sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Isto é um homem?

agimSulaj Albania, Maio 2009

Primo Levi, um judeu italiano deportado durante a Segunda Guerra Mundial para um campo de concentração alemão, descreveu e reflectiu, no livro Se isto é um homem, acerca do que acontece quando se submete os seres humanos a uma situação de fome e de sofrimento extremo:

“Fechem-se entre arames farpados milhares de indivíduos diferentes em idade, condição, origem, língua, cultura e hábitos, e obriguem-se, nesse lugar, a um regime de vida constante, controlável idêntico para todos e abaixo de todas as necessidades (…).

Não acreditamos na dedução mais fácil e óbvia: que o homem é fundamentalmente brutal, egoísta e estulto na sua maneira de actuar, quando todas as superestruturas civis lhe são tiradas (…). Julgamos pelo contrário, que, em relação a isso, nada se pode concluir, a não ser que diante das carências e do mal-estar físicos obsessivos, muitos hábitos e muitos instintos sociais ficam completamente silenciados.

(…) aqui a luta para sobreviver é sem remissão, porque cada um está desesperada e ferozmente só.”

É discutível se aquilo que os seres humanos adquirem ao longo do processo de socialização (nomeadamente algumas normas morais como não roubar, não mentir, não matar…) é um verniz que estala facilmente em situações de fome e medo, tornando impossível o altruísmo. Filósofos com uma visão pessimista da natureza humana, como Thomas Hobbes, pressupõem que sim. Outros, pelo contrário, defendem uma perspectiva mais optimista e consideram que não.

Seja como for, tal como mostra Primo Levi ao longo deste livro, há aqueles que se transformam em “animal-homem” (talvez a maioria) e outros cuja humanidade permanece intacta, mantendo a capacidade de praticar acções sem esperar nada em troca: fazer o bem pelo bem.

A propósito deste livro pode ler também aqui.

3 comentários:

António Daniel disse...

Só que a passagem da cultura para a barbárie vai um passo. O contrário leva séculos.

Sara Raposo disse...

António:

Não estou certa quanto ao facto de os homens serem bons ou maus por natureza. Parece-me que, infelizmente, olhando para o passado e para o presente os dados disponíveis permitem sustentar mais a tese pessimista (acerca da natureza humana) que a optimista.
Generalidades à parte, os campos de extermínio foram uma espécie de laboratório em que, como defende Primo Levi, encontramos factos para defender as duas teorias opostas sobre a natureza humana.

O que é que levou aqueles indivíduos, muitos deles cultos (por exemplo, conhecedores da ética de Kant e de outros grandes filósofos), a praticarem actos tão monstruosos?

A cultura não nos salvará da barbárie? O exemplo alemão parece demonstrar que não.

Os estudos clássicos efectuados no âmbito da psicologia social por Milgram permitem compreender o fenómeno da obediência dentro de um certo grupo social. O facto de um indivíduo se encontrar inserido numa cadeia de comando faz com que ele não se veja a si próprio como responsável moral pelas consequências dos seus actos, por mais terríveis que elas sejam. Nos julgamentos realizados, a grande maioria dos oficiais nazis, com funções de comando nos diversos campos de concentração, disseram que se tinham limitado a cumprir as ordens dos seus superiores, não reconhecendo, por isso, qualquer responsabilidade moral pelas atrocidades cometidas contra os judeus.

O que é assustador é o facto de percebermos que as pessoas ditas “normais” - em circunstâncias muito menos perigosas e ameaçadoras que as verificadas na Segunda Guerra Mundial – se tiverem de escolher entre a acção que elas próprias acham correcta e o seu próprio interesse imediato, a grande maioria prefere antes obedecer ao chefe (e fazer algo que até acha injusto) do que desafiar o poder instituído e opôr-se ao que é injusto. Veja-se o comportamento vergonhoso da maior parte dos professores em relação ao modelo de avaliação e percebe-se o que eu estou a dizer.

Portanto, o problema é que a barbárie não se encontra descrita só nos livros de história. Em certas circunstâncias concretas, quando é necessário escolher entre o egoísmo e o altruísmo, podemos perceber o que move, talvez a maioria, dos seres humanos.

Cumprimentos.

Peço desculpa por me ter alongado tanto.

Maizé Trindade disse...

Não creio que os homens, por natureza, sejam bons ou ruins. Os homens se tornam (des)humanos na relação com outros homens.