David Hume, à semelhança dos outros filósofos empiristas, considerava que todas as ideias derivam (directamente ou indirectamente, consoante são simples ou complexas) da experiência. São cópias das impressões e sem estas não se podem formar. Eis as palavras do próprio:
“Se acontecer que um homem, em virtude de um defeito dos órgãos, não é susceptível de qualquer espécie de sensação, vemos sempre que ele é igualmente pouco susceptível das ideias correspondentes. Um homem cego não pode formar nenhuma ideia das cores, e um surdo dos sons. Restitua-se a cada um deles o sentido em que é deficiente; franqueando esta nova entrada para as suas sensações, patenteia-se também uma entrada para as ideias, e ele não encontra dificuldade alguma em conceber esses objectos.”
David Hume, “Investigação sobre o entendimento humano”, Edições 70, Lisboa, 1985, pp. 25-26.
O neurologista Oliver Sacks, em “Ver e não ver” (capítulo do livro “Um antropólogo em Marte”) descreve vários casos de pessoas a quem foi restituído “o sentido em que é deficiente” – no caso, a visão. As suas observações, e as de muitos outros estudiosos, parecem confirmar a ideia de Hume segundo a qual, pelo menos nos casos analisados, se não houver impressões não se consegue formar as ideias correspondentes. (Mas poderemos garantir que isso se passa necessariamente com toda e qualquer ideia?)
O que não é de modo nenhum confirmada é a afirmação de Hume que, após a restituição do sentido em falta, o indivíduo “não encontra dificuldade alguma em conceber esses objectos.” Com efeito, os indivíduos a quem foi restituída a visão revelaram enormes dificuldades em formar ideias a partir das suas recentes impressões visuais.
«O filósofo seiscentista William Molyneux, cuja mulher era cega, colocou a seguinte questão ao seu amigo John Locke: ‘Imaginemos um homem cego de nascença, já adulto, que tivesse aprendido através do tacto a distinguir um cubo de uma esfera, a quem fosse restituída a vista: conseguiria ele agora, servindo-se dos olhos, e antes de lhes tocar, distinguir qual era o globo e qual era o cubo?’ Locke ponderou este problema no seu “Ensaio sobre o Entendimento Humano”, de 1690, acabando por decidir que a resposta é não. Em 1709, na sua obra “Uma nova teoria da visão”, George Berkeley examinou esta questão com maior detalhe, integrando-a numa análise globalizante das relações entre a vista e o tacto, e concluiu que não existia forçosamente uma ligação entre o mundo táctil e o mundo visual – e que qualquer ligação entre eles poderia só poderia ser estabelecida com base na experiência.
Ainda não se tinham passado vinte anos e já estas considerações eram postas à prova – quando, em 1728, W. Cheselden, um cirurgião inglês, extraiu as cataratas dos olhos dum rapaz de 13 anos cego de nascença. Apesar da sua grande inteligência e juventude, o rapaz deparou com enormes dificuldades na interpretação das sensações visuais, mesmo as mais simples. Não possuía qualquer noção das distâncias. Não possuía qualquer noção do espaço ou das dimensões. E ficava estranhamente confuso ante a ideia de uma representação bidimensional da realidade. Tal como Berkeley antevira, ele só gradualmente foi sendo capaz de decifrar o que via, e apenas na medida em que conseguia relacionar experiências visuais com outras de natureza táctil. Algo de semelhante aconteceu com muitos outros pacientes nos duzentos e cinquenta anos decorridos desde a operação de Cheselden [até à actualidade]».
Oliver Sacks, “Um antropólogo em Marte”, Relógio D’Água, Lisboa, 1996, pág. 145.
2 comentários:
Excelente post.
Pergunto: não quereria dizer Hume que a pessoa a quem foi restituido o sentido em falta não teria dificuldade em conceber o dado do sentido respectivo?
Por exemplo (e aproveitando os exemplos de Hume) um cego, que antes não conseguiria conceber a ideia de cor, passaria agora a conseguí-lo. O mesmo com o surdo e os sons.
Isto não implica que o cego consiga relacionar o novo dado do sentido com a realidade (será esta imagem de algo redondo ou quadrado?), mas já conheceria a ideia de cor.
Será assim?
Jaime:
Escrevi que Hume não se confirmava a afirmação de Hume de que não haveria dificuldade, pois, de acordo com a descrição de Oliver Sacks, quando tais pessoas recuperam a visão ficam num estado de grande confusão:
Quando lhe tiraram as ligaduras “Virgil não tinha ideia do que estava a ver. Havia luz, havia movimento, havia cores, tudo misturado, tudo indistinto, um borrão. Até que do borrão saiu uma voz dizendo ‘Então?’. Só nessa altura compreendeu finalmente que aquele caos de luz e sombra era um rosto” (149)
“Com a remoção da catarata, Virgil conseguia ver cores e movimentos, conseguia ver (mas não identificar) objectos e formas de grandes dimensões” (151).
“O acto de caminhar sem recurso ao tacto, sem a bengala, era para ele assustador e desconcertante, devido à dificuldade que sentia em calcular o espaço e as distâncias” (157).
“Virgil distinguia [várias semanas depois da operação] facilmente uma gama variada de cores e conseguia agrupá-las sem dificuldade. No entanto, talvez por sentir-se confuso dava-lhes por vezes nomes errados: ao amarelo, por exemplo, chamava cor-de-rosa, apesar de saber que era da cor das bananas” (162)
Essas pessoas começam a ter sensações visuais, mas não sabem interpretá-las. Têm dificuldade em compor com elas uma percepção (não estou a usar a palavra no sentido amplo que Hume lhe dá) do que têm diante de si. Vêem manchas e não rostos ou carros. Com o passar do tempo, vão melhorando – nomeadamente porque vão relacionando as sensações visuais com as informações dadas pelos outros sentidos e com os conhecimentos proposicionais que têm sobre as coisas (o Virgil sabia que as vozes ‘saem’ dos rostos). Graças à experiência (o David Hume gostaria disso!-:) ) vão aprendendo a usar a visão.
Conhecer a ideia de cor – que é o exemplo dado pelo Jaime – seria algo que ocorreria algures nesse processo. David Hume chama ideia (simples) à recordação de uma impressão (que ou é uma sensação ou uma emoção). Certamente que uma pessoa como o Virgil poderia horas depois de ver algo vermelho ou azul recordar-se do azul ou do vermelho, mesmo que ainda não conseguisse dizer correctamente os nomes. Nesse momento já teria a ideia de azul ou de vermelho? Basta uma única recordação de azul para ter uma ideia de azul, mesmo que seja a primeira recordação de azul que se tem na vida?
Não creio. Será certamente necessário ver mais vezes coisas azuis, recordá-las várias vezes e associar essas recordações – para que se trate de uma ideia e não de uma recordação episódica e logo esquecida. Ora, no caos visual descrito por Oliver Sacks, essa associação talvez não seja automática e fácil.
E estou a omitir outras dificuldades: quando há meses eu apontava para a blusa do Nody e dizia “é a blusa” ou “é vermelho” o meu filho de 2 anos dizia “não, é o Nody”…)
Por isso, a expressão “ele não encontra dificuldade” utilizada por Hume não me parece rigorosa.
(O Oliver Sacks utiliza-a, mas para descrever comportamentos ocorridos muitas semanas após a operação… e mesmo nessa altura continuava a haver dificuldades)
Cumprimentos
Enviar um comentário