Pedi aos alunos das turmas C, D e F do 10º ano que elaborassem na aula um ensaio argumentativo sobre um dos temas da ética aplicada: o aborto.
Eis um deles, da autoria da aluna Katayoune Shahbazkia (turma C do 10º ano) :
Será o aborto moralmente permissível?
Na minha opinião, sim, com algumas excepções, a saber: quando o feto adquiriu senciência (capacidade de sentir, que existe quando há um sistema nervoso), ou se o aborto é apenas uma questão do casal não gostar do sexo do seu futuro bebé (o que acontece nalguns países - como por exemplo na Índia - onde o facto do feto ser do sexo feminino pode ser uma razão para abortar).
Na primeira excepção, penso que é imoral dado que, hoje em dia, um ser humano é considerado morto quando o seu sistema nervoso já não funciona. Portanto, um feto pode-se considerar um ser humano quando desenvolveu um sistema nervoso. Ora é imoral matar seres humanos. Logo, é imoral abortar um feto que adquiriu senciência.
A segunda excepção (não permitir o aborto exclusivamente devido ao sexo da futura criança) justifica-se porque as consequências seriam muito nefastas: primeiro, iria ocorrer um desequilíbrio dos seres humanos masculinos-femininos. Esta situação iria resultar de uma baixa significativa da natalidade. Por sua vez, esta consequência iria conduzir ao envelhecimento da população. Como o envelhecimento da população levanta problemas sociais e económicos, é prejudicial. Então, não se deve abortar se tal acção se baseia somente não aceitação do sexo do futuro bebé.
Já explicadas as excepções, irei focar-me na minha tese geral - o aborto é moralmente permissível. Para justificá-la, peço ao leitor de imaginar a seguinte situação:
Suponhamos que é uma mulher que vive num país onde o aborto é ilegal. Aos seus olhos, tem tudo para ser feliz: independência, estudos em curso que a vão levar ao emprego que gosta e encontrou o “homem perfeito”. Agora pensemos que engravida indesejadamente. E agora? Bem agora tem de aguardar o futuro bebé, a não ser que possa mudar-se para um país onde o aborto é legal ou se infringir as leis do país em que reside.
O “homem perfeito”, ao saber tal notícia, assusta-se, diz-se que é muito novo para ser pai. Resultado: abandona-a. Não desanime, são “só” todos os seus planos e a sua vida de mulher independente a desaparecer. Agora tem que mudar tudo em função do bebé. Ora, um bebé não é como uma boneca, que quando nos fartamos deixamo-la de lado. Um bebé, para se desenvolver da forma correcta, na sociedade em que vivemos, precisa de tempo, amor e dinheiro. Bem, então esqueça os estudos, vai ter que dar tempo ao bebé. Mas se não prosseguir os estudos como poderá arranjar um bom emprego, que lhe permita sustentar o bebé e a si mesma? Não haverá dinheiro. Então, se calhar, tem de trabalhar mais? Mas assim não haverá tempo. E, já agora, será que você deseja deixar tudo pelo bebé? Será que sente amor por ele, que, basicamente, foi a razão do fim da sua vida independente e dos seus projectos futuros?
É obvio que, na maioria dos casos, a mulher sente amor pelo(a) filho(a) e fica perante um dilema em que qualquer das decisões terá consequências indesejadas. De qualquer maneira, irá sofrer (tal como a sua descendência): ou porque não queria ter o bebé nesse momento da sua vida, ou porque não tem as condições necessárias para tratar correctamente dele. Será que tudo isto não estaria melhor se você pudesse ter abortado? Ainda teria a sua vida independente pela frente, os seus estudos. Se calhar o “homem perfeito” não se teria precipitado, e poderia ter pensado melhor, ficando consigo e concordando em ter mais cuidado no futuro, podendo, mais tarde (quando tivessem condições propícias) gerar descendência(s). E o tal bebé que não teria uma boa vida não teria sofrido, nem saberia que tinha perdido algo. Daí resultaria uma maior felicidade, sem dúvida.
No entanto, certas pessoas rejeitam este argumento dizendo que um feto é um ser humano em potência e que, como não se deve matar seres humanos, está errado abortar (matando os fetos, potenciais humanos). Mas se admitirmos esta ideia da potencialidade como correcta, então teremos de deixar de dizer aos criminosos que quando matam estão a cometer um acto imoral: Eles “apenas” mataram potenciais mortos. Toda a gente acaba por morrer, eles só aceleraram o processo. Obviamente que toda a gente, a não ser os próprios criminosos, rejeitará esta ideia, que é, e disso não há dúvidas, imoral.
Voltando à situação que pedi anteriormente que imaginasse: Será justo o homem poder escolher se quer ou não ficar com o bebé, enquanto que você, a mulher, que tem um papel fundamental no desenvolvimento do feto, não? Não.
Desta vez, os defensores da imoralidade do aborto dirão que a mulher, que é um ser racional e consciente, ao ter relações sexuais sabia que havia a possibilidade de engravidar. Portanto, deverá assumir a responsabilidade pelas consequências decorrentes das suas acções.
