terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

A origem da censura

Os actos de censura motivados por acusações de obscenidade ou de pornografia fazem-me sempre lembrar uma história que li ou ouvi já não sei onde.

Ontem, a apreensão de alguns livros por terem na capa uma reprodução do quadro “A origem do mundo”, de Courbet, trouxe-me a história à memória. Infelizmente, hoje recordei-a também, pois li esta coisa hilariante: o Comando da PSP de Braga justificou a apreensão dos livros com o “perigo de alteração da ordem pública” que a exposição pública da obra supostamente estava a provocar.

A interpretação da história fica a cargo do caro leitor, pois, embora a Filosofia tenha muito a dizer acerca da liberdade de expressão, os motivos que levam alguém a armar-se em censor enquadram-se sobretudo na Psicologia e na Sociologia.

Eis a história.

Um dia uma senhora telefonou à Polícia queixando-se que, exactamente em frente à sua casa, um homem se banhava nu no rio. Depois de um polícia falar com ele o homem foi embora.

Pouco depois a senhora voltou a telefonar queixando-se que o homem continuava a banhar-se nu no rio, tendo-se limitado a afastar-se um pouco. Mais uma vez foi um polícia falar com o homem e ele foi embora.

Mas, ao fim de alguns minutos, senhora telefonou outra vez à Polícia e com a mesma queixa. O homem tinha-se afastado um bom bocado, mas continuava a banhar-se nu no rio.

O polícia, um pouco impaciente, disse-lhe:

- Minha senhora, é verdade que o homem continua a banhar-se no rio. Contudo, da sua casa já não é possível vê-lo, por isso...

A senhora interrompeu o polícia:

- Está enganado. Com uns binóculos ainda consigo vê-lo!

Que máscara devemos escolher? Ou será melhor não usar nenhuma?

James Ensor, A Intriga (1890).

Ocultar e dissimular são, entre outros, verbos imediatamente relacionáveis com o Carnaval.
O quadro de Ensor parece-me retratar bem, infelizmente, um certo ambiente que vivemos na vida política portuguesa, nomeadamente na relação entre os professores e o Ministério da Educação e até mesmo, nalguns casos, dos professores entre si.
Na ausência de regras claras, coerentes e justas fica o recurso ao disfarce, em que os actores em palco recorrem ao discurso oportunista que esconde interesses meramente privados e nada tem a ver com o que é justo ou verdadeiro.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Polícia apreende livros por considerar a capa pornográfica... Na Coreia do Norte? Não, em Portugal!

"A PSP de Braga apreendeu hoje numa feira de livros de saldo alguns exemplares de um livro sobre pintura. A polícia considerou que o quadro do pintor Gustave Courbet, reproduzido nas capas dos exemplares, era pornográfico, adiantou uma fonte da empresa livreira. (...)
O quadro do pintor oitocentista - tido como fundador do realismo em pintura - expõe as coxas e o sexo de uma mulher, sendo, por isso, a sua obra mais conhecida. Pintado em 1866, está exposto no Museu D'Orsay em Paris."


Trata-se de uma notícia do jornal Público. Clique aqui para ler mais.

Para haver uma limitação legítima da liberdade de expressão é preciso que o uso desta colida claramente com outros direitos. Caso contrário é censura. Uma boa maneira de determinar se deve ou não haver essa limitação consiste em aplicar o princípio do dano, de Stuart Mill. Este diz que o Estado só deve interferir na vida das pessoas quando estas realizam acções susceptíveis de prejudicar outras pessoas. O prejuízo que possam eventualmente infligir a si mesmas não conta para o efeito.

Não se consegue ver qual possa ser o prejuízo para terceiros neste caso. Tratou-se por isso de um acto de censura. Ora, Portugal é um país democrático cuja constituição proíbe a censura e consagra a liberdade de expressão, no seu artigo 37.
Tendo em conta que, nos tempos mais recentes, ocorreram na sociedade portuguesa várias situações em que parecem ter existido tentativas de censura (veja-se por exemplo o caso patético do Carnaval de Torres Vedras, em que uma Procuradora tentou impedir uma sátira ao computador Magalhães, invocando também o pretexto da pornografia), talvez haja razões para nos preocuparmos com a saúde da nossa democracia.

