segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Polícia apreende livros por considerar a capa pornográfica... Na Coreia do Norte? Não, em Portugal!

"A PSP de Braga apreendeu hoje numa feira de livros de saldo alguns exemplares de um livro sobre pintura. A polícia considerou que o quadro do pintor Gustave Courbet, reproduzido nas capas dos exemplares, era pornográfico, adiantou uma fonte da empresa livreira. (...)
O quadro do pintor oitocentista - tido como fundador do realismo em pintura - expõe as coxas e o sexo de uma mulher, sendo, por isso, a sua obra mais conhecida. Pintado em 1866, está exposto no Museu D'Orsay em Paris."


Trata-se de uma notícia do jornal Público. Clique aqui para ler mais.

Para haver uma limitação legítima da liberdade de expressão é preciso que o uso desta colida claramente com outros direitos. Caso contrário é censura. Uma boa maneira de determinar se deve ou não haver essa limitação consiste em aplicar o princípio do dano, de Stuart Mill. Este diz que o Estado só deve interferir na vida das pessoas quando estas realizam acções susceptíveis de prejudicar outras pessoas. O prejuízo que possam eventualmente infligir a si mesmas não conta para o efeito.

Não se consegue ver qual possa ser o prejuízo para terceiros neste caso. Tratou-se por isso de um acto de censura. Ora, Portugal é um país democrático cuja constituição proíbe a censura e consagra a liberdade de expressão, no seu artigo 37.
Tendo em conta que, nos tempos mais recentes, ocorreram na sociedade portuguesa várias situações em que parecem ter existido tentativas de censura (veja-se por exemplo o caso patético do Carnaval de Torres Vedras, em que uma Procuradora tentou impedir uma sátira ao computador Magalhães, invocando também o pretexto da pornografia), talvez haja razões para nos preocuparmos com a saúde da nossa democracia.

Para terminar queria colocar uma questão aos leitores do Dúvida Metódica, principalmente (mas não só) se forem alunos, pais e encarregados de educação, professores ou até autores de blogues.
No artigo do Público vem reproduzido o quadro de Coubert (intitulado "A origem do mundo") e que, de resto, é fácil de encontrar na Internet. Teria sido fácil incluí-lo neste post, mas decidi não fazê-lo. A minha questão é esta:

Teria sido errado pôr esse quadro neste post?

Para responder a essa pergunta, além de pensar acerca do problema filosófico e jurídico da liberdade de expressão e dos seus limites, é preciso ter em conta dois factos:
As características deste blogue (que antes de mais nada é um instrumento de trabalho que os autores utilizam com os seus alunos, quase todos menores de idade) e a circunstância de "A origem do mundo" ser uma obra de arte.

8 comentários:

Rolando Almeida disse...

Caro Carlos,
em contexto educativo arriscamo-nos ao exibir obras de arte com conteúdos como o corpo já que em causa está o preconceito. Não tenho por hábito usar esse tipo de materiais, muito embora racionalmente não me pareça problema algum exibir essas obras. No terreno da arte não temos um denominador comum e tudo depende da teoria a expor. Vamos supor que está a mostrar na aula a teoria da função simbólica de Goodman ou a teoria institucional de Dickie. Será errado usar como modelo o quadro em causa? O que me parece é que não precisamos de modelos para mostrar argumentos sobre teorias da arte e podemos esquivar-nos sempre ao pesadelo de enfrentar o preconceito. De todo o modo fez bem em levantar a questão. No meu blog também fiz um breve apontamento e usei como imagens o quadro em causa, um foto de Spencer Tunick e a capa do livro As onze mil vergas de Appolinaire. O que me parece errado é isto: pensar que um jovem não deve ver o quadro em causa é pensar que um jovem é incapaz de discernir entre o artístico e a pornografia e a própria realidade. Eu não penso isso dos jovens e nos casos em que algum deles revelar dificuldade sde discernimento, nós, professores e ducadores, devemos e podemos dar as ferramentas que ajudem a discernir.
A obra em causa tem um contexto específico e revela muito da época em que foi exibida. Não merece qualquer tipo de corte desta natureza.
abraços

Carlos Pires disse...

Olá Rolando.

Obrigado pelo comentário.

Não sei se percebi bem a frase "não precisamos de modelos para mostrar argumentos sobre teorias da arte". Se queres dizer que devemos explicar uma teoria sem dar exemplos discordo: embora seja possível, tem desvantagens didácticas e até filosóficas.
Mas provavelmente querias dizer outra coisa e eu não percebi.

Seja como for, o que dizes antes e depois parece-me certeiro. Relacionando com os exemplos: os exemplos devem constituir ilustrações das teorias filosóficas e não devem ser casos problemáticos ao ponto da análise se desviar da teoria para o próprio exemplo (a menos, claro, que a própria teoria explore casos problemáticos). Usar um nu susceptível de despertar preconceitos e moralismos para ilustrar a teoria institucional de Dickie envolveria esse risco - perfeitamente dispensável quando há tantos exemplos à disposição: "pinturas" com bosta de elefante, troncos de árvore levados directamente do campo para a galeria de arte, etc.

No entanto, o problema que tentei levantar no post é diferente. No post falei de liberdade de expressão. Disse que a apreensão de um livro com uma determinada capa foi um acto de censura e critiquei-o. Mas não mostrei a capa - ou seja, o quadro do Courbet.
Se no post tivesse falado do problema que houve com as caricaturas dinamarquesas a Maomé, eu teria colocado uma das caricaturas.

