«Um trabalho científico de qualquer área, para ser aceite como tal, necessita de ser validado pela comunidade científica, como se deduz imediatamente do critério de falsificabilidade de Karl Popper [ver a propósito o post As teorias científicas são falsificáveis]. Essa validação, independentemente da área científica, processa-se através da peer review, ou aprovação pelos pares. O cientista escreve os seus resultados sob a forma de um artigo - talvez depois de apresentar versões preliminares sucessivamente em seminários locais e em conferências internacionais - que submete para publicação a uma revista profissional da especialidade. Essa publicação tem obrigatoriamente de possuir um sistema de refereeing (que em português poderia traduzir-se por arbitragem), que consiste no seguinte: o conselho editorial está em contacto com centenas dos maiores especialistas mundiais nas matérias cobertas pela publicação e envia o artigo em questão a pelo menos dois especialistas (normalmente três ou mesmo mais), cuja identidade é confidencial e que irão desempenhar o papel de referees.
O trabalho dos referees é, literalmente, o de advogados do diabo. O artigo será cuidadosamente analisado sob todos os pontos de vista, tentando detectar incorrecções ou pontos fracos (ou seja, falsificar os resultados!). No final deste processo, que tipicamente demora meses, elaboram um relatório sobre o artigo com as recomendações relevantes: rejeição, reenvio ao autor para correcções ou aceitação. O editor reenvia então o artigo e os relatórios ao autor e o processo recomeça. Nas revistas mais importantes de certas áreas este pingue-pongue pode durar anos.
Sendo optimista, e admitindo que o artigo foi finalmente aceite, é publicado. Isto não é, no entanto, o final; após a publicação, o artigo será estudado, analisado, as eventuais experiências reproduzidas, etc. Em qualquer destas fases podem encontrar-se erros no trabalho; no caso de isso acontecer, não terá qualquer validade científica e espera o cientista o maior opróbrio de todos: a suprema humilhação da retratação pública.
Apenas depois de passadas todas estas fases o artigo é considerado aprovado pela comunidade científica e aquilo que descreve pode ser considerado conhecimento legitimamente científico.
Esta descrição exaustiva tem o objectivo de explicar a seguinte afirmação. O valor científico de um artigo publicado, nem que fosse por Albert Einstein, numa publicação sem sistema de refereeing e peer review é nulo. Isto é uma afirmação com a qual 100% dos cientistas estão de acordo: em termos de avaliação da sua carreira científica, sabem por experiência própria que as publicações não validadas pela comunidade científica através do refereeing valem zero. São meras opiniões, talvez interessantes, mas com tanto valor científico como o editorial do jornal de domingo.
É um sistema rigoroso? Sim. É um sistema injusto? Não. Este mecanismo foi desenvolvido ao longo do tempo para protecção contra erros de boa fé (e algumas fraudes de má fé) com que a ciência se debateu ao longo da era moderna. É, provavelmente, o mecanismo de autocontrolo intelectual mais rigoroso que alguma vez foi concebido - uma espécie de seguro antierros. Relaxe-se o crivo - e os erros começarão a penetrar.»
Jorge Buescu, O Mistério do Bilhete de Identidade e Outras Histórias, 9ª edição, Gradiva, Lisboa, 2004, pp. 14-15.
Este texto faz parte do prefácio do livro. Este inclui diversos pequenos textos onde o autor procura, numa linguagem clara e rigorosa acessível a não especialistas, responder a questões como: “O que significa aquele misterioso algarismo que se segue ao número do bilhete de identidade? Qual é a relação do jogo Minesweeper com o problema mais importante da matemática? O que é a teleportação quântica? Por que é falso e completamente absurdo o mito segundo o qual os seres humanos ‘usam apenas 10% do seu cérebro’?” Ou seja: divulgação científica de grande qualidade.
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