terça-feira, 11 de novembro de 2008

Se é professor, é melhor evitar desgostos de amor

Sugiro aos leitores interessados no problema da avaliação dos professores que leiam os comentários ao post aqui publicado na passada quinta-feira (“Como deveriam os professores ser avaliados?”). Encontrarão uma interessante troca de argumentos, nomeadamente entre Porfírio Silva e Aires Almeida. Este último, que é professor de Filosofia no ensino secundário, descreve com muita clareza alguns dos aspectos absurdos do modelo de avaliação que o governo está a tentar impor.
Parte desses aspectos absurdos prende-se com a sobrecarga de trabalho a que actualmente muitos professores estão sujeitos – esse modelo de avaliação agravou a sobrecarga que já existia e ainda a agravará mais se for completamente implementado.
Quem não é professor ou não conhece professores, provavelmente desconhece que a maior parte desse trabalho é meramente burocrático e contribui pouco ou mesmo nada para a qualidade do ensino. A quantidade de reuniões acerca de assuntos vácuos (Projecto Curricular de Turma, Projecto Educativo da Escola, Plano de Actividades, etc.) e de papelada inútil ou pouco relevante que é preciso preencher é sufocante. Eis alguns exemplos que comprovam que este é, de facto, o “país dos papelinhos”: avisos a torto e a direito informando os pais acerca das faltas dos alunos, actas das inúmeras reuniões, grelhas relativas aos assuntos vácuos que referi e a outros que não referi, impressos relativos às medidas correctivas e às provas de recuperação dos alunos faltosos, justificações e relatórios a propósito de tudo e mais alguma coisa (insucesso dos alunos, abandono escolar, eventuais problemas disciplinares, visitas de estudo), etc. No etc. não estou a incluir as grelhas (várias vezes analisadas, discutidas e depois alteradas por instâncias “superiores”) implicadas no famigerado modelo de avaliação.
Além do nível crescente de reuniões e de papelada, as condições de trabalho dos professores do ensino secundário também se degradaram devido ao facto de, no passado ano lectivo, o seu horário ter sido aumentado em 2 tempos lectivos. Quem tinha um horário com 20 tempos lectivos passou a ter 22. Tal acréscimo significa normalmente mais 1 turma (ou então 1 Direcção de Turma) e portanto mais alunos, mais aulas para preparar e dar, mais testes para corrigir… E, naturalmente, mais reuniões e mais papelada. Só alguns exemplos. Tenho uma colega que dá aulas de Filosofia ao 10º e ao 11º e aulas de Área de Integração no Ensino Profissional. Tem 6 turmas, 1 Direcção de Turma e cerca de 150 alunos. A Sara, co-autora deste blogue, tem 5 turmas, do 10º e 11º anos de Filosofia, 1 Direcção de Turma e cerca de 130 alunos. Eu sou um privilegiado: tenho “apenas” 114 alunos.
Alguns professores (nomeadamente os titulares) têm apenas 1 ou 2 turmas. Outros professores, mesmo não sendo titulares, têm menos turmas e menos alunos, pois leccionam disciplinas com maior carga horária semanal ou com cada turma dividida em dois turnos. Nos parâmetros de avaliação que constam do actual modelo não há referência a essa diferença de condições de trabalho. Será isso justo? Fará isso algum sentido? Não me parece.
Os professores que, já há anos atrás, investiam na sua formação científica (o que é diferente de frequentar acções de formação ridículas e inúteis faladas em “eduquês”) e que liam livros (é preciso reconhecer que nem todos o faziam, apesar de terem tempo para o fazer), actualmente dificilmente conseguem arranjar tempo para mais do que consultar livros. Chamo a atenção do leitor para a diferença: ler livros e consultar livros não é, obviamente, a mesma coisa - pelo menos para quem gosta de ler e aprender.
Todos os dias ouço professores com características pessoais e profissionais bastante diferentes queixarem-se que não têm tempo de preparar as aulas como gostariam ou que não conseguiram dedicar à correcção dos testes o tempo que achavam necessário. E ouço esses professores dizerem que, mesmo assim, tiveram de sacrificar tempo do seu repouso ou da vida familiar.
Essa é uma das queixas mais frequentes dos professores: para irem fazendo tudo o que lhes exigem têm de sacrificar a atenção que dão à família. Mas, como é que podemos ser bons professores, se receamos – por culpa da profissão - não estar a ser bons pais ou boas mães?
Não é de estranhar por isso que, de vez em quando, se ouça um colega mais novo dizer: “Queria ter um filho, mas agora é complicado… É melhor esperar mais uns anos a ver se isto melhora.” Infelizmente, essa esperança talvez seja vã, pois nos últimos anos as coisas só têm piorado. E, face à teimosia da ministra e do governo, não há indícios que as coisas possam melhorar nos próximos tempos.
A explicitação deste último parágrafo podia levar-nos longe. Deixo apenas uma sugestão: esta maneira de tratar os professores é contraditória com o facto de se reconhecer, como o governo reconhece, que é preciso estimular a natalidade.
Li não sei em que romance esta afirmação curiosa: poucas coisas na vida são mais absorventes e mais inimigas da concentração (nomeadamente no trabalho) do que um desgosto de amor. Se as condições de trabalho dos professores são tão más que alguns deles pensam duas vezes antes de casar ou ter filhos, talvez seja caso para dizer (meio a brincar meio a sério) que devem pensar três vezes antes de terem um desgosto de amor. A acreditar no tal escritor, um professor que se veja a braços com algo tão absorvente como um desgosto de amor, arrisca-se - com tudo aquilo que tem para fazer diariamente - a que a sua vida deixe de ser difícil como sempre foi e passe a ser um inferno.
Ou ter-se-á a vida de muitos professores tornado um inferno mesmo sem nenhum desgosto de amor?

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