Refuto este último argumento da seguinte forma: Um ser humano é um ser racional, ou seja, tem a capacidade de avaliar e analisar o que está correcto ou incorrecto, numa dada altura. O casal é o único que tem o direito de avaliar e decidir se quer ou não ter um bebé. Mas o sexo não é entendido somente como um acto de procriação, é também uma manifestação de afecto. Isto quer dizer que há a possibilidade da mulher engravidar, mesmo que o casal tenha decidido e avaliado que não queria um bebé, naquela altura (uma vez que os métodos contraceptivos não são 100% seguros). Ora, se existir a possibilidade de abortar porque não se considera esse acto imoral, ou seja, há a possibilidade de satisfazer a decisão racional do casal (não querem um bebé). Contudo, se não lhes for permitido abortar por ser imoral, estamos a negar ao casal o seu direito, que se baseia na capacidade de avaliar e decidir o que está certo ou errado, num certo momento da sua vida. Isto significa que estamos a negar a possibilidade de uma escolha racional que diz respeito à vida privada de cada pessoa. Mas não permitir fazer essa escolha é algo errado, pois o ser humano é, de facto, um ser racional e deve poder decidir como quer viver. Em suma, a imoralidade do aborto e a sua consequente ilegalidade é inaceitável e contraria alguns direitos fundamentais que todas as pessoas devem ter.
Dito isto, reafirmo a minha tese: sou a favor do aborto, a não ser que o feto já tenha adquirido senciência ou se os pais decidem fazê-lo apenas pelo facto do sexo do futuro bebé não lhes agradar.
Katayoune Shahbazkia
5 comentários:
Concordo plenamente com Katayoune (espero não ter errado o nome). Um filho é uma grande responsabilidade, não é como um cachorrinho que quando não se está bem, empurra e manda para a sua casinha. Uma mãe praticamente abdica de sua vida, projetos, em prol da felicidade, educação e desenvolvimento (física e mental). A vida de uma mulher que é mãe é completamente diferente da que não é. Por mais felicidade que um filho traga, e são muitas, mas a mulher tem de estar preparada para esse momento.
Portanto, deveria caber à mulher a decisão de ser ou não mãe.
Patrícia,
Agradeço o seu comentário. Julgo que a minha aluna conseguiu transmitir, de uma forma clara e rigorosa, alguns dos argumentos a favor do aborto. Concorde-se ou não com as ideias apresentadas, é um facto que as diferenças biológicas entre os sexos introduzem algumas diferenças fundamentais na abordagem que se pode fazer do assunto, tal como ela faz notar.
Cumprimentos.
Achei interessante a postura da estudante, porém achei de porte raso a sustentação do argumento, principalmente na conclusão da tese ("Em suma, a imoralidade do aborto e a sua consequente ilegalidade é inaceitável e contraria alguns direitos fundamentais que todas as pessoas devem ter."). Quando invoca-se algum direito fundamental, pressupõe-se que se trata evidentemente daquele relativo ao ser humano, e por assim, não há simplesmente como refutar o fato de o feto ser um ser humano em potencialidade simplesmente negando isto.
A analogia com o assassinato não é válida, pois o fundamento da lei, como a própria estudante evidencia no último parágrafo, é a garantia de um direito fundamental. No caso o direito em questão é a vida. Não cabe comparação de "potencialidade de vida" com "potencialidade de morte" (sic), a morte não é um direito fundamental.
Tampouco serve como argumento a impossibilidade de um método 100% anticoncepcional. Isso é generalização de casos. Uma gravidez oriunda de uma tentativa de anticoncepção fracassada é uma coisa, uma gravidez indesejada é outra. E o argumento do 100% pode ser utilizado de maneira mais incisiva para o lado oposto, o fato de ser conhecido que nenhum método anticoncepcional é 100% seguro já pressupõe que o casal sabe que poderá resultar em uma gravidez o ato sexual. Logo o ato é sempre consciente, ou pelo menos deveria sempre ser.
No mais, a estudante demonstra uma veia crítica muito acurada.
sds, Enrique
Já que ela está numa fase tão dificil e não quer ter filhos, então por que ela faz sexo?
Ela faz sexo por que ela quer!
Se ela quer fazer sexo, que fique atenta aos ricos e assuma-os.
É como um homem que quer escalar o Everest sem risco de morrer. Isso não existe!
Homens com mais de 20 anos de esperiência em escaladas já morreram no Everest.
Seu sonho é escalar o Everest?
Você adora escalar o Everest?
Então, assuma as consequências de suas próprias atitudes!
Enrique,
quando você diz que "Uma gravidez oriunda de uma tentativa de anticoncepção fracassada é uma coisa, uma gravidez indesejada é outra." qual a explicação para diferenciar as duas situações? Pois, se desejo não engravidar e para tanto utilizo da anticoncepção, certamente que, se sobrevier uma gravidez, ela será indesejada.
Outro ponto, que me chama atenção, é ter afastado a possibilidade do aborto e reforçado a tese oposta, pela consciência do casal de que os métodos contraceptivos não são 100% eficazes. Ora, o casal sabe dessa probabilidade, é justamente por isso que deseja abortar ou deseja ter o direito à abortar. Se tais métodos fossem 100% garantidos não haveria explicação (muito menos fundamentos) para desejar o aborto. O aborto nessa hipótese, se reduz no respeito à decisão racional do casal em não ter filhos (como muito bem disse a autora). Do contrário, você estaria defendendo a completa abstinência sexual do casal, em razão da possibilidade de ter filhos, o que definitivamente violaria os direitos fundamentais.
PS.: Espero não ter visto o post muito tarde! rsrs
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