Algumas das decisões tomadas pelo ministro da educação e ciência quanto aos cursos de ciências e de humanidades, revelam um injustificável tratamento diferenciado destas duas áreas. Mais, evidenciam um certo desprezo pelos cursos de humanidades. Esta secundarização traduz-se no facto da formação destes alunos ser muito menos exigente que a dos alunos de ciências e o investimento financeiro do estado, nos testes intermédios por exemplo, ser muito menor. Esta política do atual ministério dá continuidade à dos governos anteriores.
A realização dos testes intermédios no ensino secundário é um projeto em que as escolas escolhem participar ou não. Um dos objetivos deste projeto é “familiarizar os intervenientes com os instrumentos de avaliação externa das disciplinas sujeitas a exame nacional”. Assim, além de ter um carácter formativo, “pretende regular as práticas tendo em conta padrões de desempenho a nível nacional” (ver AQUI o relatório do IAVE - instituto de avaliação educativa). Trata-se de objetivos corretos, pois a avaliação externa (quer dos testes intermédios quer dos exames nacionais) reflete-se de forma positiva no ensino, desde que os instrumentos nela utilizados sejam concebidos com correção científica e pedagógica.
O calendário deste ano letivo dos testes (ver o anexo, AQUI) informa que os alunos dos cursos de ciências poderão realizar - nas escolas aderentes - os seguintes testes intermédios:
- 11º ano: Biologia e Geologia; Física e Química A; Matemática A e Inglês (um total de quatro: em três disciplinas da formação específica e uma da formação geral);
- 12º ano: Matemática A (dois testes intermédios) e Português (um total de três: dois numa disciplina da formação específica e uma da formação geral).
Nos cursos de humanidades, os testes intermédios previstos são:
- 11º ano: Inglês (um, sendo esta disciplina da formação geral).
- 12º ano: Português (um, sendo esta disciplina da formação geral).
Como se pode constatar, pelo número de testes realizados, não é proporcional nem a aplicação dos dinheiros públicos nem a exigência a que os alunos de ciências e de humanidades se encontram sujeitos. Como se justifica um tratamento tão desigual por parte do ministério? Que efeitos tem essa desigualdade produzido, anos a fio, juntos dos alunos? Pelo menos um é notório: a ideia que “nas letras” reina um certo facilitismo e que quem quer aprender a sério vai para um curso de ciências – até porque é aí que, em geral, se encontram os melhores alunos e as melhores turmas.
E essa ideia é, na maioria dos casos, verdadeira. Trata-se, pois, de uma profecia que se autorealiza. Enquanto professora de Filosofia tenho verificado que (embora existam alunos e turmas que são, felizmente, exceções) muitos alunos de humanidades não adquirem hábitos de trabalho, têm mais dificuldades de aprendizagem que os de ciências e uma atitude de maior falta de empenho. No entanto, muitos deles - pasme-se - conseguem resultados melhores nos exames nacionais das disciplinas da formação específica, tais como Matemática Aplicada às Ciências Sociais, Espanhol (no 11º ano) e História (no 12º ano), do que os de ciências (compare-se as médias nacionais dos exames das disciplinas específicas dos cursos de humanidades e de ciências). E porquê? Porque o grau de exigência dos exames nacionais é menor nas humanidades. A facilidade começa nos programas dessas disciplinas e no trabalho e o esforço que é exigido aos alunos.
Que critérios levam o ministério a considerar que há disciplinas mais importantes que outras na preparação para o exame nacional e até na conceção destes? Que resultados, na formação dos alunos e nas classificações dos exames nacionais, têm sido produzidos por todo este investimento na realização dos testes intermédios na área das ciências? A avaliar pelas classificações dos exames nacionais, muito poucos.
No entanto, também há alunos inteligentes em humanidades que querem seguir Direito, Psicologia, Literatura, etc., e mereciam que o dinheiro dos contribuintes também fosse gasto de forma a proporcionar-lhes uma formação melhor e mais exigente, nomeadamente permitindo-lhe a realização de testes intermédios às disciplinas, cujo exame nacional podem utilizar como prova de ingresso (tal como acontece com os alunos de ciências).
No ano passado, o teste intermédio de Filosofia foi o único que os alunos de humanidades do 11º ano fizeram mas este ano não se realiza. Porquê? Nenhuma explicação foi dada aos professores nem às escolas que participaram neste projeto, como foi o caso da minha. No entanto, trata-se, sem dúvida, de uma decisão incongruente. Revela a falta de imparcialidade com que o ministério encara os diferentes cursos e disciplinas, visto que este exame nacional pode ser utilizado como prova de ingresso em mais de uma centena de cursos da área das humanidades e também em alguns de ciências (ver o guia das provas de ingresso no ensino superior AQUI).
Legalmente, tanto os alunos de ciências como os de humanidades têm a possibilidade de optar, no 11º ano, pela realização do exame nacional de duas disciplinas da formação específica ou então uma das disciplinas da formação específica e a disciplina de Filosofia. Contudo, uma das medidas do atual governo para “permitir a autonomia organizativa e pedagógica das escolas” foi dar-lhes a possibilidade de decidir a distribuição dos tempos letivos semanais para cada disciplina. Assim sendo, existem, nas diferentes escolas do país, alunos que têm apenas o mínimo exigido: 150 minutos semanais de Filosofia (sem que o programa da disciplina tenha sido reduzido) e outros que têm uma carga horária maior. Obviamente que os alunos que têm apenas 150 minutos semanais ficam prejudicados se optarem por fazer o exame nacional. Pergunto: não era suposto as escolas públicas garantirem condições de igualdade aos alunos - pelo menos em termos da carga horária - numa disciplina sujeita a exame nacional?
Nenhuma outra disciplina sujeita a exame nacional, além da Filosofia, esteve sujeita uma redução da carga horária, ainda que os resultados dos exames nacionais do ano letivo passado tenham sido melhores que outras disciplinas que viram reforçadas as suas cargas horárias, como foi o caso do Português no 12º ano.
Como se justifica a menorização - em termos de carga horária e da realização dos testes intermédios - de algumas disciplinas do currículo em relação a outras? Em que estudos e dados se baseia o ministro Nuno Crato para fazer estas escolhas? Que explicação apresentou? Nenhuma.
Porém, como muito bem sabe o ministro Nuno Crato, não são só os factos científicos que necessitam de ser explicados com rigor, as decisões políticas também o devem ser. Impor medidas sem esclarecer as razões, que supostamente justificam a sua implementação, revela uma utilização arbitrária do poder e desrespeito pelos cidadãos, neste caso pelos professores e pelos alunos.
Conclusão que devemos tirar: em Portugal, há cursos, alunos e disciplinas de primeira e de segunda categoria. Mas isso não é bom para país.