ao seu próprio deus, Jeová. Lentamente, porém, surgiu a crença de que o nosso próprio deus é o criador do Céu e da Terra, o deus que não é apenas o da nossa própria tribo mas de todos, perspetiva religiosa a que se chama monoteísmo. (…)
[Segundo a conceção teísta] Deus não está em qualquer local ou região do espaço físico. É um ser puramente espiritual, um ser pessoal, perfeitamente bom, omnipotente, omnisciente, que criou o mundo, mas não faz parte dele. É distinto do mundo, não está sujeito às suas leis, julga‐o, orienta‐o para o seu desígnio final. Esta ideia bastante majestosa de Deus foi lentamente desenvolvida ao longo dos séculos por grandes teólogos ocidentais como Agostinho, Boécio, Boaventura, Avicena, Anselmo, Maimónides e Tomás. Tem sido a ideia dominante de Deus na civilização ocidental.»

William L. Rowe, Introdução à Filosofia da Religião, Verbo, 2011, pp. 11-12.

domingo, 12 de abril de 2020

O essencial sobre a existência de Deus



"As Aprendizagens Essenciais introduziram alterações significativas nos conteúdos de filosofia da religião a lecionar no ensino secundário. Surgem agora como autores de referência os teólogos e filósofos Anselmo, Tomás, Leibniz e Pascal. Este livro apresenta as ideias em questão destes autores, numa linguagem apropriada a estudantes do ensino secundário."

Palavras de Desidério Murcho, a propósito do seu livro A existência de Deus - O essencial, recentemente publicado pela Plátano.

Na página da editora encontra uma amostra do livro.



Este também existe no formato eBook.

Link para a editora:
Link para o blog "50 Lições", onde está a informação relativa ao eBook:

quinta-feira, 9 de abril de 2020

Recursos de filosofia para o ensino à distância



Eu e a Sara Raposo elaborámos alguns materiais de apoio para usar no ensino à distância, mas também utilizáveis, quando for possível, no ensino presencial.

Duas planificações das atividades a realizar: uma para o 10º e outra para o 11º.

Uma ficha com itens de escolha múltipla e uma ficha com dilemas éticos (para o capítulo da Fundamentação da moral, do 10º ano), acompanhadas de propostas de resolução.

Um guião de análise do documentário “Why Beauty Matters?”, de Roger Scruton, e uma ficha com itens de escolha múltipla e de resposta restrita (para o capítulo da Filosofia da arte, do 11º ano), também com propostas de resolução. Saliento que muitos dos itens desta ficha incluem exemplos de obras de arte.

É de referir que todos esses materiais são editáveis, podendo os professores suprimir, acrescentar ou alterar o que entenderem.

Estão disponíveis, gratuitamente, no site da editora Leya: https://www.leyaeducacao.com/

Para aceder basta fazer uma rápida inscrição e depois visualizar o menu de recursos na Aula Digital.

Os colegas Domingos Faria, Luís Veríssimo e Manuel João Pires também elaboraram materiais, disponíveis no mesmo sítio. 

quarta-feira, 8 de abril de 2020

A origem do orgulho em si próprio

Vaidade, de Auguste Toulmouche (1829 - 1890)


«Acontece muitas vezes que, depois de termos vivido tempo considerável numa cidade mesmo que a princípio esta possa ter-nos desagradado à medida que nos familiarizamos com os objetos e nos familiarizamos mesmo que apenas com as ruas e edifícios, a nossa aversão diminui gradualmente e por fim transforma-se na paixão contrária. A mente encontra satisfação e à-vontade ao ver os objetos aos quais está habituada e prefere-os naturalmente a outros que, embora talvez em si mais valiosos, lhe são menos conhecidos. A mesma qualidade da mente leva-nos a ter boa opinião de nós próprios e de todos os objetos que nos pertencem. Estes objetos aparecem a uma luz mais forte, são mais agradáveis e por conseguinte mais apropriados do que qualquer outro para se tornarem motivos de orgulho e vaidade.»

David Hume, Tratado da Natureza Humana, Gulbenkian, Lisboa, 2012, pág. 415.

Pintura: Vaidade, de Auguste Toulmouche (1829 - 1890).

terça-feira, 7 de abril de 2020

Como comunicar e planificar no ensino à distância?

O vídeo mostra um webinar do professor Carlos Pinheiro acerca do ensino à distância.  Informações e sugestões acerca da comunicação e da planificação nesta modalidade de ensino.  