Para terminar queria colocar uma questão aos leitores do Dúvida Metódica, principalmente (mas não só) se forem alunos, pais e encarregados de educação, professores ou até autores de blogues.
No artigo do Público vem reproduzido o quadro de Coubert (intitulado "A origem do mundo") e que, de resto, é fácil de encontrar na Internet. Teria sido fácil incluí-lo neste post, mas decidi não fazê-lo. A minha questão é esta:

Teria sido errado pôr esse quadro neste post?

Para responder a essa pergunta, além de pensar acerca do problema filosófico e jurídico da liberdade de expressão e dos seus limites, é preciso ter em conta dois factos:
As características deste blogue (que antes de mais nada é um instrumento de trabalho que os autores utilizam com os seus alunos, quase todos menores de idade) e a circunstância de "A origem do mundo" ser uma obra de arte.

sábado, 21 de fevereiro de 2009

Algumas imagens que nos levam a duvidar dos nossos olhos e o cepticismo radical

Descobri este vídeo no blogue Quarks e Gluões, de onde roubei também parte do título do post.

Consiste numa sucessão de imagens contendo ilusões perceptivas. Ilustra de modo claro, e até com algum humor, a velha tese de que os sentidos nos enganam.
O facto de haver enganos nalgumas coisas que ouvimos, vemos, cheiramos, etc., é óbvio e consensual. Menos óbvia e consensual é a consequência que os cépticos radicais tiram desse facto: se os sentidos por vezes nos enganam como podemos garantir que não nos enganam muitas vezes ou até mesmo sempre? Talvez a realidade seja, afinal, muito diferente daquilo que percebemos através dos nossos órgãos sensoriais.
Se os cépticos radicais tiverem razão, e tendo em conta que o conhecimento por contacto permitido pelos sentidos, é muitas vezes utilizado para justificar inúmeras crenças, isso significa que estas não constituem realmente conhecimentos. Significa que o conhecimento humano é uma ilusão e não existe de facto.
Que objecções se poderão levantar contra essa ideia de que os sentidos nos enganam sempre, ou quase sempre, e que por consequência a realidade até pode ser muito diferente daquilo que percepcionamos?

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Como é que Descartes pretendeu ultrapassar o ponto de vista dos cépticos

Como podemos garantir que o nosso conhecimento é absolutamente seguro e mostrar que o ponto de vista céptico, ao duvidar da própria possibilidade do conhecimento, é errado?

Como é que se pode vencer a dúvida e alcançar a certeza?

O objectivo de Descartes é a construção de um sistema seguro do conhecimento, ou seja, descobrir princípios sólidos (certos e evidentes), a partir dos quais se pudesse constituir toda a Filosofia, à semelhança do que acontece na Matemática.

Descartes começa por examinar todas as certezas que possui para verificar se estas resistem à dúvida, apresentando vários argumentos (os sentidos, os sonhos e o Deus Enganador) que lhe permitem duvidar progressivamente de um maior número de conhecimentos. A dúvida é um meio para encontrar um conhecimento indubitável (dúvida metódica).

«Penso, logo existo» (o sujeito pensante) corresponde ao primeiro princípio indubitável. Resulta da dúvida mais radical (o argumento do Deus Enganador ou Maligno). O sujeito (eu penso) é condição do próprio acto de duvidar - para duvidar eu tenho de pensar e para pensar tenho de existir. Esta verdade não pode ser posta em causa, é conhecida intuitivamente através da razão e a partir dela, Descartes irá deduzir todos os outros conhecimentos. Todavia, esta primeira verdade apenas assegura que o sujeito é o suporte de todas as representações (conhecimentos), não garante a verdade acerca dos conteúdos do pensamento suspensos pela dúvida.

Descartes procura provar Deus a partir da ideia de perfeição que o sujeito possui. Esta não teve origem no mundo exterior nem no próprio sujeito, foi originada por esse ser perfeito: este existe necessariamente, porque senão não teria uma das qualidades (a existência) que garante a perfeição (argumento ontológico).

A existência de Deus garante a verdade dos conhecimentos obtidos através da razão (das ideias claras e distintas). Deus é por definição bom e por isso não pode querer enganar o sujeito, garantindo a verdade das ideias que o sujeito concebe clara e distintamente e a correcção dos seus raciocínios. A partir daí, Descartes já pode deduzir outras verdades e construir com segurança o edifício do conhecimento. O perigo do cepticismo desapareceu.

Qual é a relação entre estas duas imagens?




















Que relação existirá entre o filósofo representado nesta pintura e a imagem que podem encontrar nos vossos livros de Matemática?