Por vezes lamenta-se que haja cada vez menos ideologia na política, substituída pelo pragmatismo e pela mera defesa dos interessas próprios – subentendendo-se, portanto, que a ideologia é uma coisa boa.
Muitas outras vezes a palavra é utilizada num sentido claramente negativo, como quando se diz “George Orwell não é um escritor ideológico” (aqui) ou “O ‘eduquês’ é uma ideologia pedagógica que promove a desigualdade social”.
No primeiro caso considera-se que uma ideologia é um conjunto de ideais e princípios, ou seja, ideias acerca do modo como as coisas deveriam ser, nomeadamente na política. Por exemplo: o socialismo e o liberalismo são ideologias políticas. Dito por outras palavras: “qualquer sistema abrangente de crenças, categorias e maneiras de pensar que possa constituir o fundamento de projectos de acção política e social é uma ideologia: um esquema conceptual com uma aplicação prática.” (Simon Blackburn, Dicionário de Filosofia, Gradiva, Lisboa, 1997, pág. 219.)
No segundo caso considera-se que uma ideologia é um conjunto de preconceitos, de ideias anteriores à experiência e à análise crítica e racional e que, nas palavras de Simon Blackburn, funcionam como “uma espécie de óculos que distorcem e dissimulam” a realidade. Nessa acepção, a ideologia leva a ajustar os factos à teoria e não a teoria aos factos, ou seja, é uma maneira de pensar que deturpa e ilude.
Para explicar de modo mais completo a relação entre as duas utilizações da palavra seria necessário invocar as ideias de Karl Marx e de Friedrich Engels. Em vez disso, faço apenas notar que nem sempre é óbvio se estamos perante a ideologia no primeiro ou no segundo sentido.
Sucede por vezes que os adversários de uma ideologia no primeiro sentido (por exemplo, alguns socialistas quando criticam o liberalismo ou alguns liberais quando criticam o socialismo) a tentam reduzir ao segundo sentido (incorrendo por isso na falácia do homem de palha).
Por vezes são os próprios defensores de uma ideologia a fazer essa redução do primeiro ao segundo sentido: agarram-se tão cega e teimosamente aos seus ideais que estes se tornam meros preconceitos - ideias cristalizadas incapazes de explicar o mundo e as suas mudanças, repetidas com convicção e paixão mas de modo acrítico.
Wiley Miller, neste genial cartoon (“A invenção da ideologia”, tirado daqui), refere-se claramente à ideologia no segundo sentido. A legenda poderia ser: “A marca segura de ideologia, tanto na ciência e filosofia como na política, é a negação de factos óbvios.” (Colin McGinn, Como se faz um filósofo, Bizâncio, Lisboa, 2007, pág. 63.)
Agora que, em Portugal, se aproximam dois actos eleitorais bastante importantes, talvez valha a pena pensar na distinção entre a ideologia como conjunto de ideais e princípios e a ideologia como conjunto de preconceitos. Basta folhear os jornais ou ligar a TV para perceber que há muitos factos óbvios que andam a ser negados. Em nome de elevados ideais e princípios, claro.
Se clicar no nome dos livros poderá obter mais informações acerca deles.
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