Considero imprescindível que haja avaliação externa do trabalho desenvolvido pelos professores e pelos alunos. Por isso, julgo que devem existir testes intermédios e exames nacionais. Para um professor perceber se as suas práticas são ou não adequadas tem de se dar ao trabalho de as comparar com as dos outros professores. A avaliação externa incentiva ao diálogo e à crítica, que são os melhores meios para corrigir ou aperfeiçoar o que pensamos e o que fazemos. Os testes intermédios e os exames possibilitam a aferição dos resultados obtidos pelos alunos e a avaliação da qualidade do ensino ministrado pelos professores, distinguindo o mérito ou a falta dele. É óbvio que esta finalidade só é alcançável se os exames e os testes forem adequados, do ponto de vista científico e pedagógico e não promoverem o facilitismo e a consequente inflação das classificações.
Duvido que a maioria dos professores (à semelhança, aliás, dos profissionais de outras áreas) sinta a necessidade de se actualizar cientificamente ou alterar as suas práticas sem um constrangimento exterior que os leve a expor publicamente os resultados do seu trabalho. Os testes intermédios e os exames são o melhor meio – com imperfeições, é certo - de conseguir avaliar de forma imparcial, com o rigor e a objectividade possíveis, o que é mais importante: a qualidade do ensino e das aprendizagens.
Há testes intermédios e exames a várias disciplinas. A Filosofia não deve ser uma excepção. Como se poderia justificar que fosse?
Existem vários outros argumentos favoráveis à aplicação dos testes intermédios e dos exames. Desses destaco este: promove um maior empenho dos alunos (e professores), como pude verificar agora no teste intermédio de Filosofia.
Fui correctora dos testes intermédios de Filosofia. Penso que o teste foi acessível e os resultados globalmente positivos. Mas confesso que esperava pior, dada a inexistência de orientações específicas relativas aos conteúdos programáticos a testar, a vagueza da linguagem utilizada no programa e, sobretudo, a disparidade de abordagens efectuadas pelos diferentes manuais e professores.
No entanto, impõem-se várias críticas. Eis algumas delas.
Julgo que a formulação de algumas questões era pouco clara. Por exemplo: no Grupo I, a questão 2, em que se pedia para explicitar o conceito de acção presente no texto. Na questão 2 do Grupo III, na indicação dada aos alunos dos aspectos a abordar, há uma sobreposição entre o primeiro tópico: a explicitação do “princípio ético da maior felicidade em Stuart Mill”, e o segundo tópico, em que era necessário explicar o “critério da moralidade em Stuart Mill”, pois este último corresponde ao mesmo que era pedido no tópico anterior (ou seja ao princípio da maior felicidade). Quanto aos textos apresentados, alguns deles eram pouco informativos ou mesmo pouco adequados em relação à questão formulada. Veja-se o caso do texto apresentado no Grupo I (na questão 2) que se relaciona mais com o problema filosófico do sentido da vida do que propriamente com o conceito de acção.
Por outro lado, nalgumas questões atribuiu-se um peso excessivo às competências interpretativas em detrimento das filosóficas.
Houve conteúdos, filosoficamente relevantes, que não foram objecto de avaliação no teste: as teorias do relativismo moral e cultural; o subjectivismo moral; a teoria dos mandamentos divinos; as críticas às teorias éticas de Kant e Stuart Mill e noções lógicas como as de argumento, premissa, tese e contra-exemplo - que poderiam ser aplicadas à análise de textos e exemplos. Aliás, a capacidade de utilizar estes conceitos lógicos fazia parte – segundo as informações emitidas pelo GAVE sobre o teste intermédio (pág. 2) - das competências a avaliar.
