Milhões de pessoas acreditam que no dia 13 de Maio de 1917 Nossa Senhora apareceu em Fátima a três crianças que pastavam as suas ovelhas e acreditam que reapareceu novamente a 13 de Outubro do mesmo ano tendo então realizado um milagre observado por cerca de 70 mil pessoas: o Sol moveu-se, parecendo cair sobre as pessoas antes de regressar ao seu lugar.
Levadas por essa crença muitas pessoas, incluindo o Papa Bento XVI, foram hoje, 13 de Maio de 2010, a Fátima e muitas outras assistirão às cerimónias pela televisão. Talvez não fizesse mal essas pessoas reflectirem um pouco acerca da plausibilidade ou implausibilidade dos milagres. As ideias David Hume são um bom ponto de partida para o efeito.
David Hume chama milagre a uma violação das leis da natureza e não a um mero acontecimento raro. Por exemplo: não é milagre um homem saudável morrer subitamente, mas será milagre se um homem morto voltar à vida. Por vezes há pessoas que declaram ter presenciado milagres. Porém, argumenta Hume, nenhum testemunho é suficiente para demonstrar a existência efectiva de um milagre, a não ser que o testemunho seja tal que a sua falsidade seja ainda mais “miraculosa” (ou seja, mais improvável) do que o facto testemunhado. Assim, se alguém nos disser que viu um homem morto regressar à vida, devemos tentar perceber o que é mais provável: 1) essa pessoa estar a enganar-nos deliberadamente ou estar enganada sem saber, ou 2) o facto por ela narrado ter realmente acontecido. Devemos comparar os dois “milagres” e rejeitar o “milagre” maior. Ou seja: se a falsidade do seu testemunho for ainda mais ”miraculosa” e improvável do que o regresso de um morto à vida então, e só então, devemos acreditar que o morto regressou à vida. Todavia, em todos os casos tornados públicos até hoje a improbabilidade do testemunho ser falso nunca é superior à improbabilidade da ocorrência do acontecimento.
Richard Dawkins analisou, à luz desse critério de David Hume, o suposto milagre de Fátima:
“Por um lado, é-nos pedido que acreditemos numa alucinação em massa, num artifício de luz ou numa mentira colectiva envolvendo 70 000 pessoas. Isto é reconhecidamente improvável, mas é menos improvável do que a alternativa: que o Sol realmente se moveu. O Sol que estava sobre Fátima não era, afinal, um Sol privado: era o mesmo Sol que aquecia todos os outros milhões de pessoas no lado do planeta em que era dia. Se o Sol se moveu de facto, mas o acontecimento só foi visto pelas pessoas de Fátima, então teria de se ter dado um milagre ainda mais notável: teria de ter sido encenada uma ilusão de não-movimento relativamente a todos os milhões de testemunhas que não estavam em Fátima. E isso se ignorarmos o facto de que, se o Sol se tivesse realmente deslocado à velocidade referida, o sistema solar se teria desintegrado.”
Os milhões de pessoas que acreditam no milagre de Fátima acreditam, portanto, numa falsidade.
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Bibliografia:
David Hume, Investigação sobre o entendimento humano, Edições 70, 1985, Lisboa (pp. 111-113, capítulo X, ‘Dos Milagres’).
Richard Dawkins, “O milagre de Fátima”, Crítica: Revista de Filosofia, http://criticanarede.com/html/fil_milagre.html.
18 comentários:
Eu acredito nas aparições de Fátima, e não estive lá. A argumentação apresentada no "post" é realmente esclarecedora. Valha-nos Deus!
Carlos:
Não sei em que se baseia para acreditar nas aparições de Fátima. Alguns católicos, embora acreditem nalguns milagres, têm bastantes reservas relativamente a Fátima. Existem alguns dados históricos e sociológicos que sugerem que se trata de uma enorme mistificação - admissível mesmo por quem não duvida da possibilidade de ocorrerem milagres.
