Vamos supor que numa certa sociedade o ensino da filosofia, da física, da matemática, da literatura, etc., era tão eficaz e bem sucedido que todas as pessoas se interessavam pelos problemas dessas disciplinas e todas sem excepção dedicavam - com prazer - tempo ao seu estudo e discussão. Alguns amigos ou um casal de namorados, depois de, por exemplo, se comprazerem com a leitura e a análise do poema “Precisão”, de Clarice Lispector, discutiriam argumentos acerca da existência ou inexistência de Deus ou embrenhar-se-iam no estudo da Teoria da Relatividade, de Einstein.
Numa tal sociedade, haveria alguém disposto a ser padeiro ou pedreiro? Duvido.
Há anos atrás, fiz uma pergunta semelhante a um colega e ele chamou-me reaccionário. Suspeito que ele, na verdade, pretendia chamar-me realista.
6 comentários:
Acho que há por aí um vício qualquer. Se "todas sem excepção dedicavam - com prazer - tempo ao seu estudo e discussão", nem havia padeiros nem cafés nem cozinheiros nem sequer carros (ninguém aprendia a conduzir) e as empresas iam todas à falência por darem trabalho estúpido; se ninguém fazia nada estúpido, não havia coisas estúpidas. Ou seja, a premissa contém a conclusão. MAS MAS MAS quem sabe se graças a todo esse estudo teríamos máquinas inteligentes (robots) que fizessem todas essas coisas chatas? Entre um Schopenauer e um Hegel, carregava-se no botão e vinha um cimbalino curto cremoso com bolachinha de canela. Hein? às 2 da manhã, after love, um pãozinho quente? tecla amarela! :)
Mário:
O vício está na tentativa de dar a todas as pessoas durante demasiados anos uma formação semelhante.
A situação que sugeri mostra que isso não faz sentido, pois caso os objectivos fossem alcançados teríamos uma sociedade inviável.
Deve dar-se a todos os alunos uma sólida formação no ensino básico (até ao 9º ano no máximo) e depois o ensino deve deixar de ser obrigatório e diversificar-se. Cursos de prosseguimento dos estudos e cursos profissionais - mas não como os actualmente existentes.
Os cursos profissionais actuais não têm de facto um carácter profissionalizante, mas sim facilitista: ensina-se mais ou menos as mesmas coisas que nos outros cursos, mas de modo mais simplista, menos exigente, mais ‘aguado’. E esse facilitismo não atinge apenas os conteúdos, mas também a avaliação e o comportamento dos alunos, em que costume ser bastante permissivo. Ou seja: trata-se os alunos do Profissional como alunos de 2ª, em vez de pessoas que decidiram que a sua vida teria um rumo mais prático mas igualmente digno e necessário.
Obrigado pelo comentário.
Nessa situacao irrealista, o que poderia suceder e' que as pessoas teriam dedicar-se parcialmente a varias actividades. Um cientista tambem teria de dar uma contribuicao para limpar a rua, o musico teria de dar um toque na cozinha, uma bailarina teria de dar uma perninha no cafe' etc Seria uma sociedade muito mais cooperativa e menos competitiva.
E' certo que e' dificil imaginar como seria possivel realizar essa sociedade tendo em conta o que conhecemos da natureza humana. No entanto, de um ponto de vista conceptual nao implica nada de absurdo.
Miguel:
Uma sociedade em que todas as pessoas dedicassem partes significativas do seu tempo simultaneamente a actividades de natureza intelectual e prática é certamente imaginável.
Mas não me parece um objectivo viável. Nem desejável.
Ora, o sistema de ensino actual parece orientar-se por um ideal desse género, como expliquei no comentário anterior. O que é errado.
Porque é que não seria desejável? Porque muitas actividades, quer intelectuais quer práticas, implicam uma dedicação enorme e exclusiva. Pense no xadrez, na matemática, no violino ou na carpintaria. Se alguém quiser dedicar-se profissionalmente a duas ou três delas acabará por não alcançar a excelência em nenhuma. Que alguém individualmente tente fazê-lo... tudo bem, mas não uma sociedade inteira! Se pensarmos em termos globais, temos de apostar na especialização e na diversidade.
Acresce que algumas actividades são especialmente exigentes em termos físicos: eu já passei horas seguidas a trabalhar na agricultura e a dar serventia a um pedreiro e asseguro-lhe que, apesar de me interessar muito por filosofia e por alguns géneros literários, ao fim do dia não conseguia ler mais do que duas páginas.
obrigado pelo seu comentário
Bom, se a intenção era essa, não posso estar mais de acordo; mas não é uma solução inteiramente democrática. Transitoriamente, podemos tentar dignificar ao máximo todas as tarefas, mas um piloto de avião nunca terá a mesma qualidade de vida de um limpa-chaminés.Democracia é vivermos todos como príncipes - ninguém ter de lavar latrinas. Portanto, só com latrinas auto-laváveis.
Mário:
Uma desvantagem dos textos demasiado lacónicos é que podem revelar-se vagos ou ambíguos, mesmo que não contenham frases especialmente vagas ou ambíguas. É o que sucede com o meu post: é interpretável de várias maneiras e aquilo que eu queria dizer não é claro.
Relativamente à ideia de que a democracia é vivermos todos como príncipes: é um ideal certamente inalcançável. Não creio que a democracia seja incompatível com algumas desigualdades e creio que nem todas as desigualdades são injustas - mas a justificação seria longa de mais para um comentário.
cumprimentos
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