Kant considera que o valor moral da acção depende da submissão da vontade a motivos de ordem racional: agir apenas por dever, isto é por respeito à lei moral (fazer apenas aquilo que é universalizável e não instrumentaliza as pessoas).
Todavia, em muitas circunstâncias, agimos por outras motivações, nomeadamente sentimentais ou afectivas, e não por simples respeito ao dever. E sentimos que está certo ter essas motivações afectivas e seria errado e “desumano” não as ter.
Se o valor moral da acção depende exclusivamente da intenção (a que apenas cada pessoa tem acesso) e não das consequências do acto praticado, como podemos saber se esta esconde ou não motivos egoístas? Se Kant tiver razão, no limite, não poderemos avaliar o valor moral das acções das outras pessoas.
A lei moral diz respeito apenas à forma como devemos agir em qualquer situação. No entanto, quando existe um conflito de deveres, há situações em que a aplicação da lei moral se revela problemática – durante a Segunda Guerra Mundial os pescadores holandeses mentiam aos nazis para proteger os judeus, que levavam escondidos, possibilitando que estes acedessem a um país neutral e assim pudessem salvar a vida (1). Neste caso as consequências não terão importância? Os pescadores deveriam obedecer à lei moral e dizer a verdade? Parece profundamente errado responder que sim. Neste caso, a mentira parece ser algo moralmente correcto, aquilo que em Inglês se chama “white lie”.
Que outras razões podemos apresentar para discordar de Kant?
Ou, pelo contrário, terá este filósofo razão?
7 comentários:
Só uma curiosidade a respeito da foto (de Buchenwald): o Elie Wiesel é o sétimo prisioneiro a contar da esquerda, na segunda fila a partir de baixo.
Um ensaio de Kant: "Sobre um pretenso direito de mentir por amor à humanidade".
Carlos:
Antes demais, após todos estes anos, os meus cumprimentos. Agradeço a tua informação, que desconhecia. Já tinha lido textos do Elie Wiesel, mas não sabia que ele figurava nesta impressionante fotografia. Confesso que gostava de ter tempo para pesquisar mais informação, por exemplo sobre as imagens ou fotos que escolho para acompanharem os posts, mas de facto não tenho essa disponibilidade. Mesmo assumindo determinadas prioridades, tenho sempre a sensação de não ter condições para realizar, convenientemente, cada uma das tarefas a que me proponho e já não digo apenas as que dizem respeito à Filosofia. De facto, julgo que neste momento, os professores que têm o número de horas e de alunos que eu tenho, experimentam as piores condições de trabalho que alguma vez tiveram. Espero que a tua sorte seja melhor do que a minha e possas dedicar-te mais ao que verdadeiramente interessa a um professor de Filosofia: a Filosofia, naturalmente.
Observei com atenção o post da respectiva objecção a Kant e acaba-se por concluir que só existe uma única razão para discordar da ética deontológica.
Será por não haverem mais nenhumas razões? Será que tudo o que Kant explicou racionalmente e incondicionalmente está estabelecido? Parece-me que é isso.
É completamente espantoso o que este filósofo disse e julgo que para se arranjarem boas críticas é preciso procurar tempos de diversas atrocidades cometidas na história. Não tirando valor a essa objecção, claro, porque os pescadores, em tempos difíceis poderiam conscientemente infrigir a lei moral imposta "sobre eles" e isso seria considerado algo moralmente incorrecto. Mas a verdade é que Kant retira desta situação uma enorme vantagem, porque quando se argumenta perfeitamente (a meu ver), torna-se complicado discordar. O mesmo já não acontece com Mill. O que também é deveras curioso é o facto de contestarmos contra Mill, usando o "suporte" ou apoio de Kant. Curioso no mínimo. Isso leva-nos a crer que possivelmente Kant é superior. Quem sabe?
