segunda-feira, 7 de setembro de 2009

O tempo e o uso do tempo

GCLopes0

Fotografia de Gérard Castello-Lopes.

Associo, inevitavelmente, o início do ano lectivo às seguintes ideias: “gestão do tempo”, “falta de tempo” (para realizar actividades que considero fundamentais: preparar aulas e ler livros) e “perda de tempo” (com tarefas burocráticas inúteis, por sinal inúmeras, que fazem parte do quotidiano de um professor).

Todos os anos, reflectindo sobre a experiência dos anos lectivos anteriores, prometo a mim mesma: é desta vez que uma maior capacidade de organização me permitirá ganhar tempo para o que é importante. Esta expectativa em relação ao futuro, embora contrariada pela memória dos factos passados, renasce em cada ano lectivo.

Na execução dos preparativos - planificações, cronogramas e grelhas - para alcançar a tão desejada eficácia na gestão temporal, ocorreu-me a passagem das Confissões (livro XI), onde o filósofo cristão Santo Agostinho (354-430) diz o seguinte:

“Que é, pois, o tempo? Quem poderá explicá-lo clara e brevemente? Quem o poderá apreender, mesmo só com o pensamento, para depois nos traduzir por palavras o seu conceito? E que assunto mais familiar e mais batido nas nossas conversas do que o tempo? Quando dele falamos, compreendemos o que dizemos. Compreendemos também o que nos dizem quando dele nos falam. O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém mo perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei.

A evidência deste conceito, aparentemente familiar, esvai-se quando temos de o explicar.

Quando pensamos na passagem do tempo,  percepcionamo-lo como um fluxo, em que se distingue o passado, o presente e o futuro. Porém, Santo Agostinho considera que “É impróprio afirmar: os tempos são três, pretérito, presente e futuro. Mas talvez fosse próprio dizer: presente das coisas passadas, presente das presentes e presente das futuras. Existem, pois estes três tempos na minha mente que não vejo em outra parte: lembrança presente das coisas passadas, visão presente das coisas presentes e esperança presente das coisas futuras.”

Deste modo, o passado depende das imagens mentais – seleccionadas e guardadas na memória - que o sujeito consegue evocar no presente e o futuro consiste em antecipar, no presente, imagens das coisas que ainda não existem. Daí que, Santo Agostinho afirme “o passado já não existe e o futuro ainda não veio”. Portanto, existe apenas o presente.

Todavia, à medida que cada momento (único e irrepetível) do presente flui, torna-se passado e pode apenas ser lembrado. Por exemplo: quando eu acabo de dizer a palavra “Filosofia”, o momento em que comecei a dizê-la já pertence ao passado.

A reflexão sobre o modo como apreendemos o tempo e a natureza deste – que constitui, desde os antigos gregos, um problema filosófico importante e complexo - poderá ter algumas consequências práticas na forma como gastamos o nosso tempo no dia-a-dia?

Vai iniciar-se mais um ano lectivo, durante o qual tanto alunos como professores vão investir muito do seu tempo na árdua tarefa de aprender e ensinar. Ter consciência que cada um dos instantes presentes da nossa vida é irrecuperável pode, talvez, ajudar-nos a vivê-los de modo que valha a pena.

As citações foram retiradas do livro de Santo Agostinho, Confissões, Livraria Apostolado da Imprensa, Porto, 1984, 11ª edição, pp. 303, 304 e 309.

6 comentários:

João disse...

O tempo e o uso do tempo...

Acho que me bateste por umas miseras horas. Andava à meses para escrever o post sobre o tempo.

Mas escrevendo sobre o mesmo assunto, falámos de coisas tão diferentes. O tempo, essa coisa em que a nossa consciencia evolui, é um mistério. Mas se não o levarmos a sério, a vida é uma desorganisação.

Bom começo de aulas. Para todos, eu já tenho saudades.

Sara Raposo disse...

João:

O que escrevi - assumindo que se trata de um problema complexo acerca do qual sei muito pouco - não incide sobre os conteúdos de carácter científico que apresentaste no teu blog, num post interessante e cuja leitura aconselho(ver em http://cronicadaciencia.blogspot.com/2009/09/sobre-o-tempo.html).

Pretendi apenas chamar a atenção para o facto banal, por nós esquecido muitas vezes, dos momentos da nossa vida serem irrepetíveis e, por isso, fazer sentido pensarmos no modo como os vamos utilizar (estava a pensar, sobretudo, nalguns alunos).

Estudar textos de filósofos e reflectir sobre o problema do tempo é intelectualmente estimulante. Todavia, reconheço que como professora do secundário, não tenho disponibilidade para o fazer de uma forma séria.

Em termos da nossa vida prática, como referi, a boa gestão do tempo permite-nos ganhar tempo para realizar as actividades que julgamos mais importantes.

Por fim, concordo contigo: o melhor da escola são as aulas e os alunos...

João disse...

Sara:

A questão é que me parece que o tempo tem de ser abordado de acordo com aquilo que ele representa para nós. Pareceu-me que era isso que dizias no teu post. Independentemente de todas as problematicas intrincadas da fisica. No dia a dia, o que conta é a precepção que temos dele. E como o podemos gerir.

Achei que o teu post fazia um complemento ao meu que era mais fisica.

O Tempo parece ser daquelas poucas coisas cuja compreensão fisica não tras vantagens. Até porque não se sabe assim tanto.

Acho que a abordagem do tema, o Tempo tem de ser feita pela perspetica humana tambem, até porque pode ser que lhe esteja intrinsecamente associada. Como tu até referes no teu post.

Muito interessante.

Sara Raposo disse...

João:

Agradeço as palavras amáveis.
Não sei avaliar se a compreensão do tempo, do ponto de vista da física, é vantajosa ou não no quotidiano. Não tenho conhecimentos científicos suficientes para o fazer.

O problema do tempo já foi abordado por vários filósofos (Aristóteles, Leibniz, Kant, entre outros). A concepção a que me referi, de Santo Agostinho, é uma entre outras. A sua argumentação pretende explicar o modo como vivenciamos o tempo, mas é, naturalmente, passível de objecções, por exemplo: como se explica o início do tempo? Faz sentido falar de algo que exista intemporalmente?

Cumprimentos.

Anónimo disse...

Carpe Diem!

João Luís

João disse...

"como se explica o início do tempo? Faz sentido falar de algo que exista intemporalmente?"

O inicio do tempo é uma pergunta sem resposta. E não, não faz sentido falar de algo que exista intemporalmente. Se intemporalmente quer dizer fora do tempo.

Mas nós ja vivemos no tempo. No espaço tempo para ser correcto. O que é o tempo pode ter muitas questões por responder, mas provavelmente a questão de como devemos lidar com ele é independente. Uma vez que temos uma longa experiencia do que existir no tempo significa. Não havendo sinais que essa passagem do tempo seja manipulavel à nossa escala, resta-nos gerir o que nos cabe da melhor forma.

E a prova que a nossa consciencia se move no tempo é dizer que "eu penso logo existo" - são duas afirmações. Só o tempo permite articular as duas. Uma pertence ao passado da outra. Até em termos lógicos. Porque a frase é diferente de "pensar é existir".