Quanto à argumentação apresentada no post: é de facto esclarecedora! Não por mérito meu, mas sim de Hume e de Dawkins.
Aceitar a veracidade do "milagre" do Sol é incompatível com diversos conhecimentos da Física e da Astronomia - e é muito menos provável estes estarem errados que 70 mil pessoas crédulas acreditarem naquilo que foram 'programadas' para acreditar.
E ainda bem que assim é, pois a humanidade precisa muito mais de Física e Astronomia do que de religião.
Obrigado pelo seu comentário. Cumprimentos.
Carlos Pires
a sua resposta ainda é mais esclarecedora, creia.
Carlos:
Eu argumentei. O Carlos não. Suponho que as suas certezas o dispensam de argumentar. Eu não possuo nenhuma crença que possa isentar de justificação e argumentação - independentemente do grau de certeza que nela deposite.
Carlos Pires:
Não suponha nada. Com que direito o faz? Não viva de suposições.
Não me é possível argumentar detalhadamente todas as vezes que manifesto a minha fé, como deve compreender.
De resto, reservo-me a prerrogativa de me esforçar por persuadir quem, como e quando me aprouver.
Pois é!
Não vale a pena discutir questões de fé.
Eu não a tenho, mas percebi ao longo da vida que quem a tem, tem, sem nenhuma razoabilidade
A fé não é racional. Por isso ser fé
Carlos:
Como fez comentários num blog de Filosofia parti do princípio que estava interessado em trocar ideias e argumentar (o que implica justificar as afirmações que se faz e responder às críticas). Percebo agora que me enganei, pois o Carlos estava só "a manifestar a sua fé". Como o Carlos se recusa a argumentar, e sobretudo porque não quero perturbar a sua fé, não lhe vou apontar as incoerências da sua posição.
Marta:
Vale a pena discutir temas religiosos. Caso a discussão seja racional e isenta de dogmas. Se uma pessoa religiosa me disser que eu estou errado, eu não fico aborrecido - pergunto pelos seus argumentos e procuro discuti-los e refutá-los. Mas há pessoas religiosas que não conseguem deixar de ficar ofendidas ou pelo menos um pouco aborrecidas ('picadas') quando discordamos delas e dizemos que acreditam em falsidades. Felizmente nem todas as pessoas religiosas são assim.
Relativamente à sua afirmação de que a fé não é racional: talvez seja de facto assim, mas isso não implica necessariamente que a fé seja inimiga da razão - há pessoas com fé religiosa que procuram conciliá-la com a racionalidade.
Eu sei Carlos
mas como disse, é difícil e ficam 'picados'
mas falemos nós
Um milagre é pela sua natureza não explicável cientificamente, ou não seria milagre, segundo a Igreja
Então o tal milagre do sol (a minha mãe dizia que o meu avô tinha assistido :)) não poderá ter justificação científica....
A ressureição de Lázaro ou a de Cristo são contra toda a lógica cientifica
está a ver porque é tão difícil discutir a fé, qualquer que ela seja?
O catolicismo está cheio de dogmas, milagres e outros que tais, como bem sabe, racionalizá-los é obrigar a descrença, penso eu, mas posso estar errada.
Lendo o post do sr me pergunto mais uma vez, o que e por que a necessidade de justificar o as vezes injustificável? Concordo com o post de Marta e noto uma breve incoerência em seu post Carlos. Vc disse que seria milagre o que não poderia ser explicado como a volta a vida de alguém que morreu. Não estive em Fátima, nem mesmo conheço bem a história, mas tenho fé sim e vivo muito bem com isso. E sei, dentro da minha fé que diariamente, ocorrem coisas não explicáveis pela ciência, que tenta, tenta e tenta, mas sempre consegue encontrar mais perguntas e dificilmente respostas. Isso não deixa de ser um milagre. Portanto o sol se mover é o mínimo que se pode esperar de um verdadeiro milagre. Temos muito o que aprender, mas pra mim, o que mais nos falta é a humildade de que sabemos muitooooo pouco.
