quarta-feira, 17 de junho de 2009

Uma crença pode ser útil mas falsa

Alguns autores defendem que o papel da religião na vida humana é muito positivo, pois esta constitui um apoio psicológico fundamental para as pessoas, nomeadamente devido ao consolo que proporciona perante a morte.

Ao comentar essa ideia, Richard Dawkins (A Desilusão de Deus, Casa das Letras, 2007, pp.30-31) observa que «é assombroso o número de pessoas incapazes de compreender que ‘X é reconfortante’ não implica dizer que ‘X é verdadeiro’» e que «a eventual carga de consolo de uma determinada crença não faz subir o respectivo valor em termos de verdade».

Pode-se fazer o mesmo raciocínio relativamente a outras coisas apreciadas devido à sua utilidade: o facto de K ser fácil não implica que K seja verdadeiro; o facto de W dar prazer não implica que W seja verdadeiro; o facto de Z ser oportuno politicamente não implica que Z seja verdadeiro; etc.

(Por outro lado, o facto de Y me aborrecer não implica que Y seja falso.)

Uma crença útil (porque consola, porque favorece interesses políticos ou pessoais, etc.) mas falsa, terá uma utilidade duradoura ou apenas imediata? Essa utilidade será genuína ou meramente aparente?

6 comentários:

J.M.P.O disse...

Foi esse argumento que sempre me dificultou a compreensão do cristianismo de Unamuno! Quer no “Do Sentimento Trágico da Vida” quer depois no “San Miguel Bueno, Mártir” percebo que ele, por ter pena das outras pessoas lhes não pregue o ateísmo que provém da razão mas não percebo que ele se tente auto-convencer com uma doutrina da qual só retira consolação e não a verdade, dando, no entanto, a importância que dá à verdade.

Percebo a obra na medida em que ela explica a crença dos outros mas já não a percebo como explicação para a crença do Autor.

Carlos Pires disse...

JMPO:

Nunca li Unamuno, mas se for como diz ele incorre numa contradição.

Quanto à outra ideia, que o JMPO diz compreender.
Fará sentido não defender publicamente o ateísmo por pena das outras pessoas? Parece-me uma atitude paternalista: "coitados, a verdade é boa demais para eles".
Por outro lado, não creio que esteja demonstrado que o ateísmo leve à infelicidade e que a religião seja uma ilusão necessária. É perfeitamente possível ter uma vida feliz, realizada, ética, etc., sem religião. Há muitas pessoas que conseguem. Por isso não há motivo para os ateus se sentirem inibidos com os supostos malefícios das suas críticas à religião.
Obrigado pelo comentário.

Cumprimentos.

J.M.P.O disse...

A ideia de Unamuno é basicamente esta: A minha razão diz-me que não há Deus mas o meu medo da morte e a minha ânsia por continuar a viver dizem-me que Ele existe. Ele diz, numa passagem que é preferível o Inferno à morte (Do sentimento trágico da vida).

Percebo o que quer dizer mas a ideia apesar de paternalista não tem essa conotação negativa que lhe atribui. Na novela São Miguel Bom, Mártir, o personagem principal é um padre católico que é ateu mas que é padre para dar apoio às pessoas na morte, na Espanha do inicio do século XX. Para ele muitas daquelas pessoas que vê morrer descansadas porque acreditam que vão para o Céu morreriam de forma mais dolorosa se pensassem que não havia mais nada. Ele acabava por ser Mártir por viver atormentado com a ideia da morte que o esmagava e por causa disto não queria que as outras pessoas sentissem o mesmo temor da morte que ele.

Acho que essa novela foi publicada e traduzida pela Difel (lê-se muito bem nem que seja por ser pequena).

Quando disse que percebia a ideia não disse que concordava com ela, até estou bastante de acordo com aquilo que disse quanto à felicidade e a ética sem Deus! Contudo, pela minha experiência de vida (sou de uma zona de Portugal com fortes tradições religiosas e, apesar de estar perto ateísmo, quase fui padre) percebo, em termos sentimentais e não lógicos, um pouco este paternalismo.

Agora esta ideia não é lógica assim como não é lógico o agnosticismo (mas isto já dá pano para outras mangas).

J.M.P.O disse...

PS: Já agora que aqui estou (se é que não incomodo) e o tema do post quase que estica até lá, gostava de lhe colocar uma questão. Apesar de a ideia de deus não ser necessária para ter uma concepção de Ética ela dá muito jeito principalmente no que toca à doutrina do Direito. A ideia de direito foi excessivamente simplificada com o positivismo(apesar de esta teoria ter dado um maior cunho analítico ao direito principalmente com Kelsen e Hart) que se funda na separação entre o ser e o dever ser que tem um cunho ateísta. Com esta doutrina de Montaigne e de Hume passa a ser muito difícil encontrar um lugar onde encostar escoras para uma teoria da justiça que limite o direito bruto dos positivistas. (Tenho cinco textos no meu blogue com o título “Deus e o Direito” não estão grande coisa mas expressam melhor o meu fraco entendimento sobre a questão).

Carlos Pires disse...

Obrigado pelos seus comentários, JMPO.

Agora não tenho tempo, mas amanhã darei uma espreitadela aos textos sobre o direito e Deus. E responderei ao seu penúltimo comentário.

Luís Mendes disse...

Continua a parecer-me válido o dito segundo o qual "se Deus morreu tudo é válido". A não ser que substitua a crença em Deus por outra qualquer, de igual modo pilar do seu sistema ético.

As éticas positivistas, as éticas ateístas partem de pressupostos, de pressupostos tão arbitrários como a existência de Deus. Pois, se não colocarem esses pressupostos, não têm como os demonstrar válidos. Dou um exemplo: a vida como um valor é um pressuposto de muitos ateus. Mas qualquer defesa desse pressuposto invariavelmente parte do próprio pressuposto. Por outro lado, retiram conclusões éticas de factos, partindo precisamente de pressupostos éticos, quando eram estes que estavam em dúvida. Por exemplo: assumindo como facto que os animais não são racionais, nem conscientes de si, alguns retiram a conclusão de que nós temos o dever de os defender, quando o facto propriamente dito não diz nada disso, a não ser que se tenham pressupostos para tal. Pode-se, a partir do mesmo facto, afirmar que, uma vez que não são conscientes nem racionais, estão à nossa disposição como meios.

Pode-se ser feliz sem Deus se tivermos outras crenças intelectualmente correctas (no mesmo sentido em que há o politicamente correcto) num dado momento. Mas então, não vejo nenhuma razão para que se critique a crença em Deus quando simplesmente se pretende substituí-la por outras. Como a "ética do filho", ou a "ética verde", ou a "ética humanitária" - cada uma com os seus dogmas.