“As nossas crenças mais justificadas não têm qualquer outra garantia sobre a qual assentar, senão um convite permanente ao mundo inteiro para provar que carecem de fundamento.”
John Stuart Mill
Apanhar um tiro e sentir dor não prova que a res extensa (no caso refere-se ao corpo, mas significa as coisas físicas em geral) seja real. O “penso, logo existo” escapa ao génio maligno mas o “sinto, logo existo” não, pois…
O "sinto, logo existo" é tão bom quanto o "penso, logo existo". Acontece é que do primeiro não se conclui que existo enquanto res extensa. Mas do segundo também isso não se conclui.
Tal como não é possível pensar sem existir, ainda que seja possível pensar sem ser uma coisa extensa, também não é possível sentir sem existir, ainda que seja possível sentir sem ser uma coisa extensa.
'Sinto, logo existo' e 'Penso, logo existo' são inferências que do ponto de vista cartesiano igualmente justificadas, pois o ponto é que acerca dos conteudos da nossa consciência não há distinção entre aparência e realidade (se me parece que estou a ter uma dor, então estou a ter uma dor - se me parece que estou a pensar, então estou a pensar)- e o a certeza cartesiana de que pensa segue-se deste carácter transparente dos estados mentais ocorrentes. Por isso muita gente acha que por pensamento Descartes tinha em mente qualquer conteudo da consciência, incluindo sensações (hé quem discorde e reconstrua o cogito com base na ideia que duvidar que se duvida é auto-derrotante de alguma maneira como Hintikka: http://www.jstor.org/discover/10.2307/2183678?uid=3738880&uid=2&uid=4&sid=21101897496033).
Seja como for, tanto Bernard Williams nesta entrevista: http://www.jstor.org/discover/10.2307/2183678?uid=3738880&uid=2&uid=4&sid=21101897496033
como Christopher Peacocke neste artigo mais recente (2012):http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/j.1467-8349.2012.00210.x/abstract
concordam que o cogito de Descartes funciona tão bem com sensações como com pensamentos.
(Sobre o que o Desidério disse, acho que só corre se por extensão ele entender localizado no espaço físico - que penso que é o que ele estava a supor -, pois as sensações habitualmente são experienciadas como espacialmente localizáveis pelo que é uma questão em aberto se necessariamente existem num espaço fenoménico e, nesse sentido, quem as tem tem alguma relação com o espaço).
Pensar “2+2=4”, pensar “existe um génio maligno que…” ou pensar “sinto uma dor” vão de facto dar ao mesmo, pois trata-se sempre de pensar: “Sinto, logo existo” significa na realidade “Penso que sinto, logo existo”. E, de facto, dizer “Penso que sinto uma dor, logo existo” funciona tão bem como dizer apenas “Penso, logo existo”, tal como funcionaria algo como “Penso que tudo o que vejo e sinto talvez seja uma ilusão, logo existo”.
Claro que não é possível sentir e não existir. Mas o que existe realmente? Do ponto de vista de Descartes, pensar “sinto uma dor” não prova que o corpo onde a dor supostamente está localizada exista, mas sim que existe uma “coisa pensante”.
Quando escrevi, ao comentar o cartoon, que o “sinto, logo existo” não escapa ao génio maligno queria dizer isso: sentir não implica necessariamente a existência de um corpo (nem muito menos de outras coisas físicas capazes de provocar sensações nesse corpo). Uma vez que localizamos as sensações no corpo esperar-se-ia que o “sinto, logo existo” provasse não o mesmo que o “penso, logo existo”, mas sim a existência real do corpo.
Agora ficou claro o que tinhas em mente, Carlos. E, claro, tanto o "sinto" como o "penso" eliminam apenas a possibilidade de o sujeito desse sentir ou desse pensamento não existir. (Isto entendendo "sujeito" da maneira mais fraca possível, pois no contexto cartesiano não podemos confiar na memória e por isso o sujeito não tem continuidade temporal.)
Considerar a "coisa pensante" como um "eu" é realmente incoerente, dada a amplitude da dúvida permitida pelo génio maligno. Isso não esacapou a alguns alunos.
Isto mostra que estás a fazer um trabalho de excelência com os alunos! Quando eu era estudante, limitavamo-nos a repetir formalismos escolares sobre Descartes e a sua dúvida metódica.
Já agora, no contexto da dúvida cartesiana, também o cogito é irrelevante. Pois quer consideremos que "penso, logo existo" é realmente uma inferência (Discurso do Método) quer consideremos que é apenas uma frase ("Penso, existo", nas Meditações), tudo o que Descartes faz é apelar para a nossa intuição lógica de que é uma inferência válida ou uma verdade lógica. Mas se o génio maligno nos pode enganar na aritmética, também pode enganar-nos na lógica. Claro que para nós é inconcebível pensar sem existir, mas talvez isso seja uma ilusão.
"Mas se o génio maligno nos pode enganar na aritmética, também pode enganar-nos na lógica. Claro que para nós é inconcebível pensar sem existir, mas talvez isso seja uma ilusão."
