«Notei, há alguns anos já, que, tendo recebido desde a mais tenra idade tantas coisas falsas por verdadeiras, e sendo tão duvidoso tudo o que depois sobre elas fundei, tinha de deitar abaixo tudo, inteiramente, por uma vez na minha vida, e começar, de novo, desde os primeiros fundamentos, se quisesse estabelecer algo de seguro e duradouro nas ciências. Então, hoje, (…) vou dedicar-me, por fim, com seriedade e livremente, a destruir em geral as minhas opiniões.
Para isso não será necessário mostrar que todas são falsas, o que possivelmente eu nunca iria conseguir. (…) Não tenho de percorrê-las cada uma em particular, trabalho que seria sem fim: porque uma vez minados os fundamentos, cai por si tudo o que está sobre eles edificado, atacarei imediatamente aqueles princípios em que se apoiava tudo o que anteriormente acreditei.
Sem dúvida, tudo aquilo que até ao presente admiti como maximamente verdadeiro foi dos sentidos ou por meio dos sentidos que o recebi. Porém, descobri que eles por vezes nos enganam, e é de prudência nunca confiar naqueles que, mesmo uma só vez, nos enganaram.
Mas ainda que os sentidos nos enganem algumas vezes sobre coisas pequenas e afastadas, há todavia muitas outras de que não podemos duvidar, embora as recebamos por eles: como, por exemplo, que estou aqui, sentado junto à lareira, vestido com um roupão de Inverno, que toco este papel com as mãos, e outros factos semelhantes. E ainda, qual a razão por que se poderia negar que estas próprias mãos e todo este meu corpo são meus? (…)
Ora muito bem, como se eu não fosse um homem que costuma dormir de noite e consentir em sonhos (…) [muitas coisas irreais]. Com efeito, quantas vezes me acontece que, durante o repouso nocturno, me deixo persuadir de coisas tão habituais como que estou aqui, com o roupão vestido, sentado à lareira, quando todavia estou estendido na cama e despido! Mas agora, observo este papel seguramente com os olhos abertos, esta cabeça que movo não está a dormir, voluntária e conscientemente estendo esta mão e sinto-a: o que acontece quando se dorme não parece tão distinto. Como se não me recordasse de já ter sido enganado em sonhos por pensamentos semelhantes! Por isso, se reflicto mais atentamente, vejo com clareza que vigília e sonho nunca se podem distinguir por sinais seguros, o que me espanta (…).
[Contudo], a Aritmética, a Geometria e outras ciências desta natureza, que só tratam de coisas extremamente simples e gerais e não se preocupam em saber se elas existem ou não na natureza real, contêm algo de certo e indubitável. Porque, quer eu esteja acordado quer durma, dois e três somados são sempre cinco e o quadrado nunca tem mais do que quatro lados e parece impossível que verdades tão evidentes possam incorrer na suspeita de falsidade.
Todavia, está gravada no meu espírito uma velha crença, segundo a qual existe um Deus que pode tudo e pelo qual fui criado tal como existo. Mas quem me garante que ele não procedeu de modo que não houvesse nem terra, nem céu (...), nem grandeza, nem lugar, e que, no entanto, tudo isto me parecesse existir tal como agora? E mais ainda, assim como concluo que os outros se enganam algumas vezes naquilo que pensam saber com absoluta perfeição, também eu me podia enganar todas as vezes que somasse dois e três ou contasse os lados de um quadrado, ou em algo de mais fácil ainda, se é possível imaginá-lo. (...) Vejo-me constrangido a reconhecer que não existe nada, naquilo que outrora reputei como verdadeiro, de que não seja lícito duvidar. (...)
[Suponhamos, então, que] há um enganador (…) sumamente poderoso e astuto, que me engana sempre com a sua indústria. No entanto, não há dúvida de que existo, se me engana; que me engane quanto possa, não conseguirá nunca que eu seja nada enquanto eu pensar que sou alguma coisa. De maneira que (...) deve por último concluir-se que esta proposição Eu sou, eu existo, sempre que proferida por mim ou concebida pelo meu espírito, é necessariamente verdadeira.»
Descartes, Meditações sobre a Filosofia Primeira, trad. de Gustavo de Fraga, Livraria Almedina, Coimbra, 1985, pp. 105-119.
Descartes dando lições de Filosofia à Rainha Cristina da Suécia.
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