sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Anões aos ombros de gigantes

«Somos como anões aos ombros de gigantes, pois podemos ver mais coisas do que eles e mais distantes, não devido à acuidade da nossa vista ou à altura do nosso corpo, mas porque somos mantidos e elevados pela estatura de gigantes.»

Bernardo de Chartres, referido por João de Salisbúria, Metalogicon, III, 4.

O físico e divulgador científico Carlos Fiolhais  (num post onde também apresenta o original latino e outra tradução) interpreta a  metáfora de Bernardo de Chartres do seguinte modo:

“A afirmação [de Bernardo de Chartres] tem um enorme poder metafórico. Lida no contexto geral da história das ciências, significa que Newton não podia ter visto o que viu sem que antes Galileu, Kepler, Descartes e outros não o tivessem precedido (…). A construção da ciência é uma pirâmide humana. Einstein subiu para os ombros de Newton e há lugar aos ombros de Einstein para mais alguém subir. Não é fácil subir tão alto, claro.”

Carlos Fiolhais  refere apenas a ciência, não menciona a filosofia. Contudo, julgo que a metáfora também se aplica à filosofia, pois nesta - embora não exista um progresso cumulativo tão óbvio como nas ciências –  também existe algum progresso. Embora os filósofos de cada época discutam as ideias dos filósofos anteriores e discordem frequentemente delas, nem por isso deixam de ter essas ideias em conta e de se apoiar nelas para tentar formular com mais clareza os problemas filosóficos e para descobrir soluções mais plausíveis para eles. A construção da filosofia faz lembrar mais depressa uma cidade grande e dispersa do que a pirâmide única referida por Carlos Fiolhais, mas mesmo assim hoje conseguimos ver mais “longe” do que, por exemplo, Platão e Descartes. Graças a eles.

5 comentários:

Desidério Murcho disse...

Na verdade, somos todos anões aos ombros de outros anões. Acontece apenas que quando muitos anões contribuem modestamente para o nosso progresso cognitivo, parecem gigantes porque são muitos. A metáfora dos gigantes é perniciosa porque dá a ideia de que alguns de nós têm um acesso privilegiado à verdade por serem génios, o que é falso. O que acontece é alguns de nós terem mais talento do que outros, mas usam esse talento num contexto sortudo em que esse talento pode ser desenvolvimento e trabalham arduamente para fazer algo de valor, em vez de ficarem a ver televisão e a comer tremoços o dia todo.

Carlos Pires disse...

Desidério:

A tua metáfora de que “somos todos anões” não me parece feliz, pois não capta bem uma ideia importante: o contributo que damos para o progresso cognitivo é muito diferente, já que o contributo de alguns é muito mais valioso que o contributo de outros.

A metáfora dos gigantes é perniciosa se for interpretada como dizes ou ainda se se interpretar o “subir para os ombros” como o respeitinho acrítico pelas autoridades e pelos nomes sonantes e não como a discussão livre das ideias dos “gigantes”. Mas essas interpretações não são plausíveis, julgo eu.

Quando se fala dos gigantes tem-se em vista a ideia de o contributo de alguns ser especialmente valioso (e isso não é pernicioso). Mas daí não se segue que tenha sido obtido sem trabalho árduo – como é que uma coisa leva à outra? Por outro lado, não se segue também que seja infalível, pois da metáfora também faz parte que outros conseguem ver mais longe que os ditos gigantes (isto é, corrigi-los).

Abraço.

Desidério Murcho disse...

OK, Carlos, mas a metáfora dos gigantes desvaloriza indevidamente o contributo dos muitos anões. Sim, Newton fez algo incrível; mas o que as histórias habituais deixam de fora, Carlos, é que ele teve de estudar e estudou por modestos livros introdutórios escritos por pessoas como tu e eu. Se não fosse assim, como seria? Punhas Newton analfabeto, aos 6 anos, a ler Aristóteles directamente em grego?

Unknown disse...

Prezados Desidério Murcho e Carlos Pires, bom dia. Para resolver a contento a questão, pensem nos gigantes como a "grande tradição cultural/científica" a que somos todos devedores. Concordo com você, Carlos, pois certos homens trazem sim, contribuições bem maiores do que outros, e nisso não há nenhum demérito, não sendo o caso de querer diminuí-los. A metáfora diz respeito à humildade acadêmica que todos aqueles que buscam o saber devem ter. Só podemos pesquisar porque podemos nos apoiar nos ombros desses gigantes. Ninguém escapa desse paradigma.

Henrique Sebastião disse...

O ponto de partida de Desidério Murcho parece ser a fortíssima influência da ideologia marxista nos nossos tempos, corrente esta verdadeiramente obcecada com a premissa da igualdade entre todos os homens e mulheres, de modo que dizer que um é maior do que outro em qualquer quesito já lhe soa indevido ou mesmo ofensivo. A realidade objetiva, porém, é implacável em demonstrar que sim, existem "gigantes" e existem "anões" em muitas áreas das atividades humanas, tanto no sentido do esforço quanto no sentido da capacidade inata de cada indivíduo. Isto não é desmerecer o esforço dos "anões" sérios e comprometidos, mas reconhecer a simples realidade objetiva dos fatos: por mais que isso nos desagrade, alguns de nós são, sim, mais capacitados que outros.