É pouco frequente ver alguém ler um livro na praia. Por isso, foi com surpresa que ontem vi - na praia da Altura - uma mulher a ler o Fédon, de Platão.
Era uma senhora dos seus quarenta e poucos anos. Com a cabeça entre as mãos e a cara enfiada no livro, parecia pertencer a uma espécie animal diferente da dos outros banhistas, entretidos a apanhar conquilhas e absorvidos em conversas cujo assunto menos pessoal era – a avaliar por algumas amostras recolhidas ao acaso – uma alarmante notícia televisiva sobre o cancro da pele. Quando os filhos vinham a correr mostrar-lhe uma concha especialmente bonita, a mulher levantava os olhos do livro e sorria com doçura, mas de modo breve e regressava logo à leitura. (Procedia do mesmo modo, excepto no que diz respeito ao sorriso, quando o marido lhe tentava desviar a atenção para uma colorida revista de automóveis.)
E o que ela lia era a descrição das últimas horas de vida de Sócrates. Este tinha sido condenado à morte e, apesar de se considerar inocente, recusou fugir quando teve oportunidade para isso, pois na sua opinião a fuga seria ainda mais errada que a condenação. Ao conversar com alguns amigos que se tinham ido despedir dele à prisão, Sócrates afirmou que não há razão para um homem justo temer a morte, pois a alma é imortal e após a morte do corpo vai para um lugar melhor que esta vida. Os amigos pediram-lhe para justificar essa crença na imortalidade da alma, o que levou Sócrates a apresentar e discutir com os amigos diversos argumentos. Nessa discussão foram ainda analisados outros assuntos, como por exemplo o suicídio, a natureza da filosofia e o sentido da vida.
Excelentes tópicos, não há dúvida nenhuma, para ocupar o pensamento num domingo de manhã numa praia do Algarve!
Por vezes, a mulher fechava o livro durante alguns momentos e olhava pensativamente para o mar – muito recuado, devido à maré-vazia. Estaria ela a pensar em objecções aos frágeis argumentos de Sócrates a favor da imortalidade da alma? Ou estaria a pensar como era admirável um homem que, a poucas horas de ser morto, não só aceita discutir um problema filosófico como incentiva os seus interlocutores a criticar tudo o que ele dissesse de menos sólido e que – face à admiração respeitosa destes – lhes diz “preocupem-se pouco com Sócrates e muito mais com a verdade”? Ou talvez pensasse apenas que, caso ela estivesse no lugar de Sócrates, ficaria inquieta e amedrontada e não serena como ele… Ela e a grande maioria das pessoas!
No final da conversa, quando se aproximava a hora da execução, Sócrates disse aos amigos que ia tomar banho para “poupar às mulheres o incómodo de lavarem um cadáver”. O que pensará aquela mulher dessas palavras? Julgará que foram apenas uma observação casual de um homem educado numa sociedade onde as mulheres eram consideradas muito inferiores aos homens? Ou acreditará, pelo contrário, que exprimiam respeito e consideração ética (comoventes, em alguém que sabe que vai morrer) por outras pessoas, ainda que socialmente desfavorecidas?
O receio de ser indelicado e o calor do meio-dia (que obrigou a uma retirada precoce da praia), impediram-me de procurar junto da senhora respostas para essas perguntas. Mas não faz mal, pois Sócrates tornou-se um símbolo do pensamento crítico e da Filosofia precisamente porque incentivava as pessoas a pensar pela própria cabeça, em vez de ficarem à espera que alguém encontrasse as respostas por elas. Não falei com a senhora tal como não falei com Sócrates – mas, como disse o Professor Mário Jorge de Carvalho, numa distante aula de uma disciplina de opção cujo nome já nem recordo, “o que importa é sermos o nosso próprio Sócrates”.
Acho que vou reler o Fédon…
As afirmações citadas foram retiradas de: Platão, Fédon, (91c e 115b), Lisboa Editora, 1997, pp. 88 e 119.
Fotografia de António Carlos Moreira, retirada daqui.
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