quinta-feira, 23 de abril de 2009

Objecção a Descartes: o Cogito é um entimema e não uma crença básica

Segundo Descartes, o Cogito (o “Penso, logo existo”) é uma crença básica. Ou seja: trata-se da crença numa ideia cuja verdade é tão evidente que não precisa de uma justificação exterior; com base nela podemos justificar outras ideias, mas ela mesma não precisa de ser justificada por outras ideias: autojustifica-se.

Graças a essa característica do Cogito é possível, segundo Descartes, refutar o argumento céptico da regressão infinita da justificação.

Porém, é duvidoso que o Cogito seja realmente uma crença básica. Vejamos porquê.

“Penso, logo existo”: conseguiríamos compreender a ideia expressa por essa frase se antes não compreendêssemos outras ideias? A verdade dessa ideia seria tão evidente se não conhecêssemos previamente a verdade de outras ideias? Dificilmente.

O que se passa é que dizemos “Penso, logo existo” sem explicitar todas as ideias envolvidas. O que na realidade pensamos ao dizer tal frase é isto:

Se penso, então existo.
Penso.
Logo, existo.

Sem a ideia contida na primeira premissa não seria possível afirmar “Penso, logo existo”. Por isso, o Cogito é, afinal, um entimema: um argumento com uma premissa subentendida. Explicitando esta obtemos um Modus Ponens (afirmação do antecedente).

O que essa primeira premissa diz é que pensar é uma condição suficiente da existência e que, portanto, todos os que pensam existem. O pensamento exige um pensador, um autor do pensamento. Mas essa relação não é recíproca: é falso que se “existo, logo penso”, pois posso existir e não pensar (por exemplo se estiver num sono muito profundo ou em estado vegetativo). A evidência do “Penso, logo existo” é uma consequência dessas ideias.

Ou seja: o conhecimento do Cogito resulta de uma inferência, de um raciocínio. Trata-se de um conhecimento derivado. Ora, uma crença básica tem de ser conhecida directamente – tem de ser um conhecimento primitivo (não inferencial). Por isso, o Cogito não é uma crença básica.

Se o Cogito não é uma crença básica, então Descartes não conseguiu refutar o argumento céptico da regressão infinita da justificação.

Se Descartes não conseguiu refutar o argumento céptico da regressão infinita da justificação, então não conseguiu demonstrar que o conhecimento humano é possível.

Bibliografia:

Aires Almeida e outros, “A Arte de Pensar – 11º Ano”, Didáctica Editora, Lisboa, 2008.

Simon Blackburn, “Pense – Uma Introdução à Filosofia”, Gradiva, 2001.

7 comentários:

Anónimo disse...

Cara Sara:
Fiquei com muitas dúvidas relativamente ao Descartes que eu estudei e gostaria que me elucidasse, para não correr riscos de tomar o que sei como se fosse o que de facto há para saber.

1) A Sara defende que o "cogito" não é uma crença básica, mas antes inferencial, portanto passível de ser deduzida de outro princípio. Ora, Descartes não pôde ter deduzido o "cogito" de outro princípio se com a aplicação da dúvida metódica suspendeu a crença relativamente aos sentidos, às faculdades mentais, à extensão,...
Eu julgava, mas admito que o julgasse mal, que Descartes teria encontrado uma certeza (nem sei se é básica ou não, confesso), um princípio indubitável e auto-evidente do facto de estar a duvidar, muito por influência do preceito agostiniano "Se fallo, sum". A meu ver, Descartes não pretende deduzir a existência do acto de pensar, apenas pretende dizer que pode duvidar de tudo menos de que está a pensar, portanto, existe uma "res" que disponível para se enganar, disponível para ser enganada, e essa "res" tem necessariamente que existir, porque senão não teria qualquer sentido em usar a dúvida.
De facto, no "Discurso do Método" Descartes fala de "penso, logo existo", mas o "cogito" aparece sob outras formas nas outras obras: por exemplo, nas "Meditações de Filosofia Primeira", posteriores ao Método, ele nem sequer fala de "penso, logo existo", mas "eu sou uma coisa pensante".