Ocorreu hoje, dia 7 de abril de 2020, e nos próximos dias realizar-se-ão mais dois, versando a concecão de recursos didáticos e a avaliação. 




domingo, 5 de abril de 2020

Um dilema ético gerado pela covid-19

«Imagine-se que amanhã chegam três pacientes em estado grave a um hospital com recursos escassos: um rapaz de 15 anos com diabetes, uma mãe de 25 anos sem historial de doenças e um avô com 80 anos. Por causa do novo coronavírus, eles estão a lutar pela vida e só nos resta um ventilador. A quem o devemos administrar? Qual é a acção correcta? Este não é um cenário meramente ficcional de uma aula teórica de ética; é algo que já está a acontecer em Itália, Espanha e, em breve, é provável suceder em Portugal.
Como possível resposta para esse dilema ético, há duas teorias éticas rivais: o consequencialismo das regras e a deontologia. Essas duas teorias aceitam que uma acção é moralmente correcta se, e só se, não infringir as regras morais correctas. Onde há desacordo é na concepção e fundamentação do que são “regras morais correctas”. Para o consequencialista das regras, tudo o que importa para determinar a correcção moral de uma determinada regra são as suas consequências, ao passo que, para o deontologista, há regras morais que não podemos quebrar mesmo que tenham as melhores consequências.
Por um lado, de acordo com o consequencialismo das regras, com raízes em Stuart Mill, as “regras morais correctas” são aquelas que, a serem adoptadas por todas ou quase todas as pessoas, mais promovem o bem de uma forma imparcial no máximo grau possível. Assim, devemos seguir aquelas regras que têm as melhores consequências. Para sabermos se uma regra moral é correcta, devemos imaginar como seria o mundo se todos ou quase todos a aceitassem. Se descobrirmos que a aceitação geral de uma regra seria prejudicial para a promoção do bem geral, teremos de considerá-la incorrecta. Mas se entendermos que a sua aceitação geral teria um impacto muito positivo no bem geral, então poderemos considerá-la correcta.
Por outro lado, de acordo com o deontologismo, com raízes em Kant, as “regras morais correctas” são (1) aquelas que podemos querer que sejam adoptadas universalmente e (2) aquelas que nos levam a tratar as pessoas como fins e não como meros meios. A ideia da cláusula (1) não consiste em ver se teria boas ou más consequências que todos agissem de acordo com uma determinada regra. Consiste, antes, em mostrar se é ou não possível todos agirem segundo uma tal regra. Já a cláusula (2) salienta que, seguindo uma regra moral correcta, nunca poderemos manipular as pessoas, ou instrumentalizá-las para alcançar os nossos objectivos.
Seguindo essas teorias éticas, que regra devemos adoptar para solucionar o dilema ético inicial? A quem devemos administrar o nosso único ventilador? Em Itália adoptou-se a seguinte regra para resolver esses casos: dar prioridade àqueles doentes com maior probabilidade de sucesso e esperança de vida. Mas será essa uma regra moral correcta, de acordo com as teorias acima descritas?
Podemos dizer que sim. Pois, por um lado, seguindo a ética consequencialista das regras, se violarmos essa regra e adoptarmos uma regra alternativa em que aplicamos o nosso único ventilador ao doente que tem menos probabilidade de recuperar, gera-se um estado de coisas que tem piores consequências: nessa situação é provável que todos morram. Por outro lado, seguindo a ética deontológica, pode-se argumentar que naquela situação de recursos escassos é possível todos agirem de acordo com a regra adoptada pela Itália e, além disso, será implausível defender que, ao adoptar-se uma tal regra, estamos a “instrumentalizar” as pessoas com menos probabilidade de sucesso de recuperação para alcançar os nossos objectivos. Simplesmente, dada a situação ilustrada pelo nosso dilema inicial, seria impossível dar a mesma assistência médica aos três doentes. Portanto, as duas principais tradições rivais da ética acabam por concordar nesta situação trágica.»

Domingos Faria, Jornal Público, 5 / 4 / 2020


sábado, 4 de abril de 2020

George Dickie

Morreu George Dickie (1926-2020), o autor da teoria institucional da arte. Depois de propor uma primeira versão da teoria teve em conta objeções que lhe foram feitas e reformulou-a. Um bom exemplo, portanto, do que por vezes se chama “atitude filosófica”.  

«O mundo da arte não requer procedimentos rígidos; admite e até encoraja a frivolidade e o capricho sem pôr em causa o seu propósito sério. Contudo, se não é possível cometer um erro na atribuição de estatuto envolvida na produção da arte, é possível cometer um erro ao conferir o estatuto de candidato à apreciação. Ao conferir um tal estatuto a um objeto, assume-se uma certa responsabilidade pelo objeto no seu novo estatuto. Apresentar um candidato à apreciação coloca-nos sempre perante a possibilidade de ninguém o apreciar e que em virtude disso a pessoa responsável pela atribuição perca a credibilidade. É possível fazer uma obra de arte a partir da orelha de uma porca, mas isso não a torna necessariamente uma bolsa de seda.»
         George Dickie, Introdução à Estética, Bizâncio, Lisboa, 2008, pp. 136-137.



sexta-feira, 3 de abril de 2020

Humanos como nós


"Um líder de uma tribo protegida da Amazónia foi encontrado morto, o que constitui a quinta morte violenta nos últimos seis meses numa região assolada por conflitos entre madeireiros ilegais e as tribos da zona."

