sexta-feira, 26 de março de 2010

Aprender implica tornar nosso o saber dos outros

Recentemente dediquei-me à correcção de mais de uma centena de testes. A leitura de algumas respostas imaginativas (para não dizer reveladoras de falta de conhecimentos e de um total distanciamento em relação às matérias) sobre a ética de Kant e a filosofia cartesiana fez-me relembrar algumas afirmações contidas nos três ensaios que Montaigne escreveu sobre a actividade de ensinar e de aprender (traduzido em português por Agostinho da Silva e intitulados: “Do professorado. Da educação das crianças e da arte de discutir”):

Sabemos dizer: Cícero diz assim; eis o que fazia Platão; são as próprias palavras de Aristóteles. Mas nós, que fazemos nós? Um papagaio diria o mesmo. Isto faz-me lembrar aquele rico romano que tivera o cuidado de, à força de dinheiro, recrutar homens capazes em toda a espécie de ciências e os tinha sempre à sua volta para, quando se oferecesse ocasião de falar de qualquer coisa com os seus amigos, o substituírem e estarem sempre prontos a fornecer-lhes um, pensamentos, outro versos de Homero, cada qual segundo a sua especialidade; e julgava que o saber era seu porque estava na cabeça dos seus homens; assim fazem aqueles cujas capacidades moram nas suas esplêndidas livrarias (…).

Guardamos as opiniões e o saber dos outros e pronto. É preciso torná-los nossos.”(1)

A aquisição do conhecimento na disciplina de Filosofia resulta de um processo laborioso onde é necessária não só a compreensão dos problemas e dos argumentos, como também um esforço de apropriação pessoal. Sem esse esforço de percebermos por nós próprios os assuntos em causa e de discutirmos a verdade ou falsidade das ideias filosóficas,  não podemos ter uma compreensão adequada.

Estudar Filosofia passando os olhos pelas palavras, sem reflectir sobre o significado do que está a ser dito tem como consequência a incompreensão e a escrita das tais frases incongruentes que li em alguns dos testes dos meus alunos.

Pergunto-me: de que serviu a estes alunos (felizmente não todos!), que estudaram no dia anterior e sem querer compreender, terem ouvido falar sobre as ideias de Kant e Descartes?

Nada, foi uma total perda de tempo! Pois, não é assim que se aprende.

(1) Montaigne, Três ensaios, tradução de Agostinho da Silva, 2ª edição, Lisboa 1993, edições Vega, págs. 14-15.

4 comentários:

Sara disse...

Endémico, o que relata. Na minha opinião, o que se exige aos alunos (apropriação pessoal, esforço no sentido da compreensão...) não são atitudes ou disposições de geração espontânea ou automática. Ou são cultivadas ao longo de todo o percurso educativo ou... os resultados são estes.

Sara Raposo disse...

Sara:
Concordo consigo quanto à necessidade do ensino, nos diferentes níveis, promover a compreensão das matérias e a atitude crítica dos alunos. Se isso se faz ou não com eficácia, creio que depende do professor que os alunos têm a sorte ou o azar de ter.
Quanto à disciplina que lecciono e à minha experiência: há de facto alguns alunos (não digo que no meu caso sejam a maioria) que por motivos diferentes - o fraco domínio da língua portuguesa, as dificuldades ao nível da compreensão e do raciocínio lógico, as hormonas, os problemas familiares, etc - têm uma atitude errada não só em relação à disciplina de Filosofia em particular mas à aprendizagem e à escola, em geral.
Eu penso que na maioria dos casos nenhum dos motivos, referidos anteriormente, anula ou desculpabiliza a responsabilidade dos alunos e também dos pais que se demitem de acompanhar o percurso escolar dos seus educandos, como se a escola num toque de mágica pudesse resolver todos os problemas.
Cumprimentos.

Anónimo disse...

Sara:

Imagine um aluno cujos pais lhe proporcionam tudo aquilo que pode beneficiar um bom desenvolvimento intelectual e afectivo: amor, ambiente familiar calmo, brinquedos diversificados e adequados à idade, histórias contadas num contexto de ternura e de modo sistemático, livros e jornais em casa, os pais e os irmãos a darem o exemplo lendo regularmente, uso não excessivo da televisão e do computador, etc. Imagine também que esse aluno teve desde sempre bons professores e escolas bem equipadas em termos materiais e bem organizadas.
Essas condições garantem que esse aluno, ao chegar ao 10º e tendo bons professores de Filosofia e Matemática (por exemplo), goste dessas disciplinas e se empenhe no seu estudo?

Fernanda Colaço

Sara disse...

Fernanda
não estou bem certa se a pergunta me é dirigida mas, pedindo desculpa caso não seja esse o caso, deixo aqui a minha opinião. Acredito que as circunstâncias educativas que descreve, quer familiares quer escolares, criam condições favoráveis para a motivação e a persistência. E acredito que isto não constitui novidade para ninguém. Se coloca as coisas em termos de "garantia", é claro que a minha resposta terá necessariamente que ser cautelosa, porque "garantia" sugere um determinismo que não se pode aplicar a processos envoltos em múltiplas variáveis como os processos educativos.