domingo, 30 de maio de 2010

O aborto em debate: a opinião dos alunos (1)

Pedi aos meus alunos do 10º (turmas A e C) e 11º (turma B), que lessem alguns artigos filosóficos com argumentos a favor e contra o aborto (disponíveis aqui) e elaborassem um pequeno ensaio defendendo o seu ponto de vista.

O melhor ensaio contra o aborto foi escrito pela aluna Ana Marta Nunes do 10º C, que defende que este é moralmente incorrecto, a não ser em algumas circunstâncias excepcionais.

Ei-lo:

No problema ético do aborto, ou interrupção voluntária da gravidez, discute-se  a moralidade deste acto, a qual depende em grande medida do debate acerca do direito à vida do feto. É diferente do debate político acerca da mesma questão. Não se coloca a questão de o aborto dever ser legalizado ou não e em que termos isto deve acontecer mas sim se este é moralmente correcto ou incorrecto. Pessoalmente, acredito na imoralidade do aborto. Concordo com o facto de que, em certas circunstâncias que passarei a explicar, este possa ser moralmente admissível e como tal, deva ser legalizado mas, na maioria dos casos, considero-o como sendo incorrecto. Irei então apresentar alguns argumentos que justificam o meu ponto de vista.

Um deles compara o aborto ao homicídio. Não há dúvida de que abortar consiste em matar o feto, impedir que este nasça. Sendo que consideramos moralmente errado e mesmo repugnante matar uma pessoa adulta, porque haveremos de considerar correcto matar o embrião ou feto? Isto prende-se com a questão da humanidade do feto. Será que este é efectivamente um ser humano? Mesmo que consideremos o critério da consciência e racionalidade, ou seja, mesmo que afirmemos que estas são características necessárias para sermos “pessoas”, o facto de excluirmos o feto desta categoria implicaria a exclusão dos recém-nascidos, pois estes também não são capazes de qualquer tipo de pensamento racional e não têm, em grande parte, consciência da sua vida e do facto de que podem vir a ter um futuro, etc... Seguindo este raciocínio, que me parece bastante válido, para admitirmos o aborto como moralmente correcto, temos de fazer o mesmo com o infanticídio. Quantos de nós o acham permissível? Não será exactamente o mesmo que o aborto? Mesmo que admitamos que um feto não tenha consciência do que o rodeia (pressuposto com o qual não concordo e contra o qual existem inúmeros estudos científicos) nem pensamento racional, temos de admitir o mesmo em relação aos bebés recém-nascidos, assim como em relação aos portadores de certas deficiências mentais, o que me leva a concluir que o aborto é moralmente errado.

O outro argumento que gostaria de apresentar foi primeiramente formulado por Don Marquis. Este, partindo do mesmo pressuposto que já referi acima e que a maioria dos indivíduos aceita como verdadeiro – o direito dos seres humanos à vida, questiona o porquê de considerarmos esse direito. Segundo ele, um ser humano tem direito à vida porque valoriza o futuro que poderá ter. Matar um homem adulto é moralmente errado porque o priva das experiências, das sensações, dos potenciais sucessos do seu futuro, os quais ele viria a valorizar. Analogamente, um feto possui também o direito à vida e como tal o aborto é moralmente incorrecto. O feto poderá também, assim como um ser humano adulto, ter um futuro que, embora não valorize no momento, virá muito provavelmente a valorizar mais tarde e matá-lo será privá-lo desse futuro sendo, nestes termos, tão mau matar um feto como um indivíduo adulto.

