domingo, 2 de novembro de 2008

O que importa em Filosofia é o debate das ideias

Bertrand Russell (1872-1970)

Num texto muito conhecido sobre o valor da Filosofia, o filósofo Bertrand Russell diz o seguinte:

“Tendo agora chegado ao fim da nossa análise breve e muito incompleta dos problemas da filosofia, será vantajoso que, para concluir, consideraremos qual é o valor da filosofia e porque deve ser estudada. É da maior necessidade que examinemos esta questão, tendo em conta que muitas pessoas, sob a influência da ciência ou de afazeres práticos, se inclinam a duvidar de que a filosofia seja algo melhor do que frivolidades inocentes mas inúteis, distinções demasiado subtis e controvérsias sobre matérias acerca das quais o conhecimento é impossível (…).

Mas mais, se não queremos que a nossa tentativa para determinar o valor da filosofia fracasse, temos de libertar primeiro as nossas mentes dos preconceitos daqueles a que se chama erradamente homens "práticos". O homem "prático", como se usa frequentemente a palavra, é aquele que reconhece apenas necessidades materiais, que entende que os homens devem ter alimento para o corpo, mas esquece-se da necessidade de fornecer alimento à mente. Mesmo que todos os homens vivessem desafogadamente e que a pobreza e a doença tivessem sido reduzidas ao ponto mais baixo possível, ainda seria necessário fazer muito para produzir uma sociedade válida; e mesmo neste mundo os bens da mente são pelo menos tão importantes como os do corpo. É exclusivamente entre os bens da mente que encontraremos o valor da filosofia; e somente aqueles que não são indiferentes a estes bens podem ser convencidos de que o estudo da filosofia não é uma perda de tempo (…).

Na verdade, o valor da filosofia tem de ser procurado sobretudo na sua própria incerteza. O homem que não tem a mais pequena capacidade filosófica, vive preso aos preconceitos derivados do senso comum, das crenças habituais da sua época ou da sua nação, e das convicções que se formaram na sua mente sem a cooperação ou o consentimento reflectido da sua razão. Para um tal homem o mundo tende a tornar-se definido, finito, óbvio; os objectos vulgares não levantam quaisquer questões e as possibilidades invulgares são desdenhosamente rejeitadas. Assim que começamos a filosofar, pelo contrário, verificamos que mesmo os objectos mais comuns levam a problemas a que apenas podemos dar respostas muito incompletas. Embora a filosofia seja incapaz de nos dizer com certeza qual é a resposta verdadeira às dúvidas que levanta, é capaz de sugerir muitas possibilidades que alargam os nossos pensamentos e os libertam da tirania do costume. Assim, embora diminua o nosso sentimento de certeza quanto ao que as coisas são, a filosofia aumenta muito o nosso conhecimento do que podem ser; elimina o dogmatismo um tanto arrogante daqueles que nunca viajaram na região da dúvida libertadora e, ao mostrar as coisas que são familiares com um aspecto invulgar, mantém viva a nossa capacidade de admiração.”
Bertrand Russell, Os Problemas da Filosofia, Oxford University Press, Oxford, 2001, pp. 89-94 (Trad. de Álvaro Nunes)

A atitude adoptada por aqueles que reflectem sobre os problemas filosóficos designa-se, habitualmente, como “crítica”. Podemos caracterizá-la, tal com faz Russell, por oposição àquela que é adoptada pelo “homem prático” – o que se recusa a analisar o fundamento racional das suas ideias e a pensar e agir por si próprio.

Este ponto de vista, característico dos que preferem não “fazer uso do seu próprio entendimento” (nas célebres palavras de Kant), pode ser descrito, metaforicamente ou não, de diferentes formas: por exemplo num post deste blogue ("Os filósofos não andam com a cabeça nas nuvens" - http://duvida-metodica.blogspot.com/search/label/Atitude%20cr%C3%ADtica), Platão e Heidegger apresentam, por outras palavras e de modo metafórico, algumas ideias bastante semelhantes a essas ideias de Russell. O que é curioso, pois trata-se de filósofos que, além de terem pontos de vista bastantes distintos, têm estilos de escrita completamente diferentes. Tal facto significa que em Filosofia as mesmas ideias podem ser apresentadas por palavras diferentes. O que importa discutir é a sua verdade e e sua justificação e não aspectos acessórios, como o carácter do filósofo que as emitiu ou as suas posições políticas. Caso nos concentremos nesses aspectos acessórios, não estaremos a fazer aquilo que verdadeiramente importa em Filosofia: o debate racional das ideias.

Citando ainda o texto, já mencionado, do filósofo Bertrand Russell:

“(…) o intelecto livre dará mais valor ao conhecimento abstracto e universal, no qual os acidentes da história privada não entram, do que ao conhecimento originado pelos sentidos e dependente, como este conhecimento tem de ser, de um ponto de vista exclusivo e pessoal e de um corpo cujos órgãos dos sentidos deformam tanto quanto revelam. A mente que se habituou à liberdade e à imparcialidade da contemplação filosófica conservará alguma desta mesma liberdade e imparcialidade no mundo da acção e da emoção.”

Imagina que pedimos a uma pessoa para ler um pequeno texto (que ela não conhecia) de um certo filósofo. Imagina também que ela já tinha tentado ler outros textos desse mesmo filósofo, mas tinha concluído – supõe que acertadamente – que estes eram pouco claros e desnecessariamente difíceis. Se essa mesma pessoa mal prestasse atenção a esse texto e se apressasse a dizer que também ele (por ser desse filósofo) era pouco claro - revelaria uma atitude crítica? Estaria a pôr em prática a “imparcialidade” que Russell diz ser condição do filosofar?

Imagina que em vez de argumentarmos a favor ou contra uma ideia de um determinado filósofo, nos limitamos a tecer considerações acerca de episódios criticáveis da sua vida (como por exemplo: ter defendido o nazismo, ter sido desleal com colegas e amigos, etc) ou a recordar experiências negativas que tivemos na faculdade quando estudámos este filósofo. Se fizéssemos isso, estaríamos a adoptar uma atitude crítica?

Nota: O texto de Bertrand Russell acerca do valor da Filosofia pode ser lido no site Filosofia e Educação: http://www.filedu.com/brussellvalor da filosofia.html

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