O facto de não ter posto o quadro poderá ser visto pelos meus leitores como uma autocensura que me impus ou como o respeito por 1 legítimo limite à liberdade de expressão (tendo em conta que quase todos os meus alunos são menores)?

Antes de dizer mais gostava de saber a opinião de mais leitores. Pais e encarregados de educação dos meus alunos, por exemplo, mas não só - claro!

Anónimo disse...

Como encarregado de educação concordo que para mostrar o seu ponto de vista não tem necessariamente de mostrar a figura da capa se alguem a quiser ver em pormenor sempre pode ver no link do publico.
A televisão já mostrou a dita capa
sendo assim já não se torna imperativo que a exiba de novo todavia penso que não se considera um acto de auto censura pois há terceiros que poderão ficar magoados se colocar no post o quadro.

Anónimo disse...

eu como aluno e encarregado de educação, nao acho que foi um motivo de autocensura ou outra coisa qualquer, mas bom senso, pois pais de alunos poderiam pensar outras coisas ao verem no ecrã de computador dos filhos imagens que pensariam nao vir de um blog de filosofia mas sim de outros sites. logo, apresentar um link para a imagem em vez de apresentar a imagem em si foi uma ideia sensata, sendo um blog de filosofia, mas se fosse um blog de arte, que falasse do assunto, a minha opinião ja muda, pois o assunto é uma obra de arte importante na história da vanguarda realista, e nesse caso acho que deveria ser apresentada mesmo se falando de alunos menores e etc.

Rui Barqueiro disse...

Choca-me mais a imagem que aqui já foi publicada, devido à recriação que faço do momento em que aquilo sucedeu:
O que é uma acção errada

Os pais que supostamente se terão queixado à PSP talvez sejam os mesmos que compram aos filhos jogos extremamente violentos e que contribuem bem mais para a deformação moral dos filhos. Há uns em que atropelar mulheres grávidas dá pontos extra e em que podemos ganhar a vida a matar, chular prostitutas e vender drogas a crianças. Os pais terão a noção disto ou, desde que os rebentos estejam entretidos e afastados da pornografia, não se importam?

A violência choca, mas o sexo, ou a sua leve menção, choca bem mais. Um
mamilo mostrado inadvertidamente por uma cantora durante um espectáculo
faz mover os guardiões da moral e bons costumes mais facilmente do que imagens de uma imolação pelo fogo.

Mas a pergunta não é de resposta fácil. Ou então é, e eu é que sou complicado.

Por mim, publique-se sem problemas! Quem ficar chocado com tal obra tem outros problemas mais graves a resolver.

Mas, no contexto do post, não era necessário apresentar a imagem. Se fosse um post em que fosse perguntado se tal obra deveria ser censurada, então sim, deveria ser apresentada.

Carlos Pires disse...

Agradeço as respostas à minha questão.
Não vou ainda fazer nenhuma consideração, pois espero que ainda surjam outras.

Duarte Marinho disse...

Caro Professor,
em relação à pergunta que é feita, se “teria sido errado pôr esse quadro neste post”, penso que não existe nada de errado na colocação do quadro.
Os alunos tem idade e maturidade suficiente para abordar os diferentes temas da disciplina de filosofia, sendo assim também estão preparados para enfrentar a realidade das imagens.
Na arte não existe censura ou preconceitos. Vejamos por exemplo a obra Hiper-realista do escultor Australiano Ron Mueck, que contém corpos em diversas situações tais como o parto, a morte e o sofrimento humano.
Aqui fica um link http://blog.uncovering.org/archives/2008/01/ron_mueck_escul.html

Anónimo disse...

Olá Carlos Pires.

Não penso que seria errado a utilização do quadro no post. Para Desmistificar e desconstruir os preconceitos é necessário que os alunos esteja familiarizado com a obra em questão. Justamente os jovens, parece-me ter mais capacidade para lidar com o quadro, da mesma forma como eles lidam com outros assuntos, como é o caso da violência. Quais os alunos que nunca assistiram filmes retratando as grandes guerras? Os filmes são estabelecido por imagem, que são projetadas com velocidades, dando a ideia de movimento. Os filmes estão no mesmo campo da arte.
Seria muito plausível, até mesmo porque o professor pode trabalhar de forma interdisciplinar. A Arte e a Filosofia estão ligadas, justamente por fazerem provocações sobre as coisas da vida, vejo-as ligada até academicamente.

Expor ou não expor o quadro vai muio além da liberdade de expressão,trata-se também de questões culturais e religiosas.
Existiriam instituições educacionais que trabalhariam com o quadro e outras que não, depende muito do regimento da instituição. Por exemplo, no brasil, as escolas particulares em sua grande maioria são conservadoras devido aos pais dos alunos, a direção escolar não tem muita autonomia para trabalhar com a sexualidade,só na Biologia, em outras áreas do conhecimento, principalmente em filosofia seria uma subversão.
O problema são os pais de cada aluno. Seria o pai A, adepto das doutrinas da religião A, que repreende tal atitude? Ou seria o pai B, adepto da cultura B, que repreende tal atitude?

As esculturas de Michelangelo, que evoca a Grécia Antiga, em sua maioria são representações do corpo humano nu, mostradas em salas de aulas e em livros didáticos. Naquela época a sociedade apedrejou a obra em nome da moral.
A criação de Adão é decoração na Capela Sistina, seria a censura do quadro "A Origem do mundo" devido ser um representação do órgão reprodutor feminino? Ou estaríamos nós na Grécia Antiga?

Não acredito que foi autocensura, pois para se fazer a provocação era necessário, não colocar o quadro no post.

Grande abraço.