segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Deus? Qual deles?

O fotográfo Andy Craddock usou uma igreja anglicana do século XIII como cenário para um ensaio fotográfico erótico e não escapou a um processo judicial (sendo acusado de violação da propriedade privada, pois fotografou sem autorização). Segundo as autoridades anglicanas, o que Craddock fez é uma blasfémia. Em entrevista ao jornal i, Craddock defendeu-se dizendo que a Igreja Anglicana só poderia acusá-lo de blasfémia se provasse que Deus existe. (Leia mais aqui.)

O único aspecto da história que merece alguma atenção é essa afirmação de Craddock. Se – por hipótese - se provasse que Deus existe, já seria racionalmente defensável a Igreja Anglicana acusar alguém de blasfémia? Vou procurar mostrar que não.

Se – por hipótese - descobríssemos que um dos argumentos clássicos a favor da existência de Deus (por exemplo o argumento ontológico ou o argumento do desígnio) prova a existência de um tal ser, não saberíamos ainda assim qual das religiões é verdadeira.

O “ser mais perfeito do que o qual nada pode ser pensado” do argumento ontológico é compatível com qualquer uma das religiões monoteístas. Por isso, mesmo que considerássemos verdadeira a conclusão (“Deus existe”) desse argumento, isso por si só não nos permitiria decidir qual dessas religiões é verdadeira. (Para ler mais sobre o argumento ontológico veja aqui e aqui.)

Quanto ao argumento do desígnio a situação é ainda mais confusa, pois esse argumento é compatível não só com as religiões monoteístas mas também com muitas religiões politeístas. Este argumento procura mostrar que o Universo teve necessariamente um Criador inteligente. Ora, mesmo que se admitisse essa necessidade isso não implicaria que esse Criador tivesse as características referidas pelas religiões monoteístas: poderia tratar-se, por exemplo, de um ser muito poderoso, mas não omnipotente; muito sábio mas não omnisciente; poderia não ser sequer o único Criador – como sucede em diversas religiões politeístas. (Para ler mais sobre o argumento do desígnio veja aqui.)

Numa religião existem diversas crenças específicas associadas à crença na existência de Deus. Religiões como o Judaísmo, o Cristianismo ou o Islamismo têm crenças específicas diferentes, apesar de partilharem uma concepção de Deus bastante semelhante. Quando atrás escrevi que, mesmo que a existência de Deus fosse provada, não saberíamos qual das religiões é verdadeira, queria dizer que essa prova não nos permitiria escolher racionalmente entre os vários conjuntos de crenças específicas que existem.

Uma acusação de blasfémia implica algumas dessas crenças específicas. Por isso, mesmo que descobríssemos que um desses argumentos é sólido não seria racionalmente defensável fazer uma afirmação como “a ideia Y é blasfema”.

6 comentários:

João disse...

Hum... Se se provar que Deus existe depois ainda cabe provar que Deus desaprova o erotismo ou pelo menos que se preocupa com o local onde ele tem lugar.

Carlos Pires disse...

Exacto, João.

A ideia de Deus, apesar de todas as dificuldades que levanta, ainda é a parte menos irracional da religião.

Todas as outras crenças mais específicas (as proibições ligadas ao sexo, por exemplo) são muitas vezes absurdas.

Mas independentemente da sua maior ou menor plausibilidade, o que me espanta sempre um pouco é:
como é que se atrevem a sugerir que aquilo faz parte da vontade de Deus? Como é que alguém pode presumir que conhece a vontade de um ser que apelida de perfeito, infinito, omnisciente, etc? essa presunção (em que se baseiam as acusações de blasfémia) é muito, muito irracional.

João disse...

"como é que se atrevem a sugerir que aquilo faz parte da vontade de Deus?"

É uma luta de poder. Cada vez mais me convenço disso. Não há melhor argumento para uma discussão do que invocar Deus ou superpoderes.
(Já não sei quem é o autor desta frase).

Por falar nisso, tu é o autor da frase:

"sim, é verdade que a verdade não existe." ?

É uma maneira muito simples de provar a inconsistencia de qualquer sistema que não tenha um critério de verdade. Como tu sabes. Mas nunca a tinha ouvido ou lido antes.

Carlos Pires disse...

João:

1. Talvez o autor da frase que utilizaste seja o R. Dawkins - num capítulo qualquer do livro "A delusão de Deus" ele faz considerações dessas.

2. A última vez que li uma frase parecida à que escrevi creio que foi num texto de Desidério Murcho ("Verdade", no livro "A minha palavra favorita"):
"A noção de verdade não é uma fantasia mitológica, como os deuses da antiguidade clássica, pois pode-se abandonar as noções mitológicas mas não a noção de verdade. Pode-se abandonar sem pena de incoerência a noção de Zeus porque se pode afirmar que é verdade que Zeus não existe. Mas não se pode abandonar sem pena de incoerência a noção de verdade porque não se pode afirmar que é verdade que a verdade não existe." - http://criticanarede.com/html/ed103.html

Anónimo disse...

Andy Craddock parecia burro, não sabia respeitar opiniões. Simples.

Charles Andrade disse...

A Igreja Anglicana surgiu no século 16. Portanto, não há "igreja anglicana do século 13".