Marta:
Peço desculpa pela demora na resposta:
Defender os milagres dizendo que por definição são algo que não tem justificação científica não colhe.
É suposto nos milagres ocorrerem coisas empíricas, factuais - o género de coisas que tem justificação científica. Para aceitarmos que esses casos estão fora do alcance da análise científica seria preciso uma boa justificação. Uma justificação compreensível e racional e não a mera fé - caso contrário só convencerá quem já está convencido. Que tipo de justificação? Científica não, pois pretende-se que a ciência não chega lá. Filosófica, então... O Carlos Ricardo Soares claramente não a apresentou. Se algum leitor quiser tentar...
Ingrid:
Não há incoerência nenhuma: um milagre, se fosse real, seria algo que contrariaria as leis da natureza. Se fosse... O ónus de mostrar que são reais cabe a quem neles acredita. Mas os crentes raciocinam de modo circular e limitam-se a falar de fé - o que só convence quem já acredita. Trata-se de uma falácia, conhecida por petição de princípio ou círculo vicioso.
Por outro lado: a humildade intelectual está do lado de quem procura pensar com base na experiência e não de quem tem certezas acerca do que foge completamente à experiência e à possibilidade de verificação. É mais humilde não acreditar em milagres do que acreditar.
Outra coisa: dizer que algo (por exemplo os milagres) é verdadeiro porque somos muito ignorantes e há muitas coisas que desconhecemos constitui uma falácia chamada "apelo à ignorância".
"mas isso não implica necessariamente que a fé seja inimiga da razão - há pessoas com fé religiosa que procuram conciliá-la com a racionalidade."
SE a fé é nas coisas justificáveis racionalmente, ela está a mais, pois nao faz falta, basta aceitar a plausibilidade da justificaçã.
Se a fé é em coisas injustificadas, também está a mais, pois engana.
Donde conciliar a Fé com a racionalidade é uma tarefa de fé, sem justificação racional.
Talvez por isso, as tentativas de unir fé e racionalidade corram tão mal. Essa empresa começa logo onde acaba. Que é ser um projecto de FÉ
" Temos muito o que aprender, mas pra mim, o que mais nos falta é a humildade de que sabemos muitooooo pouco."
Sim sabemos pouco. Mas ir contra as melhores explicações e preferir as piores apenas porque sabemos pouco é deitar fora o pouco que sabemos.
... E por no seu lugar coisas que não sabemos. Arbitrárias, a gosto, e injustificadas.
Milhões de milagres ocorrem cotidianamente em igrejas evangélicas. Supondo que David Hume tenha sido um homem sensato, julgo que ele haveria de concordar que testemunhos diários de curas de câncer terminal e outras doenças devido a uma oração feita em nome de Jesus de Nazaré, pelo número, circunstâncias e gravidade, não podem ser outra coisa que não milagrosas - pois afirmo que isso ocorre e é publicado todos os dias, incluindo em meu país, o Brasil! Embora milagres feitos em nome de Jesus não provem que Deus exista, creio que fornecem boas razões para, com sensatez, se acreditar nisso
Dois comentários que podem ajudar a clarificar algumas confusões:
(1) O argumento de Hume não parece ser metafísico mas sim epistémico. Assim ele não está a argumentar que os milagres são falsos ou até impossíveis; pelo contrário, só está a argumentar que não é razoável ou racional acreditar em milagres (através do testemunho). Por isso não percebi a última frase do teu post quando escreves que "Os milhões de pessoas que acreditam no milagre de Fátima acreditam, portanto, numa falsidade". No máximo o que se pode concluir com uma argumentação humeana é o seguinte: os milhões de pessoas que acreditam no milagre de Fátima acreditam nalgo que é, do ponto de vista epistémico, irrazoável ou irracional. Mas daí não se segue que o milagre em questão seja falso ou sequer impossível. Estás a ver a diferença? Para mostrar isso seria necessário outro tipo de argumento. É também relevante salientar que o argumento do Hume está a pressupor uma concepção reducionista do testemunho. Agora a questão interessante a discutir é a de saber se o argumento continua a correr com uma concepção não-reducionista do testemunho (na linha de Thomas Reid). E já agora é importante discutir que concepção de testemunho será a mais plausível (a reducionista, ou não-reducionista, ou uma híbrida, ou ainda defender-se uma abordagem pluralista do testemunho caso-a-caso). Cada uma destas concepções terá consequências diferentes para se aceitar um dado testemunho(s) como racional ou irracional.