Interessante você pensar assim, o Hume tem a mesma crítica (acho que na sessão doze do Tratado da Natureza). Meu trabalho de mestrado é uma tentativa de explicar porque para o Descartes isso não se dá, e qual seria a diferença para ele entre matemática e logica.
7 comentários:
O "sinto, logo existo" é tão bom quanto o "penso, logo existo". Acontece é que do primeiro não se conclui que existo enquanto res extensa. Mas do segundo também isso não se conclui.
Tal como não é possível pensar sem existir, ainda que seja possível pensar sem ser uma coisa extensa, também não é possível sentir sem existir, ainda que seja possível sentir sem ser uma coisa extensa.
'Sinto, logo existo' e 'Penso, logo existo' são inferências que do ponto de vista cartesiano igualmente justificadas, pois o ponto é que acerca dos conteudos da nossa consciência não há distinção entre aparência e realidade (se me parece que estou a ter uma dor, então estou a ter uma dor - se me parece que estou a pensar, então estou a pensar)- e o a certeza cartesiana de que pensa segue-se deste carácter transparente dos estados mentais ocorrentes. Por isso muita gente acha que por pensamento Descartes tinha em mente qualquer conteudo da consciência, incluindo sensações (hé quem discorde e reconstrua o cogito com base na ideia que duvidar que se duvida é auto-derrotante de alguma maneira como Hintikka: http://www.jstor.org/discover/10.2307/2183678?uid=3738880&uid=2&uid=4&sid=21101897496033).
Seja como for, tanto Bernard Williams nesta entrevista: http://www.jstor.org/discover/10.2307/2183678?uid=3738880&uid=2&uid=4&sid=21101897496033
como Christopher Peacocke neste artigo mais recente (2012):http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/j.1467-8349.2012.00210.x/abstract
concordam que o cogito de Descartes funciona tão bem com sensações como com pensamentos.
(Sobre o que o Desidério disse, acho que só corre se por extensão ele entender
localizado no espaço físico - que penso que é o que ele estava a supor -, pois as sensações habitualmente são experienciadas como espacialmente localizáveis pelo que é uma questão em aberto se necessariamente existem num espaço fenoménico e, nesse sentido, quem as tem tem alguma relação com o espaço).
Desidério e José:
Pensar “2+2=4”, pensar “existe um génio maligno que…” ou pensar “sinto uma dor” vão de facto dar ao mesmo, pois trata-se sempre de pensar: “Sinto, logo existo” significa na realidade “Penso que sinto, logo existo”. E, de facto, dizer “Penso que sinto uma dor, logo existo” funciona tão bem como dizer apenas “Penso, logo existo”, tal como funcionaria algo como “Penso que tudo o que vejo e sinto talvez seja uma ilusão, logo existo”.
Claro que não é possível sentir e não existir. Mas o que existe realmente? Do ponto de vista de Descartes, pensar “sinto uma dor” não prova que o corpo onde a dor supostamente está localizada exista, mas sim que existe uma “coisa pensante”.
Quando escrevi, ao comentar o cartoon, que o “sinto, logo existo” não escapa ao génio maligno queria dizer isso: sentir não implica necessariamente a existência de um corpo (nem muito menos de outras coisas físicas capazes de provocar sensações nesse corpo). Uma vez que localizamos as sensações no corpo esperar-se-ia que o “sinto, logo existo” provasse não o mesmo que o “penso, logo existo”, mas sim a existência real do corpo.
Agora ficou claro o que tinhas em mente, Carlos. E, claro, tanto o "sinto" como o "penso" eliminam apenas a possibilidade de o sujeito desse sentir ou desse pensamento não existir. (Isto entendendo "sujeito" da maneira mais fraca possível, pois no contexto cartesiano não podemos confiar na memória e por isso o sujeito não tem continuidade temporal.)
Considerar a "coisa pensante" como um "eu" é realmente incoerente, dada a amplitude da dúvida permitida pelo génio maligno. Isso não esacapou a alguns alunos.
Isto mostra que estás a fazer um trabalho de excelência com os alunos! Quando eu era estudante, limitavamo-nos a repetir formalismos escolares sobre Descartes e a sua dúvida metódica.
Já agora, no contexto da dúvida cartesiana, também o cogito é irrelevante. Pois quer consideremos que "penso, logo existo" é realmente uma inferência (Discurso do Método) quer consideremos que é apenas uma frase ("Penso, existo", nas Meditações), tudo o que Descartes faz é apelar para a nossa intuição lógica de que é uma inferência válida ou uma verdade lógica. Mas se o génio maligno nos pode enganar na aritmética, também pode enganar-nos na lógica. Claro que para nós é inconcebível pensar sem existir, mas talvez isso seja uma ilusão.
"Mas se o génio maligno nos pode enganar na aritmética, também pode enganar-nos na lógica. Claro que para nós é inconcebível pensar sem existir, mas talvez isso seja uma ilusão."
Interessante você pensar assim, o Hume tem a mesma crítica (acho que na sessão doze do Tratado da Natureza). Meu trabalho de mestrado é uma tentativa de explicar porque para o Descartes isso não se dá, e qual seria a diferença para ele entre matemática e logica.
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