Reparo que me alonguei, mas espero que tenha percebido a minha dúvida.
Obrigado pela sua atenção!
Votos de continuação de um bom trabalho,
L. Martins

Sara Raposo disse...

L. Martins:

Um esclarecimento prévio:
Não sou eu que defendo essa ideia, aliás o post foi escrito pelo meu colega e não por mim. Refutar a tese cartesiana de que o cogito seja uma crença básica (nas palavras de Descartes: um princípio indubitável captado intuitivamente - de forma imediata - pelo pensamento) é uma objecção a Descartes que pode encontrar, por exemplo no manual de Filosofia do 11º ano adoptado na nossa escola: A arte de pensar. Este post pretende ser um esclarecimento dessa crítica a uma das ideias cartesianas e foi apresentada por filósofos que defendem uma teoria do conhecimento diferente da de Descartes.

É dito no post que perceber a ideia do cogito (Eu penso, logo existo) implica, ao contrário do que Descartes pretendeu, um raciocínio ou uma forma de argumento condicional, designada por modus ponens: Se eu penso, então eu existo. Eu penso. Logo, eu existo. Portanto, não se trata de uma ideia cuja razão conceba de forma clara e distinta (por intuição), mas a sua compreensão pressupõe uma dedução. Não é, portanto, uma crença que se auto-justifique (como pretendia Descartes), mas que só pode ser inferida de outras crenças.

Segundo Descartes não é possível duvidar do acto de pensar porque o pensamento é condição de possibilidade da própria dúvida: se eu duvido, penso e por isso tenho de existir. Não se pode pensar sem existir, ou seja, é da certeza do eu como ser pensante que se conclui a sua existência. A certeza relativa ao acto de pensar, segundo Descartes, nada garante acerca dos conteúdos do pensamento do sujeito, que continuam suspensos pela dúvida hiperbólica introduzida pelo argumento do génio maligno. Só depois de provar Deus, a existência da realidade exterior pode ser racionalmente garantida.

Quanto às diferentes designações que Descartes utiliza nas suas obras para designar o mesmo princípio indubitável: o cogito, que eu saiba não alteram o significado fundamental da ideia que ele pretendeu defender. Mas, admito, posso não ter todas as informações, se tiver dados que demonstrem, que pelo contrário, que isso acontece nas diferentes obras que Descartes escreveu, eu agradeço que os apresente.

Espero ter esclarecido algumas das suas dúvidas, se isso não acontecer, terei prazer em voltar a trocar ideias consigo.

Cumprimentos.

Anónimo disse...

Viva Sara e agradeço-lhe a sua resposta.
Vou começar pelo fim. As variações quanto à designação do "cogito" aparecem, por exemplo, nas Meditações, em que ele apenas refere "sou uma coisa pensante" e evita o "cogito, ergo sum".
Fui consultar o manual de que falou e não encontrei nenhuma indicação de que essa objecção seja válida. No livro do professor, do mesmo manual, eles negam a possibilidade de o "penso, logo existo" ser um argumento. Mas enfim, claro que se pode tornar num contra-argumento interessante, eu é que nunca tinha visto o problema dessa maneira.
Agradeço-lhe as explicações!
Um forte abraço,
Luis Martins

Sara Raposo disse...

Luís Santos:
Agradeço a sua leitura atenta do meu comentário e também a sua resposta. Infelizmente, por razões profissionais, não tenho tido tempo para responder e fazer alguns esclarecimentos em relação ao que escreveu. Vou fazê-lo só agora e deixo algumas considerações sobre as quais lhe peço, caso discorde do meu ponto de vista, que apresente as suas razões.

