Sophia de Mello Breyner Andresen, fotografada por Eduardo Gageiro.
Nesta hora
Nesta hora limpa da verdade é preciso dizer a verdade toda
Mesmo aquela que é impopular neste dia em que se invoca o povo
Pois é preciso que o povo regresse do seu longo exílio
E lhe seja proposta uma verdade inteira e não meia verdade
Meia verdade é como habitar meio quarto
Ganhar meio salário
Como só ter direito
A metade da vida
O demagogo diz da verdade a metade
E o resto joga com habilidade
Porque pensa que o povo só pensa metade
Porque pensa que o povo não percebe nem sabe
A verdade não é uma especialidade
Para especializados clérigos letrados
Não basta gritar povo é preciso expor
Partir do olhar da mão e da razão
Partir da limpidez do elementar
Como quem parte do sol do mar do ar
Como quem parte da terra onde os homens estão
Para construir o canto do terrestre
- Sob o ausente olhar silente de atenção –
Para construir a festa do terrestre
Na nudez de alegria que nos veste
Sophia de Mello Breyner Andresen, Obra poética III, 2ª Edição, Editorial Caminho, Lisboa, 1996, pág. 197-198.
Para ler outros poemas (seleccionados pelos autores deste blogue) no Dia da Poesia ou noutro qualquer, pode ver AQUI.
4 comentários:
Excelente poema e que grande fotografia, acho que é quase outro poema. Arriscaria com a devida vénia à poetisa uns últimos versos ao mesmo, em complemento para os nossos dias, perdoem-me. Diria assim tentando reproduzir o ritmo e o estilo:
Nesta hora limpa é preciso também que o povo
se esforce por entender a verdade toda
Entender apenas metade da verdade é como jogar na roleta
Não saber se se escolhe viver em casa ou na rua
ignorar do que prescinde
não ter consciência de que metade da vida tem conhecimento.
Para construir o canto do terrestre
É preciso toda a atenção do povo.
É importante a Verdade e a Humildade intelectual.
Como tudo seria mais correcto se fossemos mais honestos!
Por isso estou consigo, a César o que é de César.
Obrigada pela sua frontalidade e continue.
Fernando:
Obrigada pelo seu comentário. Na sua improvisação a partir do poema chama a atenção para a necessidade dos políticos darem voz ao povo. Pois bem, se a insensatez e o autismo (de parte a parte) vigoraram durante anos a fio, será agora que algo irá mudar?
Infelizmente, eu não acredito na razoabilidade nem do povo nem dos políticos. Parece-me que apenas as dificuldades económicas poderão levar as pessoas a modificar os maus hábitos instalados ou as ideias erradas. Não creio que seja a justeza de certas ideias ou medidas a convencer o povo ou os políticos...é mais a carteira vazia ou a dificuldade em manter o poder.
Cumprimentos.
Céu:
Obrigada pelas suas simpáticas palavras. É bom, de vez em quando, relembrar o que é importante (os dias solenes também podem servir para chamar a atenção aos mais distraídos). A Sophia consegue fazer isso melhor que ninguém: com simplicidade e clareza.
Cumprimentos.
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