Fotografia de Gérard Castello-Lopes.
Associo, inevitavelmente, o início do ano lectivo às seguintes ideias: “gestão do tempo”, “falta de tempo” (para realizar actividades que considero fundamentais: preparar aulas e ler livros) e “perda de tempo” (com tarefas burocráticas inúteis, por sinal inúmeras, que fazem parte do quotidiano de um professor).
Todos os anos, reflectindo sobre a experiência dos anos lectivos anteriores, prometo a mim mesma: é desta vez que uma maior capacidade de organização me permitirá ganhar tempo para o que é importante. Esta expectativa em relação ao futuro, embora contrariada pela memória dos factos passados, renasce em cada ano lectivo.
Na execução dos preparativos - planificações, cronogramas e grelhas - para alcançar a tão desejada eficácia na gestão temporal, ocorreu-me a passagem das Confissões (livro XI), onde o filósofo cristão Santo Agostinho (354-430) diz o seguinte:
“Que é, pois, o tempo? Quem poderá explicá-lo clara e brevemente? Quem o poderá apreender, mesmo só com o pensamento, para depois nos traduzir por palavras o seu conceito? E que assunto mais familiar e mais batido nas nossas conversas do que o tempo? Quando dele falamos, compreendemos o que dizemos. Compreendemos também o que nos dizem quando dele nos falam. O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém mo perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei.”
A evidência deste conceito, aparentemente familiar, esvai-se quando temos de o explicar.
Quando pensamos na passagem do tempo, percepcionamo-lo como um fluxo, em que se distingue o passado, o presente e o futuro. Porém, Santo Agostinho considera que “É impróprio afirmar: os tempos são três, pretérito, presente e futuro. Mas talvez fosse próprio dizer: presente das coisas passadas, presente das presentes e presente das futuras. Existem, pois estes três tempos na minha mente que não vejo em outra parte: lembrança presente das coisas passadas, visão presente das coisas presentes e esperança presente das coisas futuras.”
Deste modo, o passado depende das imagens mentais – seleccionadas e guardadas na memória - que o sujeito consegue evocar no presente e o futuro consiste em antecipar, no presente, imagens das coisas que ainda não existem. Daí que, Santo Agostinho afirme “o passado já não existe e o futuro ainda não veio”. Portanto, existe apenas o presente.
Todavia, à medida que cada momento (único e irrepetível) do presente flui, torna-se passado e pode apenas ser lembrado. Por exemplo: quando eu acabo de dizer a palavra “Filosofia”, o momento em que comecei a dizê-la já pertence ao passado.
A reflexão sobre o modo como apreendemos o tempo e a natureza deste – que constitui, desde os antigos gregos, um problema filosófico importante e complexo - poderá ter algumas consequências práticas na forma como gastamos o nosso tempo no dia-a-dia?
Vai iniciar-se mais um ano lectivo, durante o qual tanto alunos como professores vão investir muito do seu tempo na árdua tarefa de aprender e ensinar. Ter consciência que cada um dos instantes presentes da nossa vida é irrecuperável pode, talvez, ajudar-nos a vivê-los de modo que valha a pena.
As citações foram retiradas do livro de Santo Agostinho, Confissões, Livraria Apostolado da Imprensa, Porto, 1984, 11ª edição, pp. 303, 304 e 309.
6 comentários:
O tempo e o uso do tempo...
Acho que me bateste por umas miseras horas. Andava à meses para escrever o post sobre o tempo.
Mas escrevendo sobre o mesmo assunto, falámos de coisas tão diferentes. O tempo, essa coisa em que a nossa consciencia evolui, é um mistério. Mas se não o levarmos a sério, a vida é uma desorganisação.
Bom começo de aulas. Para todos, eu já tenho saudades.
João:
O que escrevi - assumindo que se trata de um problema complexo acerca do qual sei muito pouco - não incide sobre os conteúdos de carácter científico que apresentaste no teu blog, num post interessante e cuja leitura aconselho(ver em http://cronicadaciencia.blogspot.com/2009/09/sobre-o-tempo.html).
Pretendi apenas chamar a atenção para o facto banal, por nós esquecido muitas vezes, dos momentos da nossa vida serem irrepetíveis e, por isso, fazer sentido pensarmos no modo como os vamos utilizar (estava a pensar, sobretudo, nalguns alunos).
Estudar textos de filósofos e reflectir sobre o problema do tempo é intelectualmente estimulante. Todavia, reconheço que como professora do secundário, não tenho disponibilidade para o fazer de uma forma séria.
Em termos da nossa vida prática, como referi, a boa gestão do tempo permite-nos ganhar tempo para realizar as actividades que julgamos mais importantes.
Por fim, concordo contigo: o melhor da escola são as aulas e os alunos...
Sara:
A questão é que me parece que o tempo tem de ser abordado de acordo com aquilo que ele representa para nós. Pareceu-me que era isso que dizias no teu post. Independentemente de todas as problematicas intrincadas da fisica. No dia a dia, o que conta é a precepção que temos dele. E como o podemos gerir.
Achei que o teu post fazia um complemento ao meu que era mais fisica.
O Tempo parece ser daquelas poucas coisas cuja compreensão fisica não tras vantagens. Até porque não se sabe assim tanto.
Acho que a abordagem do tema, o Tempo tem de ser feita pela perspetica humana tambem, até porque pode ser que lhe esteja intrinsecamente associada. Como tu até referes no teu post.
Muito interessante.
João:
Agradeço as palavras amáveis.
Não sei avaliar se a compreensão do tempo, do ponto de vista da física, é vantajosa ou não no quotidiano. Não tenho conhecimentos científicos suficientes para o fazer.
O problema do tempo já foi abordado por vários filósofos (Aristóteles, Leibniz, Kant, entre outros). A concepção a que me referi, de Santo Agostinho, é uma entre outras. A sua argumentação pretende explicar o modo como vivenciamos o tempo, mas é, naturalmente, passível de objecções, por exemplo: como se explica o início do tempo? Faz sentido falar de algo que exista intemporalmente?
Cumprimentos.
Carpe Diem!
João Luís
"como se explica o início do tempo? Faz sentido falar de algo que exista intemporalmente?"
O inicio do tempo é uma pergunta sem resposta. E não, não faz sentido falar de algo que exista intemporalmente. Se intemporalmente quer dizer fora do tempo.
Mas nós ja vivemos no tempo. No espaço tempo para ser correcto. O que é o tempo pode ter muitas questões por responder, mas provavelmente a questão de como devemos lidar com ele é independente. Uma vez que temos uma longa experiencia do que existir no tempo significa. Não havendo sinais que essa passagem do tempo seja manipulavel à nossa escala, resta-nos gerir o que nos cabe da melhor forma.
E a prova que a nossa consciencia se move no tempo é dizer que "eu penso logo existo" - são duas afirmações. Só o tempo permite articular as duas. Uma pertence ao passado da outra. Até em termos lógicos. Porque a frase é diferente de "pensar é existir".
Enviar um comentário