quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

O carácter factivo do conhecimento

A chamada definição tradicional do conhecimento diz que para haver conhecimento (proposicional) têm de estar reunidas três condições: crença, verdade e justificação.

Dessas três condições aquela que costuma suscitar mais dificuldades de compreensão aos alunos é a segunda: a verdade. Vejamos se é possível clarificar o problema e diminuir essas dificuldades.

A primeira condição é a crença. Ter uma crença consiste em acreditar que uma certa proposição é verdadeira. Mas a pessoa pode enganar-se e julgar verdadeira uma proposição falsa. Para haver conhecimento é preciso que (além da justificação) a proposição seja de facto verdadeira. A crença de que é verdadeira é necessária, mas não é suficiente. É necessário que a proposição seja mesmo verdadeira.

O conhecimento proposicional, como o próprio nome indica, consiste no conhecimento de proposições. As proposições podem ser verdadeiras ou falsas. No entanto, só podemos conhecer proposições verdadeiras. Podemos saber que uma proposição é falsa, mas não podemos conhecer uma proposição falsa, ou seja, não podemos conhecer a própria falsidade.

Por exemplo: sabemos que a proposição expressa pela frase “as flores falam” é falsa, mas não podemos saber que as flores falam.

Uma proposição é falsa quando afirma algo que não sucede, que não é o caso, que não é real. Não podemos conhecer falsidades pois tratando-se de falsidades não há “lá” nada para conhecer. Não podemos conhecer falsidades tal como não podemos agarrar o vazio. Não podemos saber que as flores falam, pois as flores não falam.

Uma proposição é verdadeira quando afirma algo que sucede, que é o caso, que é real. E isso pode ser conhecido.

Por exemplo: a proposição expressa pela frase “a maioria das pessoas fala” é verdadeira, pois afirma algo que realmente ocorre. Podemos saber que a maioria das pessoas fala, pois de facto a maioria das pessoas fala e como tal existe algo para ser conhecido.

Pode-se resumir essas ideias dizendo que o conhecimento é factivo. Factivo significa literalmente: remeter para factos.

Palavras como “ver” e “ouvir” são factivas. Palavras como “desejar”, “querer” ou “preferir” não são factivas.

O desejo não é factivo, pois posso desejar efectivamente algo que não existe, algo que não é real, algo que é impossível.

Por exemplo: posso desejar estar em dois lugares ao mesmo tempo. Esse desejo incide em algo impossível, mas é um desejo tão efectivo como desejar beber um café com uma pessoa amiga. Os desejos podem perfeitamente não remeter para factos sem deixar de ser desejos.

O ver é factivo, pois não posso efectivamente ver algo que não é real. Quando efectivamente se vê, vê-se algo que é real, algo com o qual os olhos podem estabelecer um contacto.

O que pode acontecer é que me engane e julgue ter visto sem de facto ter visto. É o que sucede, por exemplo, nas alucinações visuais. Estas costumam ser definidas como percepções sem objecto e são “produzidas” pelo cérebro e não pelos olhos, não se relacionando (pelo menos directamente) com algo que esteja diante da pessoa que alucina.

Em suma: quem alucina não está de facto a ver (chamar “visões” às alucinações é apenas uma maneira de falar), mas quem deseja algo impossível ou irreal está de facto a desejar.

Verifica-se o mesmo com o conhecimento. Só se pode conhecer o que é verdadeiro, aquilo que de facto sucede. Aquilo que não sucede não pode ser conhecido, pois nada há para conhecer.

Tal como uma pessoa se pode enganar e julgar ver algo sem realmente estar a ver, também se pode enganar e julgar que conhece e afinal não conhecer.

Mas isso não significa que a pessoa tenha um conhecimento falso. É comum ouvirmos falar de conhecimentos falsos. No entanto, essa expressão não pode ser entendida literalmente, é apenas uma maneira de falar. Se conhecer é conhecer verdades, se não se podem conhecer falsidades, então não há conhecimentos falsos. Se uma crença é falsa, não é conhecimento. Se uma crença constitui conhecimento, não é falsa. Por isso, há crenças falsas mas não conhecimentos falsos.

Em suma: para haver conhecimento é preciso haver verdade. Esta é uma condição necessária do conhecimento.

Um indício de que conhecer é conhecer verdades e que a verdade é uma condição necessária do conhecimento é o facto de as pessoas que acreditam em proposições falsas só considerarem que têm conhecimento porque não têm consciência da falsidade dessas proposições. Julgam que são verdadeiras e por isso julgam ter conhecimento. Uma pessoa que não esteja a mentir e a tentar enganar outras pessoas, não diz que sabe algo se tem consciência da sua falsidade.

Isso mostra que todas as pessoas, mesmo que não conheçam a definição tradicional do conhecimento, associam-no naturalmente à verdade e colocam-na como uma condição necessária deste.

Uma análise mais completa da definição tradicional do conhecimento implicaria explicar a terceira condição: a justificação.

Cada uma das condições é necessária, mas não suficiente. As três juntas constituem uma condição suficiente para haver conhecimento, pelo menos nalguns casos. Podemos dar inúmeros exemplos de conhecimentos proposicionais em que ocorrem essas três condições. No entanto, existem alguns casos – que constituem contra-exemplos a essa definição – em que a ocorrência das três condições não parece suficiente para haver conhecimento.

Nota: por facilidade de expressão a palavra “conhecimento” por vezes foi usada sem o adjectivo “proposicional”, mas refere-se sempre ao conhecimento proposicional.

2 comentários:

Jogo Social disse...

Acrescento, pois talvez ajude com outra linguagem, que a verdade pode estar na proposição, naquilo que se diz (verdade formal) ou no próprio objecto (verdade material).
A vedade formal é fácil de perceber: é a conformização do pensamento com ele próprio, indepentemente do conteudo da afirmação.
A verdade material é mais complexa pois surgem várias correntes acerca da do que será o objecto do conhecimento: serão as ideias (idealistas, racionalistas) serão os as coisas concretas apreendidas pelos sentidos (empiristas)? Importa perceber quea verdade material é a conformização do pensamento com o objecto, independentemente do que seja esse objecto...

Com este pequeno contributo, começo a minha visita a este blog que tive muito gosto de encontrar, ainda por mais por ser fruto de trabalho de duas pessoas que admiro tanto...

Abraço ao professor Pires, um beijinho a Professora Raposo.

Nelson

Anónimo disse...

Boa-noite professor. Este carácter factivo do conhecimento pode levantar questões quanto algumas ideias que tomamos como conhecimentos. Recentemente fui "assaltado" pelo seguinte problema: »Os números têm um papel quantificativo ou seja representam uma quantidade.
»O conhecimento é, de acordo com o modelo CVJ, factual assim sendo não se pode conhecer uma coisa que não existe.
»O "0" é um número que representa um conjunto vazio ou seja algo que não existe.
Isso quer dizer que não temos conhecimento deste número e todas as operações matemáticas onde está envolvido ? Quer dizer também que fórmulas que utilizam valores hipotéticos que não existem, não são conhecimento ?