Leia a notícia inteira no jornal Público

Esta notícia triste fez-me lembrar um caso mais antigo, mas que na cabeça de algumas pessoas parece não estar ainda resolvido:

«Quando Espanha estava a colonizar o Novo Mundo no tempo de Filipe II (1527-1598) surgiu uma discordância amarga entre os conquistadores sedentos de lucro e os frades pios que, às ordens do rei, acompanhavam sempre as suas explorações. O objeto da discordância era o estatuto dos nativos locais, os povos indígenas das Américas. Eram eles - como os frades sustentavam - seres humanos com almas para salvar e vidas para serem integradas na comunidade da Igreja? Ou eram eles - como os conquistadores preferiam pensar - como alguns dos maiores hominídeos de África, mamíferos sofisticados disponíveis para trabalhar nas minas de ouro e prata, análogos aos camelos e bois que serviam de bestas de carga? Eram realmente seres humanos ou eram simplesmente de encarar como uma espécie de símios algo mais desenvolvidos?
Quando os frades que resistiam à exploração dos povos indígenas insistiram em defender a sua posição, Filipe II reenviou a questão para alguns dos melhores especialistas disponíveis daquele tempo - os melhores dos melhores entre os teólogos e estudiosos de Espanha. Reuniram-se em 1550-1551 para resolver a questão num debate escolástico na Universidade de Valladolid (...).
O frade dominicano Bartolomeu de las Casas (...) defendeu a posição dos frades com tal eloquência e cogência que os sábios reunidos, para seu crédito eterno, puseram-se do lado da humanidade. (Não que isto tenha feito assim tanta diferença para os homens sem escrúpulos que exerciam cargos de chefia nas Américas.)»

Nicholas Rescher, Uma viagem pela filosofia em 101 episódios, Gradiva, Lisboa, 2018, pp. 129-130.

Os vírus por vezes são nossos aliados




Desde que a pandemia de Covid 19 começou tem-se falado bastante de livros que possam ajudar a compreender o que se está a passar, como A Peste, de Albert Camus. Um livro que talvez possa dar um contributo para isso é a Guerra dos Mundos de H. G. Wells. Este descreve a invasão da Terra por marcianos, tecnologicamente muito superiores aos humanos. Contudo, os invasores, depois de vencerem rapidamente os seres humanos, acabam por morrer vítimas dos vírus e bactérias terrestres.   

Uma das várias adaptações cinematográficas feitas do livro de Wells é da autoria de Steven Spielberg (2005). O filme termina com a voz impressionante de Morgan Freeman a dizer algumas das seguintes palavras:

«E, espalhados por ali, (…) estavam os marcianos – mortos – aniquilados pela bactéria da doença e da putrefação contra a qual os seus organismos não estavam preparados; aniquilados (…), depois de todos os engenhos humanos terem falhado, pelas coisas mais humildes que Deus, na sua sabedoria, colocou na Terra. (…)
Estes gérmenes da doença tinham cobrado direitos à Humanidade desde o começo das coisas - tinham cobrado direitos aos nossos antepassados pré-humanos mal a vida brotou na Terra. Mas, graças a esta seleção natural da nossa espécie, desenvolveu-se em nós o poder de resistência; não sucumbimos a nenhuns gérmenes sem uma luta, e a muitos deles – os que causam a putrefação da matéria morta, por exemplo – os nossos corpos vivos são totalmente imunes. Mas não existem bactérias em Marte e, mal estes invasores chegaram, mal comeram e beberam, os nossos aliados microscópicos começaram a trabalhar para a sua destruição. Quando eu os observara já estavam irremediavelmente condenados; embora andassem de um lado para o outro, estavam a morrer e a apodrecer. Isto era inevitável. Pelo preço de um milhão de mortos, o homem comprou o seu direito de viver na Terra, e este pertence-lhe contra todos os forasteiros; continuaria a pertencer-lhes ainda que os marcianos fossem dez vezes maiores. Pois os homens não vivem nem morrem em vão.»

H. G. Wells, A Guerrra dos Mundos, Ulisseia, Lisboa, 2005, pp. 173-174.

A narração de Morgan Freeman:


Trailer do filme: