quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

A estrada de Giges

 

O que sucederia se uma grande catástrofe matasse a maior parte dos seres humanos, dos animais e das plantas e destruísse as cidades, a agricultura, a indústria, o comércio e as instituições sociais e políticas (nomeadamente o governo, os tribunais e a polícia)?

O filme “A Estrada” (baseado no romance homónimo de Cormac McCarthy) sugere que a vida dos sobreviventes se tornaria miserável, perigosa e degradante. Matar-se-ia por um par de sapatos ou por um bocado de comida. A fome seria constante e muitas pessoas praticariam o canibalismo. As pessoas tenderiam a viver sozinhas ou em pequenos grupos, isolados e esquivos, devido à desconfiança e ao medo de serem atacadas pelos vizinhos. O horror do presente e a falta de esperança num futuro melhor tornaria muitas pessoas apáticas e levaria algumas ao suicídio.

Trata-se de um cenário ainda pior do que o descrito pelo filósofo Thomas Hobbes ao imaginar o que seria a vida humana sem Estado, sem organização social e política: uma vida “solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta” e dominada por “um constante temor e perigo de morte violenta” (ver aqui mais detalhes).

Infelizmente, é improvável que se trate de um pessimismo injustificado. O que vemos em “A Estrada” é apenas uma generalização feita a partir do que já aconteceu muitas vezes em situações de menor dimensão. Após naufrágios ou quedas de aviões os sobreviventes, isolados e acossados pela fome, recorreram muitas vezes ao canibalismo. Nos campos de concentração nazis e soviéticos muitos prisioneiros roubavam, agrediam ou matavam outros prisioneiros para lhes roubar um bocado de pão. Após catástrofes naturais ou grandes convulsões sociais e políticas, quando o controlo das autoridades do Estado diminui ou desaparece, é frequente ocorrerem roubos, pilhagens, violações, assassinatos e outras violências (veja aqui um exemplo). No Haiti, devastado pelo terramoto ocorrido no passado dia 12 de Janeiro, está a acontecer precisamente isso.

É como se as normas morais e jurídicas a que habitualmente obedecemos, e valores como a justiça e o respeito pelas outras pessoas, fossem apenas um verniz fino e frágil que nessas situações mais extremas estala - dando-nos uma visão do como seria terrível a vida humana sem o controlo do Estado e das outras instituições sociais.

Mas em “A Estrada” não há apenas desespero e miséria material e moral. Segundo o filme, embora se trate apenas de uma pequena minoria, nem todas pessoas esqueceram as normas que respeitavam ou perderam o respeito pelos outros. Nem todas as pessoas se tornaram escravas da fome e do medo. Embora esfomeadas, algumas pessoas não praticaram o canibalismo. Embora amedrontadas, algumas pessoas arranjaram coragem suficiente para ajudar quem precisava de ajuda e partilharam o pouco que tinham. O mesmo sucedeu nas situações reais referidas, nomeadamente nos campos de concentração nazis e soviéticos (veja aqui um exemplo).

Platão conta a história de um homem chamado Giges que encontra um anel que tornava as pessoas invisíveis. Com esse anel podiam, se quisessem, roubar e matar impunemente. O anel de Giges é uma espécie de teste: sem o medo do castigo as pessoas continuariam a respeitar as normas morais e jurídicas que respeitavam antes?

Situações como a descrita em “A Estrada”, ou como a que se verifica actualmente no Haiti, em que o controle estatal desaparece ou diminui muito, põem muitas pessoas no papel de Giges: poderem praticar o mal impunemente. Embora não sejam certamente a maioria, nem todas as pessoas falham nesse teste. Por isso, no final do filme é a esperança (embora incerta e pequena), e não o desespero, que tem a última palavra. Esperemos que suceda o mesmo no Haiti.

7 comentários:

Mário R. Gonçalves disse...

Meus caros,

Vale bem a pena ler o livro, vai muito mais longe na viagem ao inferno da alma. E não me parece que Cormack deixe entrever esperança nos poucos resistentes à degradação: o final é deprimente, aponta para a derrota total da humanidade. O filme, claro, tem que obedecer a parâmetros comerciais e morais mais positivos...

Mário

Carlos Pires disse...

Mário:

Comecei a ler o livro ontem e ainda não passei das primeiras páginas. Do que li pareceu-me que o filme é uma adaptação bastante boa e "fiel". Claro que há muitas ideias no livro que não aparecem no filme. Mas provavelmente isso sucede em qualquer adaptação de um bom livro, por bom que o filme seja.
Quanto ao final... creio que o modo como o filme acaba é plausível - tenha ou não havido motivação comercial. Mas se isso - que não é um simples pormenor - não sucede no livro, então já não é exactamente a mesma história. Qual delas será a mais plausível? Qual delas dirá mais acerca dos seres humanos?
Bem, vou continuar a ler o livro.

cumprimentos

Erick Chiaramonte disse...

Esperança? A esperança é mal derradeiro! Quase gritou Nietzsche. Em seu livro: "Humano, demasiado humano, Nietzsche afirma que, quando a caixa de Pandora foi aberta e os males nela encerrados por Zeus escaparam até o mundo do homem, ainda permaneceu, sem que ninguém soubesse, um último mal: a esperança. Desde então, o homem tem equivocadamente encarado a caixa e seu conteúdo de esperança como uma arca de boa sorte. Mas esquecemos o desejo de Zeus de que o homem continue se permitindo ser atormentado. A esperança é o pior dos males, porque prolonga o tormento.

http://wwwauroras.blogspot.com/

Carlos disse...

Ora aqui estou, a espreitar.
Mário, com todo o respeito, não acho que o final do livro seja deprimente, e muito menos que aponte para a derrota total da humanidade. É, isso sim, o final possível: a estrada está lá, a caminhada continua e há alguém que transporta o 'fogo'. Usando as mesmas palavras que o Carlos Pires usa para descrever o filme - que não vi -, 'a esperança (embora incerta e pequena), e não o desespero, que tem a última palavra.'

Mário R. Gonçalves disse...

Leituras diferentes...

" maps and mazes. Of a thing which could not be put back. Not be made right again." (último parágrafo)

não me parece muito esperançoso... filme realça mais a recepção da criança pela nova família, de forma algo lamechas depois de tudo o que aconteceu.

Carlos Pires disse...

Erick:

Que tormento? Em certas condições a vida humana pode ser muito difícil ou mesmo impossível, mas fora isso porque haveria de ser tormento? Se nos propusermos alcançar objectivos valiosos, mas exequíveis, a vida humana pode fazer todo o sentido. Nessas circunstâncias, ter esperança é, portanto, uma atitude adequada. Uma atitude racional, pois tem justificação.
O facto de uma pessoa X ou uma pessoa Y serem infelizes e desesperadas não significa que essa experiência deva ser generalizada para toda a humanidade.

cumprimentos

Carlos Pires disse...

Mário e Carlos:

Que me lembre as palavras citadas pelo Mário não são ditas no filme. O livro termina dizendo que nunca mais haverá trutas naqueles ribeiros e isso é um símbolo do muito que está perdido para sempre.
Mas isso não é incompatível com alguma esperança - pequena, tendo em conta o volume da devastação que a Natureza e as sociedades sofreram. Não é impossível que a vida recomece, pois sabemos que a vida pode suportar condições extremas. A certa altura (no livro), o pai e o filho encontram uma espécie de cogumelos comestíveis - um ser vivo no meio daquela morte toda. Haverá mais? haverá mais pessoas como aquele casal e os seus filhos? Talvez... por pouco provável que seja. Não é isso que é a esperança?

Obrigado pelos vossos comentários