Algumas pessoas pensam que nunca se deve criticar os valores e os costumes dos outros povos, pois os valores e os costumes são relativos: cada sociedade tem um certo conjunto de valores e costumes e os de uma sociedade não são melhores nem piores do que os de outra sociedade, são apenas diferentes. O critério do certo e do errado reside nas tradições populares e na aceitação social de que gozam. Como disse a antropóloga Ruth Benedict, “a moralidade varia em todas as sociedades, e é apenas um termo cómodo para os hábitos que uma sociedade aprova”1. Essa maneira de pensar costuma ser designada relativismo cultural, ou apenas relativismo.
É frequente encontrar pessoas a defendê-la (talvez por pensarem – erradamente – que ser relativista é a única maneira de não ser intolerante), mas muitas sem consciência das suas implicações. Se o relativismo cultural fosse verdadeiro, censurar costumes como o casamento de crianças ou a excisão seria uma atitude arrogante e intolerante; invocar os direitos humanos para justificar essas críticas não seria também legítimo, pois para essa doutrina os direitos humanos não exprimem valores universais, mas apenas ocidentais.
Felizmente, o relativismo cultural presta-se a várias objeções mais plausíveis que ele. Eis uma dessas objecções. Se uma certa sociedade não é homogénea e as pessoas têm estatutos, interesses e opiniões diferentes, quem deve falar em nome da sua cultura?2 Por exemplo: quem deve falar em nome dos ciganos – apenas os mais velhos, que impedem as raparigas adolescentes de irem à escola e impõem o seu casamento precoce, ou também essas raparigas? E numa sociedade esclavagista, como era a Roma imperial ou os Estados do Sul nos EUA antes da Guerra Civil, quem deve falar em nome da sua cultura – os donos dos escravos ou também os escravos?
Parece assim que o relativismo não exclui apenas as críticas dos estrangeiros mas também as críticas dos membros da sociedade em causa. A aceitação do relativismo leva, portanto, à suspensão do pensamento crítico e ao conformismo social.
Um relativista coerente não poderá, por exemplo, apoiar o cidadão saudita Raif Badawi (condenado a 10 anos de prisão e a mil chicotadas, 50 a cada sexta-feira durante 20 semanas, por supostamente “insultar o Islão” com os seus escritos num blogue) nem a jovem paquistanesa Malala Yousafzay (um dos vencedores do Nobel da Paz 2014), baleada na cabeça pelos talibãs como retaliação pela sua campanha em defesa do direito à educação das raparigas. Com efeito, as ideias e acções de Raif Badawi e de Malala Yousafzay são desviantes relativamente às tradições largamente maioritárias dos seus povos.
Como é implausível não poder defender Raif Badawi e Malala Yousafzay, resta rejeitar o relativismo cultural. Raif Badawi e Malala Yousafzay também podem falar em nome da sua cultura, mesmo que seja para rejeitar alguns dos seus costumes e valores. Mas se eles podem pensar criticamente acerca desses costumes e valores porque não poderão fazer o mesmo as pessoas de outras sociedades? 3
1 Citada por: James Rachels, Elementos de Filosofia Moral, tradução de F. J. Azevedo Gonçalves, Lisboa, 2004, Colecção Filosofia Aberta, Edições Gradiva, pág.33.
2 James Rachels, Problemas da Filosofia, tradução de Pedro Galvão, Lisboa, 2009, Colecção Filosofia Aberta, Edições Gradiva, pp. 240-241.
1 comentário:
Haverá elementos relativos em relação aos quais não há muito a discutir: vestuário, alimentação, tradições várias, etc., etc.
Agora há valores que devem ser discutidos enquanto valores humanos e não tribais.
Quando dizemos que as mulheres devem ser consideradas juridicamente iguais aos homens, estamos a fazer uma proposta para a humanidade. Não podemos obrigar a humanidade a concordar connosco, mas podemos propor enquanto valor humano.
Dizer o contrário é dizer que há humanos de primeira e de segunda: alguns que merecem certos direitos e outros que nem por isso porque têm a cultura errada.
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