Mulher com a doença de Huntington
A passagem seguinte do romance Solar, de Ian McEwan, descreve muito bem o modo de pensar das pessoas que consideram que o conhecimento é socialmente construído e que - tal como o filósofo francês Jacques Derrida - julgam que “tudo é texto”.
Numa reunião com alguns professores de Física, Nancy Temple, lincenciada em Antropologia Social, «disse que podia explicar melhor o seu campo de actividade descrevendo um projecto recente, um estudo aprofundado, que se prolongara por quatro meses, de um laboratório de genética de Glasgow empenhado em isolar e descrever o gene de um leão, o Trim-5, e a sua função. O objectivo dela era demonstrar que esse, ou qualquer outro gene, era, no sentido mais forte, socialmente construído. Sem as várias ferramentas de “entextualização” que os cientistas usavam – o luminómetro de fotão único, o citómetro de fluxo, a imunofluorescência e por aí adiante – não se podia dizer que o gene existia. Era dispendioso possuir e aprender a usar esses instrumentos e, por esse motivo, eles estavam repletos de significado social. O gene não era uma entidade objectiva, meramente à espera de ser descoberto pelos cientistas. Era inteiramente manufacturado pelas hipóteses que estes punham, pela sua criatividade e pelos instrumentos que possuíam, sem o que não podia ser detectado. E quando finalmente era expresso em termos dos seus chamados pares de bases e do seu papel provável, essa descrição, esse texto, só tinha significado e só extraía a sua realidade do interior da rede limitada de geneticistas que podiam ler sobre ele. Fora dessas redes, o Trim-5 não existiria.
Durante esta apresentação, Michael Beard e os outros físicos escutavam com algum constrangimento. Delicadamente, evitavam entreolhar-se. (…) Beard ouvira rumores de que ideias estranhas eram lugares-comuns entre os departamentos de artes liberais. Constava que era habitual ensinar aos estudantes de humanidades que a ciência era apenas mais um sistema de crenças, nem mais nem menos fiável do que a religião ou a astrologia. (…)
Quando Nancy Temple chegou ao fim do seu discurso, [os físicos de] Newcastle e Cambridge manifestaram-se em simultâneo, mais pasmados que encolerizados.
- Onde é que isso deixa a doença de Huntington, por exemplo? – perguntou um, enquanto o outro interrogava: - Acredita sinceramente que aquilo que desconhece não existe? (…)
- A doença de Huntington está também culturalmente inscrita [respondeu Nancy Temple]. Em tempos era uma narrativa sobre o castigo divino e a possessão demoníaca. Agora é a história de um gene defeituoso e é provável que um dia se venha a transmutar em qualquer outra coisa. Quanto aos genes de que não sabemos nada, bem, é óbvio que nada tenho a dizer. Os genes que foram descritos, como é evidente só podem chegar até nós mediados pela cultura.»
Ian McEwan, Solar, Gradiva, Lisboa, 2010, pp. 160-161.
2 comentários:
eu cá tb acho o conhecimento socialmente construído (ando a ler a Cetina e "a fabricação do conhecimento" e acabei de ler a ciência em Acção do Latour)) Coincidências
AFINAL O PONTO G NÃO É UM NATURAL KIND
«A localização do ponto G continua a ser um mistério para muitos. Agora, um grupo de investigadores do King’s College, em Londres, chegou à conclusão que o ponto G simplesmente não existe. Para os cientistas, aquela suposta zona erógena é uma invenção cultural, alimentada por revistas femininas e terapeutas sexuais.»
IOL
Os investigadores do King`s College declararam que o Ponto G não é um tipo natural e milhões de homens e mulheres devotos do preceituado em Mateus - "procura e encontrarás" - suspiraram "ufa!", "safa!", "finalmente!". Em Manhattan, alguém ouviu Woody Allen glosar-se: "não apenas o ponto G não existe, como tente encontrar um canalizador num fim de semana". A sociologia da ciência discreteou sobre a construção social dos objectos científicos (Bruno Latour abriu uma garrafa de Don Perignon). Refez-se a cartografia do corpo erógeno. Alberto Manguel e Gianni Guadalupi escreveram uma nova entrada no "Dicionário de Lugares Imaginários".
Enviar um comentário