A gestão do tempo na leccionação programa poderia levantar algumas dificuldades. Habitualmente, os professores não chegam a 22 de Fevereiro tendo dado Kant e Stuart Mill. A leccionação destes conteúdos até esta data obrigou a uma definição de prioridades e, na ausência de indicações específicas, cada professor geriu o tempo disponível em função do que considerou mais importante. Assim, eu assumo que privilegiei nas aulas o estudo das teorias éticas de Kant e Stuart Mill - a parte do programa do 10º ano que considero mais interessante e filosoficamente relevante – em detrimento de temas vagos, como, por exemplo, “a rede conceptual da acção”. Os meus alunos tiveram até uma certa sorte, pois o texto do Stuart Mill (do Grupo III) tinha sido analisado nas aulas.
Em relação ao futuro, sugiro que o Ministério da Educação especifique, antecipadamente, com clareza os conteúdos programáticos que irão ser avaliados ou então mude o programa em vigor. Só assim se podem ultrapassar alguns problemas decorrentes da linguagem vaga utilizada nalguns manuais e no próprio programa de Filosofia. Há manuais (e professores) com abordagens inadequadas que, em vez de privilegiarem o confronto e a discussão das teorias e dos argumentos, apresentam uma imagem errada da Filosofia, reduzindo-a a um conjunto de frases para memorizar sem se compreender as ideias em causa ou a relação destas com a realidade - e, sobretudo, sem se discutir se as ideias expressas são verdadeiras ou falsas.
Assim, pressupondo que essas orientações de gestão do programa eram dadas pelo Ministério da Educação, penso que, ao contrário do que está previsto acontecer no próximo ano lectivo, deveria existir um exame de Filosofia que fosse obrigatório para a conclusão da disciplina no 11º ano e não funcionasse apenas como prova específica.
8 comentários:
Derland:
Obrigado pela suas palavras simpáticas. Agradeço a sua sugestão.
Cumprimentos.
Excelente reflexão, Sara. Subscrevo inteiramente. É curioso que no texto que escrevi sobre o teste intermédio de filosofia tenha defendido a maior parte destas posições. E que fique claro que não combinámos nada!
Abraço para ti e para o Carlos
Olá Carlos:
Agradeço as tuas palavras simpáticas.
É verdade que não combinamos nada Pode-se chegar facilmente às ideias que aqui defendi, ou tu defendeste, se nós professores de Filosofia reflectirmos com seriedade intelectual sobre o assunto em causa. Mas o que eu gostava mesmo é que, além de algumas ideias consensuais, se tirassem consequências práticas e houvesse uma mudança de atitude por parte do ministério e dos professores de Filosofia em geral.
Daí que seja importante as pessoas discutirem e apresentarem os seus pontos de vista. O meu contributo está dado, se serve ou não para alguma coisa, veremos...
Cumprimentos.
Os senhores e as senhoras, professores e professoras de filosofia,conseguem justificar filosofica e pedagogicamente, a inserção de itens de escolha múltipla num teste de filosofia? Gostava de saber. Obrigada.
Sarabanda:
A Filosofia é uma disciplina como as outras: utiliza terminologia específica, cujo significado os alunos devem conhecer; exige que se compreendam os problemas, os argumentos e as teorias em causa. Além disso, os alunos devem ser capazes de avaliar criticamente e discutir as teorias dos filósofos que estudaram, apresentando os seus próprios pontos de vista.
Se assim é, porque motivo não se haveria de fazer questões de escolha múltipla?
Tal como acontece nas outras disciplinas, esta também implica utilização rigorosa dos conceitos, compreensão clara das ideias e teorias. Assim, só para quem entende a filosofia como uma convesa de café, vaga, em que cada um diz o que lhe vem à cabeça, sem se preocupar com a coerência lógica ou a justificação racional do seu discurso, é que os itens de escolha múltipla do teste de Filosofia não fazem sentido.
Cumprimentos.
Viva.
Eu não fui corrector do teste, mas não havia na verdade pelo menos uma questão de escolha múltipla sobre relativismo cultural (por sinal, mal feita)?
Cumprimentos.
António Lopes
António ou Ana (fiquei baralhada! :)
Existiu realmente uma questão de escolha múltipla sobre o relativismo cultural no teste, cuja formulação não primava pela clareza. Um aluno capaz de pensar no significado dos termos utilizados nas frases - mesmo sem ter estudado filosofia - poderia inferir qual era a opção certa.
