sábado, 4 de abril de 2009

O que pode acontecer na ausência do Estado? – Um exemplo (2)



Eis as palavras e a reflexão de Ryszard Kapuscinski referidas no post anterior:

“ (…) Sentia que, no país de O Coração das Trevas [o romance de Joseph Conrad] o terror da guerra ia crescendo, sobretudo, por causa dos tiroteios que surgiam por ali, das ameaças de ir preso, de sovas e de morte, que geravam um clima cansativo de incerteza, de imprevisibilidade e de falta de informação. Tudo mudava, rapidamente, para pior, em qualquer lugar e a qualquer hora. Não havia nenhuma autoridade, nenhumas forças da ordem. O sistema colonial tinha desaparecido, a administração belga fugira para a Europa e, no lugar dela, surgiu uma força cega e louca que, na maioria dos casos, se manifestava na presença de gendarmes [polícias] congoleses bêbados.

Era possível constatar quão perigosa se torna a liberdade desprovida de hierarquia e de qualquer ordem, aproximando-se, assim da anarquia imune à ética e à lei. Numa situação destas, de imediato tomam a liderança forças agressivas do mal, manifestando-se na forma de baixezas, barbaridades e bestialidades. Foi assim no Congo dominado, naqueles tempos pelos gendarmes. O encontro com qualquer um deles podia ser uma experiência perigosa. Certa vez estava a caminhar pela rua na pequena vila de Lisali.

Sol, silêncio e nem vivalma.

Dois gendarmes caminham na minha direcção. Fico apavorado, mas fugir não vale a pena, e não há para onde escapar, está um calor medonho e mal consigo andar arrastando penosamente os pés. Os gendarmes estão vestidos com uniformes de guerra (…). Cada um deles tem uma espingarda automática, granadas, facas, foguetes, matracas, navalhas, todo um verdadeiro arsenal portátil. Para que levam tudo isto?, penso.

Vestidos com camisas e calções, talvez fossem moços bem-educados que indicassem o caminho a quem perguntasse. Mas o uniforme e as armas transformaram-lhes completamente o carácter e a atitude, além de desempenharem mais uma função, que era a de dificultar ou quase impossibilitar o normal contacto humano. Agora não tinha à minha frente pessoas normais, das que encontramos no dia-a-dia na rua, mas seres desumanizados, como marcianos vindos de outro mundo.

Ao aproximarem-se, eu suava nervosamente, as pernas tornavam-se-me pesadas como se fossem chumbo. O problema residia no facto de tanto eles como eu sabermos perfeitamente que da sua decisão não havia nenhum recurso, nenhuma hierarquia superior, nenhum tribunal: se batem, batem, se matam, matam. Esses são os únicos momentos em que sinto uma solidão mais profunda: quando estou sozinho perante uma violência impune. O mundo esvazia-se, despovoa-se e desaparece.

Ainda por cima, nesta cena na rua de uma pequena vila congolesa não só participam dois gendarmes e um repórter. Está aqui presente também um fragmento da história universal, com que há muito tempo, há muitos séculos fomos confrontados. Agora aparecem entre nós gerações de traficantes de escravos; surgem esbirros do rei Leopoldo que cortavam mãos e orelhas aos avós dos gendarmes e que estão aqui presentes com chicotes de feitores de plantações de algodão e de cana-de-açucar. A lembrança destas atrocidades foi transmitida durante anos pela literatura oral, de diferentes tribos, e aqueles dois que encontrei então na rua seguramente tinham sido criados naquele clima. Para agravar, essas lendas terminavam sempre com uma promessa de vingança. Agora chegou este momento e tanto eles como eu o sabemos perfeitamente.

Que vai acontecer? Já estamos perto, pertinho.

Por fim param.

Eu paro também. E então de debaixo daquele monte de armamento e ferro chega uma voz, que nunca vou esquecer, por causa do seu tom humilde de pedinte:

- Monsieur, avez-vous un cigarette, s' il-vous plaît?

Era curioso ver o meu empenho, a minha pressa, mesmo servilismo a tirar do bolso um maço de cigarros, o último que tenho, mas não interessa, não interessa, tomem, meus caros, sentem-se e fumem tudo até ao fim!”

Ryszard Kapuscinski, Andanças com Heródoto, Editora Campo das Letras, Porto, 2007, pp 135-136.

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