Um aparte: Quarta não posso ir ao apoio, mas tenho uma dúvida que gostaria imenso que a professora me respondesse:
1- A professora falou de algo na aula sobre o Stuart Mill, que a sua teoria ou o princípio eram objectivos? Acrescentou também que eram objectivos porque as pessoas aceitavam-nos sem contestar absolutamente nada... Não sei se isto também tem a ver com a felicidade para o maior número de pessoas...
Gostaria muito que me ajudasse com este problema.
Daniel F. 10ºC Nº26
Olá, Sara!
Simplesmente conheço essa foto e, por acaso, sei que o Wiesel lá está.
Sim, é cada vez mais difícil ser professor (não só de Filosofia) - não por haver "mais trabalho", como gosta de dizer a nossa amiga ministra, mas por, crescentemente se estar a provocar um esvaziamento do sentido desta profissão. Este governo tem dado passos de gigante na transformação da Escola numa grande mentira: andamo-nos a enganar a nós mesmos e a enganar os alunos. Criam-se mil e um artifícios que, directa ou indirectamente, vão transformando a Escola numa perversão e o ensino numa farsa. A nossa famosa "avaliação" não tem outra finalidade senão essa degradação. E é claro que ninguém decente se sente bem ao ser forçado a participar numa mentira...
Não sei se tenho mais tempo do que tu - tenho centena e meia de alunos, como também terás, mas as mulheres geralmente estão mais sobrecarregadas de tarefas. Mas mesmo assim, pelo que vejo por aqui, fazes muita coisa beyond the call of duty. Mais do que eu, provavelmente.
Beijinhos.
Boa tarde Daniel: Em resposta, tardia, ao seu comentário:
- Refere-se à única razão para discordar da ética deontológica, sem a identificar. Qual é, então?
- Os contra-exemplos à ética kantiana – como é o caso das acções dos pescadores holandeses e outros semelhantes – mostram que a proposição: Devemos dizer a verdade em qualquer circunstância, não é necessariamente verdadeira, contrariamente ao que defende Kant. Qualquer posição filosófica pode se discutida, mesmo a de Kant, desde que se apresentem boas razões para discordar dela.
-Podemos contra-argumentar com base nas ideias de Kant para criticar outros filósofos, nomeadamente S. Mill.
- Quanto à dúvida que coloca, tal como já respondi na aula, o critério da moralidade de acordo com a ética de S. Mill é o princípio da utilidade (ou da maior felicidade), este é objectivo porque deve ser aplicado de um modo imparcial pelo sujeito, não depende do ponto de vista individual, das circunstâncias em que a acção decorre ou da sociedade e da cultura em que o sujeito se insere. A aplicação deste princípio, em certas situações, poderá justificar que se desrespeitem certas normas morais, como roubar para salvar a vida de alguém, neste caso o fim (a maior felicidade das pessoas afectadas pelos resultados da acção) justifica o meio utilizado. Isto nada tem a ver com o que o Daniel refere “das pessoas aceitarem sem contestar absolutamente nada” – julgo que se trata de uma confusão. Estude, reflicta sobre o assunto e se as suas dúvidas persistirem, volte a perguntar.
Boa tarde Carlos Botelho:
Quero agradecer-te a sugestão a propósito de Kant: reli o ensaio que referiste e irei, durante esta semana, espero (quando a correcção dos testes me permitir), colocar um post com uma parte do texto de Kant. Tenho alguma dificuldade em compreender o facto da maioria dos professores de Filosofia utilizarem, em vez dos textos originais dos filósofos, comentários sobre os mesmos, que muitas vezes não fazem justiça às ideias e à clareza dos argumentos originais. Ainda que a linguagem kantiana seja por vezes difícil, se não dominarmos o significado de alguns termos específicos, não é o caso, julgo eu, deste texto, em que Kant responde à objecção que lhe foi colocada – se devemos ou não mentir para salvar a vida de alguém - de forma clara e, quer concordemos ou discordemos da sua posição não, é difícil ficar indiferente às ideias que ele defende neste texto.
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