Mas por alguma razão esta é uma questão polémica. Se os argumentos contra o aborto fossem únicos e inquestionáveis, nunca existiria um debate desta questão ética. Um dos argumentos a favor da moralidade do aborto é o “argumento do violinista”. Este consiste numa experiência mental que nos pede para imaginar uma situação em somos raptados por uma sociedade de apreciadores de música que liga o nosso sistema circulatório ao de um violinista famoso, que tinha uma doença renal fatal e cujo tipo de sangue era apenas com o nosso. Teríamos então de tomar a decisão de ficar ligados ao violinista durante 9 meses, após os quais ele ficaria curado, ou de nos desligarmos dele, matando-o. O objectivo é reflectir se nós seríamos moralmente obrigados a aceitar a situação quando esta aconteceu contra a nossa vontade ou desligarmo-nos do violinista que nada tinha a ver connosco. Este argumento põe qualquer pessoa numa situação difícil, pois seria quase inimaginável desperdiçar 9 meses da nossa vida para salvar a vida de um estranho que estava ligado a nós, coisa que nem sequer tínhamos pedido. Há, no entanto, uma grande inconsistência na comparação deste argumento com uma gravidez. Estas relevantes diferenças foram já referidas na frase anterior como sendo os factores que mais influenciariam a dizer que não nos sentiríamos a obrigação moral de permanecer ligados ao violinista – o facto de ele ser, para nós, um total estranho, e o facto de a ligação com ele ser totalmente involuntária. Numa gravidez não é isso que sucede (excepto em raros casos que referirei mais à frente). Desde muito cedo se cria um vínculo mãe-feto. Este não é apenas biológico, como descrito na experiência mental do violinista mas também emocional. Um feto que foi concebido no corpo de alguém não é, para essa pessoa, um completo estranho.

Além disso, o que talvez seja mais importante, é que uma gravidez não é algo totalmente involuntário. Nunca existirá uma situação em que alguém acorda e descobre que está grávida sem nunca ter feito nada que pudesse levar a esse estado de coisas. Hoje em dia, somos introduzidos aos métodos contraceptivos bastante cedo. Existe uma grande preocupação nos países desenvolvidos em informar os jovens acerca de como prevenir uma gravidez indesejada. Com tanto informação e acesso grátis a métodos contraceptivos eficazes, como podemos afirmar que não temos responsabilidade pelo que aconteceu? Foram acções deliberadas que conduzem a uma gravidez. Se as pessoas fazem sexo, é porque querem. Se não utilizam métodos contraceptivos é, na maioria das vezes, porque não querem. Já ouvi inúmeras vezes que “o preservativo não presta porque tira o prazer todo”. As pessoas podem até não pensar nas consequências das suas acções e frases como a que acabei de citar são sinal de uma certa ignorância mas elas são, em última instância, responsáveis pelas suas acções e, como tal, devem aceitar as consequências. Diria mesmo que estão moralmente obrigadas a aceitar as consequências, principalmente quando isso põe em causa a vida do feto, o futuro de um potencial ser humano. Mas existem casos em que os métodos contraceptivos não cumprem o seu objectivo de evitar uma gravidez, certo? Sim, mas temos de ter em conta que o seu grau de eficácia é bastante grande: o preservativo, por exemplo, tem um grau de eficácia de cerca de 97%. Pergunto-me que percentagem de abortos são realizados devido à ineficácia dos métodos contraceptivos. De certeza não é muito elevada. Quem for por aí estará apenas a defender que uma pequena parte dos abortos são moralmente admissíveis, posição com a qual eu concordo. Se uma pessoa tiver feito tudo ao seu alcance para não engravidar ou se a gravidez for resultante de um acto sexual involuntário como uma violação, não existe obrigação moral de aceitar as consequências e, como tal, o aborto pode, nessas excepções, ser moralmente admissível. O mesmo acontece com a situação em que a vida da mãe se encontra em risco. Nesta caso utilizarei a perspectiva utilitarista para defender a minha posição. Se a gravidez não for interrompida, o mais provável será a morte tanto da mãe como do feto. Se se recorrer ao aborto, salvar-se-á a vida da mãe, em detrimento da do feto, o que causará menos infelicidade global do que a primeira situação referida. Como tal, essa é a última das três excepções em que considero o aborto moralmente permissível.

Para concluir, gostaria apenas de resumir a minha posição, que pode não ter ficado clara no início do comentário: considero, pelas razões acima referidas, que o aborto é moralmente incorrecto salvo em casos em que a gravidez seja completamente involuntária, ou seja, quando a mulher utilizou os métodos contraceptivos disponíveis e estes falharam sem que esta falha tenha sido culpa dela ou quando foi vítima de violação, ou em casos em que a vida da mulher esteja em risco caso não se interrompa a gravidez.

Ana Marta Nunes, 10º C

 

5 comentários:

Ai meu Deus disse...

Continuo com muita dificuldade em entender as posições semelhantes à da autora do ensaio (parabéns, Ana!, apesar de não estarmos de acordo): isto é, a posição de quem é contra o aborto, por o considerar um homicídio, mas admite excepções.

