«Até à minha chegada a Nova Iorque [em 1973, para dar aulas de Filosofia na Universidade de NI], nunca conhecera ninguém que fizesse psicoterapia uma vez por semana; mas, quando travei conhecimento com o círculo de professores nova-iorquinos e suas esposas, depressa descobri que muitos deles faziam psicanálise diária. Cinco dias por semana, onze vezes por ano, tinham uma consulta de uma hora, que não podia ser cancelada por nada deste mundo, salvo numa emergência de vida ou de morte. (…) E isto não era nada barato. Alguns dos meus colegas, académicos bem remunerados e bem sucedidos, entregavam um quarto do seu ordenado anual aos seus analistas! Isto era para pessoas que, tanto quanto me era dado perceber, não eram nem mais nem menos perturbadas do que as que não faziam análise, e, com excepção do seu empenho na análise, não me pareciam diferentes das pessoas que eu conhecera em Oxford ou em Melbourne.
Perguntei aos meus amigos por que razão faziam aquilo. Responderam-me que se sentiam reprimidas, ou tinham tensões psicológicas por resolver, ou que não viam sentido para a vida.
Deu-me vontade de pegar nelas e abaná-las. Estas pessoas eram inteligentes, talentosas, abastadas e viviam numa das cidades mais estimulantes do mundo. Estavam no centro do maior centro de comunicações da História. O New York Times informava-os todos os dias do estado do mundo real. Sabiam, por exemplo, que em vários países em vias de desenvolvimento havia famílias que não sabiam de onde viria a sua comida para o dia seguinte e crianças que estavam a crescer física e mentalmente atrofiadas pela malnutrição. Sabiam, também, que o planeta podia produzir comida suficiente para cada ser humano ser adequadamente alimentado, mas esta encontrava-se tão mal distribuída que tornava risível qualquer referência a justiça entre nações. (Por exemplo, em 1973, o Produto Interno Bruto per capita dos Estados Unidos era de 6200 dólares e o do Mali 70 dólares.)
Se estes nova-iorquinos capazes e abastados tivessem saído dos divãs dos analistas, deixado de pensar nos seus próprios problemas e feito qualquer coisa quanto aos verdadeiros problemas enfrentados por pessoas menos afortunadas no Bangladesh ou na Etiópia – ou mesmo em Manhattan, umas poucas paragens de metro mais adiante -, ter-se-iam esquecido dos seus próprios problemas e talvez tivessem tornado também o mundo um sítio melhor. (…) [Ou seja:] a solução está em sair para o mundo e fazer algo que mereça a pena» [em vez de apenas olhar para dentro, só preocupados com o próprio umbigo].
Peter Singer, Como havemos de viver? – A ética numa época de individualismo, Dinalivro, Lisboa, 2006, pp. 361-362.
2 comentários:
Carla,
Quando deixamos de olhar para o nosso umbigo, vemos o quanto nós somos felizes.
O grande problema é que não conseguimos nos colocar no lugar do outro, esquecemos do outro.
É necessário se colocar no lugar do outro e também "ver", "enxergar" todos os ângulos.
Abraços,
Marise.
Marise:
O problema é que para muitas pessoas uma comichão sua é mais grave que uma perna partida do vizinho ou queimaduras de 1º grau num estrangeiro.
Quase toda a gente (exceptuando talvez os sociopatas) reconhece que deve colocar-se no lugar do outro e tê-lo em conta ao decidir (por isso é que Kant considerou universal o imperativo categórico).
Mas quais são os outros que são dignos dessa consideração e desse respeito?
Aí é que as atitudes podem variar muito, em função da cultura e de características pessoais:
os velhos gregos achavam que só tinham deveres em relação aos gregos (e que os bárbaros estavam excuídos da consideração ética),os racistas consideram que só têm deveres em relação à sua raça, os membros da máfia consideram que só têm deveres em relação aos membros da sua "Família"...
obrigado pelo comentário!
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