Eis os pensamentos que a escritora Marguerite Yourcenar atribui ao imperador romano Adriano, quando este já velho e doente faz uma reflexão acerca da sua vida:
“A vida é atroz; sabemos isso. Mas precisamente porque espero pouco da condição humana, os períodos de felicidade, os progressos parciais, os esforços de recomeço e de continuidade parecem-me outros tantos prodígios que compensam quase a massa enorme dos males, dos fracassos, da incúria e do erro. Hão-de vir as catástrofes e as ruínas; a desordem triunfará, mas também a ordem, por vezes. A paz instalar-se-á de novo entre dois períodos de guerra; as palavras liberdade, humanidade, justiça reencontrarão aqui e ali o sentido que temos tentado dar-lhes. Os nossos livros não desaparecerão todos; as nossas estátuas quebradas serão restauradas; outras cúpulas e outros frontões nascerão dos nossos frontões e das nossas cúpulas; alguns homens pensarão, trabalharão e sentirão como nós; ouso contar com esses continuadores colocados a intervalos irregulares ao longo dos séculos, com essa intermitente imortalidade.”
Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano, tradução de Maria Lamas, Editora Ulisseia (10ª edição), Lisboa, 1997, pág. 243.
9 comentários:
Um belo excerto.
Também mantenho a esperança nessa intermitente imortalidade, parafraseando a magnífica Yourcenar.
Obrigada :)
"a desordem triunfará, mas também a ordem, por vezes".
Eu diria:
"a desordem triunfará, mas também a ordem, outras tantas vezes.
No Labirito do Mundo , os 'caminhos' de Adriano.
Excelente!
Magnífica Yourcenar, tesouro de que somos guardiãos...apetece-me citar também Herman Hesse:
"O mundo já pouco tem para nos oferecer, parece muitas vezes constituir-se de pouco mais do que barulho e receio, mas o certo é que a erva e as árvores continuam a crescer. Quando um dia a terra estiver completamente coberta de caixotes de betão, as nuvens continuarão a correr no céu e adquirir sempre novas formas, e aqui e ali as pessoas, por intermédio da arte, precisarão de manter uma porta aberta para o divino."
Divino, claro, é o que transcende a condição humana.
Agradeço os vossos comentários.
As memórias de Adriano contêm, do meu ponto de vista, algumas ideias sobre o que importa na vida e que, muitas vezes, nos passa ao lado por nos encontrarmos demasiado embrenhados com o trivial e o acessório. Mas, tal como o imperador só consegue ver com clareza quando se encontra no final da vida, talvez o mesmo se passe connosco e, por isso, apesar de nos deslumbrarmos com as palavras da espantosa Yourcenar, talvez só sejamos capazes de compreender o seu verdadeiro significado quando olharmos, como diz Adriano, “a morte de olhos abertos”.
Julgo que reflectirmos sobre a transitoriedade da vida nos permite ver com maior lucidez e humildade a situação presente (seja ela pessoal, política ou de outra natureza) e o facto de só em parte a nossa vida depender de factores que dominamos.
Mário:
Agradeço a citação do Herman Hesse, que não conhecia. As boas obras de arte sem dúvida que nos aproximam do que há de melhor nos humanos.
Mário:
Qual é o livro em que aparece o excerto que citou?
Se tiver essa informação. Agradeço.
Sara,
É o "Elogio da Velhice", ed. DIFEL.
Mário:
Obrigada.
Gostei muito do vídeo. A música é linda, romântica.
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