Desidério Murcho escreveu na Crítica (revista de Filosofia online) um interessante e informativo artigo sobre ética e direitos humanos de que a seguir transcrevo algumas passagens. Este artigo pode ser lido na íntegra aqui.
Aconselho a sua leitura, sobretudo aos alunos do 10º ano.
«(…) A ética não é um mero conjunto mais ou menos arbitrário de códigos de conduta; entre outras coisas, é o estudo cuidadoso das razões a favor ou contra a nossa conduta. Isto significa que em ética se dá muita importância à argumentação: queremos saber que razões há para agir ou não agir de determinada maneira, por exemplo.
O relativismo cultural, em ética, distingue-se da mera diversidade cultural. A diversidade cultural é apenas a existência de diversas culturas, eventualmente com diferentes códigos de comportamento. O relativismo cultural é uma tese ética: um tipo particular de relativismo moral. O relativismo moral é qualquer posição que defenda que as acções são correctas ou incorrectas, e os estados de coisas são bons ou maus, relativa e não absolutamente. Relativamente a quê? Depende do tipo de relativismo moral. Quando se defende que são relativos ao tempo histórico, trata-se de relativismo histórico; quando se defende que são relativos a cada pessoa em particular, trata-se de subjectivismo; quando se defende que são relativos a culturas ou mentalidades, trata-se de relativismo cultural. Estes são três tipos de relativismo moral, e podem ser combinados entre si.
(…) Quem se opõe ao relativismo moral considera que as acções nem sempre são correctas ou incorrectas em função do que as pessoas consideram, e portanto que a maior parte das pessoas de uma dada cultura pode considerar que, por exemplo, excluir as mulheres e negros seja moralmente correcto, apesar de na realidade isso não ser moralmente correcto (…).
Assim, o relativismo cultural é a ideia de que todas acções são correctas ou incorrectas consoante são consideradas correctas ou incorrectas numa dada cultura. A negação disto é a ideia de que nem todas as acções são correctas ou incorrectas em função do que as pessoas pensam. O relativista nunca vê diferença entre considerar-se numa dada cultura que algo é moralmente correcto e algo ser moralmente correcto, ao passo que o seu opositor defende que pelo menos em alguns casos existe tal diferença.
O relativista moral tem de defender que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pelas Nações Unidas no dia 10 de Dezembro de 1948, não exprime princípios éticos universais em qualquer sentido robusto do termo. Apesar de esta declaração ter sido aprovada por unanimidade nas Nações Unidas (com a abstenção de alguns países, como a União Soviética, a Polónia e a África do Sul), o relativista cultural terá de defender que a violação de qualquer dos direitos consagrados na Declaração é eticamente permissível desde que seja permissível numa dada cultura. Assim, se numa dada cultura se considera que é correcto discriminar as pessoas com base na origem étnica ou no sexo, violando o artigo segundo da Declaração, o relativista tem de aceitar que nessa cultura é correcto fazer tal coisa e que a Declaração se limita a exprimir uma convicção diferente.
Muitas pessoas que aceitam o relativismo cultural rejeitam a ideia de que é eticamente permissível violar qualquer um dos direitos humanos consagrados na Declaração. Mas estas duas ideias são incompatíveis. O relativismo cultural é incompatível com a ideia de direitos humanos universais.
(…) o debate ético não é factual, nem diz respeito à verificação de factos. Diz respeito, antes, à argumentação, à apresentação de razões, cuidadosamente pensadas e pesadas. E por isso é largamente irrelevante que existam desacordos morais entre culturas — porque as pessoas enganam-se ao raciocinar. Pior: muitos desses enganos são mal-intencionados, pois são interesseiros. Como comecei por dizer, não acredito que algum alemão pudesse honestamente pensar que os judeus eram sub-humanos — mas era proveitoso pensar tal coisa e por isso tudo o que parecesse justificar tal ideia era aceite sem mais discussão.
Assim, perante a diversidade de comportamentos tidos como morais em diferentes sociedades, devemos perguntar que razões há a favor ou contra tais comportamentos. E a procura dessas razões não pode ser meramente a reafirmação dos preconceitos culturais da nossa própria cultura. É preciso procurar essas razões com probidade epistémica, procurando genuinamente saber que razões há para aceitar ou rejeitar que um dado comportamento é imoral. A cada passo temos de ver se não estamos a fazer confusões ou apenas a defender o que nos interessa defender, por qualquer motivo injustificável abertamente. E temos de fazer distinções conceptuais cuidadosas, como as seguintes:
1. Os comportamentos não se dividem todos entre moralmente obrigatórios e moralmente impermissíveis; também há actos permissíveis mas que não são obrigatórios. Por exemplo, é moralmente permissível comer maçãs com a mão esquerda, mas não é obrigatório fazer tal coisa. Quando não se tem formação filosófica há tendência para confundir estas categorias e condenar como moralmente impermissível comportamentos diferentes dos nossos só por serem diferentes. Os comportamentos sexuais dos nativos brasileiros, ou a sua nudez, eram muito diferentes dos europeus, e isso levou os europeus a condenar moralmente tais comportamentos; mas seria preciso mostrar primeiro que tais comportamentos têm alguma coisa a ver com a moralidade e não apenas com costumes moralmente neutros. Com certeza que andar nu e andar a matar pessoas na rua são coisas muito diferentes. A primeira pode ser culturalmente chocante, mas daí não se segue que seja imoral. A reflexão filosófica cuidadosa é um bom antídoto para o preconceito provinciano.
2. Os comportamentos prescritos ou condenados por uma dada religião não são sempre moralmente obrigatórios ou impermissíveis. Quando se justifica um dado comportamento ou proibição apelando a um dado texto sagrado, estamos já a excluir todas as pessoas que não pertencem a essa religião nem a consideram uma religião verdadeira. Se quisermos viver moralmente com pessoas que não partilham a nossa religião temos de encontrar uma base comum de entendimento moral, e essa base comum não pode obviamente ser a religião, porque pessoas diferentes professam religiões diferentes e algumas nenhuma. Tem de ser o simples facto de sermos agentes morais a fornecer uma base comum de entendimento moral.
3. A natureza raramente é um bom guia moral. Isto significa que o facto de um dado comportamento ser mais ou menos natural é geralmente irrelevante moralmente. Condenar moralmente comportamentos por não serem naturais é geralmente falacioso, além de ocultar geralmente uma mentira. Vejamos dois exemplos. A homossexualidade é um comportamento comum entre muitos animais; quem condena a homossexualidade por não ser natural ou mente ou é ignorante. Matar os filhos dos outros é um comportamento comum entre leões; mas dificilmente alguém quereria defender a moralidade de tal prática aplicada a nós com base na sua naturalidade. O objecto da moral não é o que é ou deixa de ser natural, mas o que é ou não justificável — e como os leões e outros animais inumanos são incapazes de justificação, não são os melhores guias morais.»
Desidério Murcho.
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