Não era necessário ter estudado os principais argumentos em que se baseia essa teoria ou algumas das pertinentes objecções que se lhe podem colocar, em particular os contra-exemplos. O que, como é bom de ver, tornava a questão pouco substancial ou mesmo irrelevante, pois não permitia avaliar competências especificamente filosóficas. Daí que eu tenha afirmado que esta teoria não foi, de facto, considerada nas questões do teste intermédio. E substancialmente não foi mesmo.
Cumprimentos.
É António mesmo. De facto, é abracadabrante porque aparece Ana na minha mensagem... Também, não percebo nada de blogues. Mas de filosofia percebo um pouco, e tem de facto razão em dizer que a teoria em causa nem sequer é objecto de avaliação real. Aliás, é mais grave do que isso: a resposta considerada certa é um erro científico. Deixo aqui uma exposição que já fiz.
"Segundo o relativismo cultural, (B) os critérios para avaliar as acções são variáveis."
É um disparate - para o qual de resto nunca paro de advertir os meus alunos de 10º ano - afirmar que uma qualquer tese filosófica "defende" algo que é pura e simplesmente um facto empírico, i.e., que os critérios de valor variam temporal, espacial e subjectivamente. Podíamos substituir "relativismo" por objectivismo, e a frase continuaria (trivial e enganadoramente) verdadeira: ninguém no seu perfeito juízo imagina que os critérios de valor culturais NÃO variam! O que distingue uma teoria filosófica de outra é o modo como interpretam e explicam os factos à nossa volta. Para o relativista, essa variação é o fim da história, ou porque defendem o irrealismo quanto aos valores (ou quanto a propriedades valorativas ou que fundamentam os juízos de valor) ou porque defendem a impossibilidade do nosso acesso epistémico a tais valores, pelo que os nossos diferentes e contraditórios juízos de valor moral (para ir ao encontro da questão em particular) ou são todos verdadeiros, ou são todos falsos - porque não existem os estados de coisas que eles supostamente refeririam - ou não têm valor de verdade. Para o objectivista, o facto à frente dos nossos narizes de que "os critérios para avaliar as acções são variáveis" é perfeitamente compatível com a possibilidade de que uns, e não outros, sejam OS CORRECTOS, sendo isso explicado por exemplo pela dificuldade, maior no caso dos valores do que no das propriedades físicas, em determinar o valor real de acções. Resumindo, o objectivista diria exactamente o que é erradamente atribuído na resolução ao relativista, juntando-lhe "mas um desses critérios poderá ser correcto, ou poderão ser todos incorrectos, e um critério ainda não descoberto ser o correcto - pelo que os juízos de valor moral são verdadeiros ou falsos, simplesmente não somos neste momento capazes de os distinguir.
O erro é grosseiro, tanto quanto o é dizer que o marxismo é a doutrina política que defende que há no mundo exploração do Homem pelo Homem ou que o determinismo é a teoria filosófica que defende que as acções têm uma causa.
Dir-se-á que os alunos não devem errar esta resposta, pois é a única plausível por exclusão de partes, sendo as 3 restantes óbvia - e algumas, disparatadamente - falsas. Mas isso é mais um erro, desta feita didáctico: não se avalia nada de jeito numa pergunta de escolha múltipla em que não há sequer uma outra resposta plausível para além da correcta.
Numa nota pessoal, tive sorte por não ter 10º ano este ano, pois os meus bons alunos seriam objectivamente prejudicados por questões como esta - mesmo que acertassem, despenderiam tempo desnecessário a pensar no assunto, que não despenderiam se a resposta estivesse correcta, o mesmo sucedendo nas questões redundantes sobre o utilitarismo - pois, como tive oportunidade de "testas" com os meus actuais 11ºs, depois de relembrarem o essencial desta questão, foram eles próprios que, depois de eu lhes ler apenas a frase completada pela resolução esperada, afirmaram algo como "então mas isso também os objectivistas sabem, porque é um facto". Pois é...
Cumprimentos,
António (a sério!)
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