1º As variações que Descartes introduz na formulação do cogito nas suas diversas obras são um facto, a minha questão era se essas diferentes formulações alteram ou não o modo como deve ser entendido o primeiro princípio da filosofia cartesiana.

2º Refere que “consultou o manual indicado e não encontrou nenhuma indicação de que essa objecção seja válida”. Pergunto-lhe: o que significa para si, neste contexto, ser válida?
Na pág. 149 do referido manual (exercício 7) diz o seguinte: «Há quem defenda que “penso, logo existo” é um argumento com uma premissa suprimida ou omitida (por outras palavras um entimema). Qual seria essa premissa?”

No livro do professor pode encontrar a resposta à questão formulada:” Para pensar é preciso existir” (o que é equivalente à proposição condicional, utilizada no post: Se penso, então existo). Assim, as ideias apresentadas no post em causa pretendiam ser uma explicitação, sobretudo destinada aos alunos, da resposta a este exercício do manual (adoptado na escola onde eu e o meu colega leccionamos).

3º Afirmou que no livro do professor do mesmo manual “eles negam a possibilidade do penso, logo existo ser um argumento”. Pelo que eu pude ler e perceber (mas admito que possa estar errada), o que é dito na solução apresentada para a questão 8 no livro do professor é que na perspectiva de Descartes as duas alternativas apresentadas na questão formulada não se aplicam: “o penso, logo existo” não é uma inferência, nem são duas crenças. O que é óbvio, pois Descartes defende que o primeiro princípio da sua filosofia é captado de forma imediata (por intuição) pela “luz natural” da razão e não implica qualquer tipo de raciocínio dedutivo.

Pode acontecer que eu esteja equivocada, nesse caso agradeço os seus esclarecimentos e a sua disponibilidade para trocar ideias.

Cumprimentos.

Sarabanda disse...

Depois de ler todos estes comentários, e tendo ficado a refletir sobre o primeiro, no qual se defende que o cogito, ergo sum
é, afinal, um argumento e não uma intuição, atrevo-me a participar na discussão. De facto, Descartes atinge o cogito como uma espécie de despertar do esforço voluntário de exercer a dúvida radical e, nesse momento, descobre (como uma espécia de eureka) que, enquanto meditava e se forçava a duvidar, pensava e existia (assim em conjunto), e que esta verificação lhe dava uma certeza tão clara e evidente que dela não podia, por mais esforços que tivesse feito, duvidar. O penso surge em primeiro lugar, na medida em que é no ato da dúvida que ele se percebe como um pensante; o existo surge depois porque, no plano da reflexão Descartes verifica de que para pensar é preciso existir ainda que não saiba o que é isso que efetivamente existe. Há dois planos ou níveis na filosofia cartesiana: no do pensamento ou gnoseológico, o eu penso surge antes do eu existo; no plano da existência ou ontológico o existir é uma condição do pensamento. Logo, admitir que o penso, logo existo é, afinal, um argumento, uma inferência, com premissas ocultas invalida todo o esforço cartesiano da dúvida, o método catártico de suspensão do juízo e o valor inestimável dessa primeira intuição. Aliás, o peso dessa evidência é tão contundente e esmagador para o próprio filósofo que, vendo-se imerso no solipsismo (nada pode deduzir acerca do pensamento e da existência seja do que e de quem for, pois o trajeto foi estritamente pessoal e solitário) se esforça sucessivamente em destruir o poder da intuição aplicando-lhe a dúvida. Não consegue rebater a evidência e, numa tentativa que creio desesperada para quebrar essa barreira impossibilitadora de navegar para outros territórioa a demonstrar e a provar, se ocupa, desta vez nos meandros da lógica, a provar a existêcia de Deus.
(Agora reparo que esta discussão sobre o cogito cartesiao data de 2010...)

Merit disse...

pra mim, só existe quem duvida! rsrs

Unknown disse...

Para você, o cogito é uma verdade indubitável, inquestionável?