Se matar o feto (e o embrião) é, como aqui se defende, um homicídio -- matar o feto (ou o embrião) que resulta duma violação ou dos "falhanços" dos métodos anti-conceptivos já não é homicídio? o que é que tira a esse feto (ou embrião) o direito à vida e o "potencial humano" que existe nos outros casos?

Abraço.

Pedro Ricardo Tordo disse...

Muito bem arguemtado. Se uma aluna do 10º pensa e escreve assim, talvez nem tudo esteja perdido na educação portuguesa.
A questão é esta: porque é que a Ana é capaz e milhares de outros jovens alunos não são?

Sara Raposo disse...

Pedro:

Passo a responder à sua questão:
Porque a Ana é uma aluna excepcional e, infelizmente, poucos alunos têm o seu tipo de atitude. O seu “segredo” é um segredo aberto: grandes capacidades e trabalho.

Creio que os milhares de alunos de que fala (embora haja, naturalmente, excepções e, felizmente, tenho a sorte de ser professora de algumas dessas excepções) percebem que não necessitam de se esforçar muito e, portanto, mesmo aqueles que tinham mais potencialidades se adaptam ao facilitismo.

Um dos factores que explica esta atitude por parte da maioria dos alunos é o facto do Ministério da Educação não ter uma política que promova a exigência e o reconhecimento do mérito. Assim, em virtude de certas ideias pedagógicas erradas, do meu ponto de vista, há muitos alunos no sistema de ensino português que não aprendem o que seria possível e desejável.

Cumprimentos.

argumentonio disse...

surpreende-me a publicação de textos de alunos, preparados no contexto reservado de um processo de aprendizagem e avaliação...

os argumentos expostos são perfeitamente válidos e defensáveis, pese embora a dificuldade do tema: bibliotecas já foram escritas sobre o assunto e alguns dilemas subsistem nos especialistas mais dedicados como na população em geral

o parágrafo final, enredado em contradição, é bem exemplo, talvez seja prematuro, aos 15 ou 16 anos, avançar com uma conclusão, sobretudo abrindo a flanco a temas tão complexos como o próprio motivo da análise principal

mas revela-se uma capacidade de apreciação e exposição, de bom nível, o que talvez não permita concluir sobre o que há ou não de errado em política educativa nenhuma - alguns alunos, em seu contexto familiar e educativo, dispõem-se a trabalhar e a aproveitar o tempo a aprender, enquanto outros preferem distrair-se e até distrair os demais, tal como há professores que estimulam os seus alunos e outros que se deixam enredar em estéreis problemáticas de fino recorte pseudo-sindical

parabéns aos autores do blog e aos alunos que nele participam

;_)))

Sara Raposo disse...

Em resposta ao comentário anterior.

Obrigada pelas palavras amáveis.
Discordo de algumas das ideias que referiu no seu comentário, a saber:

- Quanto à publicação dos trabalhos dos alunos, os autores deste blogue utilizam-no como um instrumento de trabalho em casa e nas aulas, tal como os alunos a que leccionam. Como poderá verificar noutros posts, os alunos enviam, sob a forma de comentário, alguns dos trabalhos que solicitamos. Não percebi as suas reservas em relação à publicação dos trabalhos dos alunos, considero que, depois de ter avaliado, destacar os melhores é uma forma não só de reconhecer e incentivar o mérito como de tornar transparente o processo de aprendizagem e de avaliação.

- Em relação à dificuldade do tema e à ausência de consenso: isso acontece em relação aos problemas filosóficos em geral e não vejo que constitua nenhum obstáculo à discussão, antes pelo contrário, torna-a inevitável. Evoca a autoridade dos especialistas e o número de livros que já foram escritos sobre o assunto. Mas repare que o objectivo principal das aulas de Filosofia deverá ser desenvolver uma atitude crítica nos alunos. Ora, só se aprende a pensar, pensando, isto é: é preciso dar a conhecer aos alunos, com rigor e clareza, argumentos filosóficos diferentes sobre o problema em causa e depois levá-los a exercitarem o seu próprio pensamento e a justificarem racionalmente a sua opinião. A desejada atitude crítica (um objectivo que na escola toda a gente gosta de repetir, mas pouco de praticar) não se desenvolve venerando autoridades e ideias feitas.

- Não percebo qual é a contradição de que fala, parece-me que a posição defendida se encontra bem sustentada do ponto de vista argumentativo. Mas posso estar a ver mal. Peço-lhe que me elucide.

Cumprimentos.