(2) O Richard Dawkins (como costuma fazer com alguma frequência) está a apresentar nessa citação do post uma clara falácia do Straw Man (ou do homem de palha). Ninguém que investigou seriamente e que procura defender racionalmente esse fenómeno de Fátima sustenta que "o Sol realmente se moveu". Por exemplo, o padre e físico Stanley Jaki no livro "God and the sun at Fatima" (de 1999) afirma que muito provavelmente o fenómeno que ocorreu em 13 de Outubro de 1917 é de natureza meteorológica e não de natureza astronómica, sendo completamente passível de ser explicado de um ponto de vista naturalista (pela conjunção de nuvens do tipo cirro, de nuvens de baixa altitude, de ventos, etc...). Mas, então, onde está o milagre? Caso exista realmente milagre, ele parece estar na previsão impressionante desse fenómeno meteorológico (pois os pastorinhos anunciaram com antecedência e precisão o dia, hora, e local desse fenómeno; foi aliás por causa disso que estava tanta gente naquele local naquele dia). É claro que é muito disputável se isto, entendido desta forma, é realmente um milagre. Mas se Deus existir, será isso impossível ou bastante improvável? Mas quer tenha havido ou não milagre, é preciso salientar que a crítica do Dawkins falha completamente no alvo e que está, mais uma vez, a cometer um Straw Man.
Domingos:
não tenho agora oportunidade de ir reler o David Hume, mas duvido que ele não quisesse dizer que os milagres são falsos (impossíveis é outra coisa). Ele defende que não é razoável acreditar nos milagres pois muito provavelmente são falsos.
Há de facto várias conceções acerca do testemunho e do seu valor epistémico, mas para duvidar do testemunho de pessoas que alegam ter presenciado um milagre não é preciso discuti-las. Se alguma conceção de testemunho não me permitir duvidar do testemunho de ‘milagres’ interpretarei isso como uma fraqueza dessa conceção.
Quanto ao Dawkins: é verdade que ele atira muita vezes ao lado, mas não me parece que seja o caso. O que conta não são as pessoas que “investigaram seriamente” esse fenómeno, mas sim os crentes e a Igreja Católica que dizem ter ocorrido esse milagre. São eles que Dawkins critica e não os investigadores que referiste. Não há portanto nenhum “boneco de palha”.
A falácia que existe nesta história é o apelo à ignorância envolvido muitas vezes na afirmação de algo é um milagre: como não se conhece causa natural presume-se que há uma causa sobrenatural.
Só mais uma coisa: prefiro ler-te quando discutes os argumentos clássicos acerca da existência de Deus. Julgo que esses argumentos são mais fracos que as objeções que suscitam. Mas são argumentos interessantes, estimulantes e… racionais. Podemos discuti-los e interessar-nos por eles independentemente de termos ou não fé religiosa. Já não penso o mesmo da tentativa de justificar racionalmente outros aspetos da religião cristã: os milagres, a ressurreição de Cristo, etc. Para dar importância intelectual (por assim dizer) a esses aspetos julgo que é preciso ter fé. São aspetos poucos racionais. Não me parecem bons tópicos filosóficos, portanto.
Muito obrigado pela resposta, Carlos Pires! Infelizmente a caixa de comentários do Blogger não me deixa introduzir mais de 4000 caracteres. Por isso, a resposta continua na caixa de comentários do facebook deste post. Assim, para se acompanhar a discussão pode-se clicar directamente aqui. Obrigado :)
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