domingo, 29 de abril de 2012

Os exames nacionais serão uma forma de totalitarismo?

examesDesidério Murcho defendeu em vários textos, no blogue De Rerum Natura, que cada professor deve ter uma liberdade completa para escolher o que ensina e que não devem, portanto, existir programas com conteúdos obrigatórios nem exames nacionais, pois a sua existência constitui a imposição injustificável de uma conceção educativa particular e infringe direitos tão básicos como a liberdade de pensamento.

A Sara discordou dele e escreveu diversos comentários críticos a que Desidério Murcho foi respondendo. É um debate importante e interessante. Julgo que Desidério Murcho não tem razão na questão de fundo: a existência de alguns conteúdos programáticos obrigatórios e de exames nacionais não é incompatível com a liberdade de ensino.

O que pensa o leitor?

Siga estes links e depois diga o que pensa.

Com exames assim não vamos longe

Testes intermédios de filosofia

A primeira objecção da Sara

A segunda objecção da Sara

Nestes textos Desidério Murcho defendeu também as ideias referidas, mas sem comentários da Sara.

Ensino e liberdade

Uma lição de Orwell

Convidar e obrigar: uma diferença importante

Em defesa do pluralismo educativo

22 comentários:

Desidério Murcho disse...

Obrigado pelo destaque, Carlos. Deixa-me só esclarecer uma coisa: o que defendo é compatível com a existência de exames nacionais. Apenas não é compatível com a existência 1) de exames nacionais obrigatórios e 2) exames nacionais iguais. Num sistema de pluralismo educativo podemos ter exames nacionais diferentes (um exame feito segundo os nossos ideais de rigor e exigência, por exemplo, e outro feito segundo concepções em que há conhecimento falso e o mais central da teoria da argumentação é o pathos de Aristóteles). E esses exames seriam facultativos: os professores que querem alinhar-se pelos exames alinham-se e preparam os alunos de acordo com, os outros não o fazem.

Carlos Pires disse...

Desidério:

Explica lá então como poderia isso funcionar na prática.
Conheces alguma experiência que possas descrever? (No Rerum Natura referiste brevemente o caso inglês, que não conheço bem; podias descrevê-lo?)
Algumas dúvidas, escritas à pressa:
Na mesma escola um professor poderia optar por um tipo de exame nacional e outro professor por outro exame? Quem faria esses exames? Universidades? Associações de professores? Ou...?
Se esses exames fossem feitos pela instituição X ou Y não estaríamos à mesma a impor concepções de ensino? A diferença é que em vez de se "impor" só uma concepção seriam 4 ou 5 e em vez da "imposição" ser nacional seria grupal... Ou não?
Coloquei 2 palavras entres aspas pois julgo que um exame derivado de um programa debatido publicamente por muitas pessoas da área disciplinar em causa não seria imposto, caso esse debate fosse efetivo (esses exames grupais seriam mais impostos que um nacional, tal como o programa e a atuação do governo de um país costuma ser mais discutido e escrutinado que o programa e a atuação de uma Câmara Municipal).

Desidério Murcho disse...

No Reino Unido o estado estabelece as condições a que uma associação de professores tem de obedecer para poder fazer exames nacionais. Numa mesma área pode haver mais de uma associação. Estas associações fazem então os exames e publicam os seus esclarecimentos e directrizes. Isto é compatível com a inexistência de um programa nacional, mas também é compatível com programas nacionais muito minimalistas (como é óbvio, eu prefiro a inexistência de programas nacionais).

É um abuso de linguagem afirmar que se impõe algo, quando as pessoas podem escolher isso ou outra coisa diferente. No modelo que defendo não há qualquer imposição deste ou daquele exame, precisamente porque há modelos diferentes de exame. O meu modelo é compatível com a opcionalidade dos exames nacionais, mas também com a sua obrigatoriedade. O estado poderia apenas obrigar os alunos a fazer exames, mas permitir a pluralidade de tipos de exame nacional.

Não há maior legitimidade democrática numa dada lei só porque esta foi objecto de debate nacional. Para ter legitimidade seria preciso que 1) ou o debate gerasse um consenso ou 2) fosse impossível a pluralidade. Ora, nos debates sobre a educação que grassam em Portugal desde há quase 40 anos -- praticamente desde o 25 de Abril de 1974 -- não se vislumbra qualquer consenso; e precisamente porque a pluralidade é possível, a decisão por maioria é ditatorial: é a ditadura da maioria. Seria como pretender que, uma vez que houve um amplo debate nacional e a maioria votou a favor de ir à igreja ao domingo, então agora estamos todos obrigados a ir à igreja ao domingo. Só aceitamos a legitimidade de uma lei quando ou há consenso alargado ou é impossível haver pluralidade e mesmo na ausência de consenso temos de obrigar quem não concorda a aceitar a lei.

Luís Mendes disse...

Parece-me que há matérias que são do domínio público, e portanto sobre as quais se pode legislar, com legitimidade, e impor, de facto, com força de autoridade, desde que a autoridade legislativa esteja ela mesma a coberto de legitimidade (democrática). Por exemplo, é proibido assassinar pessoas.
Depois há matérias que são privadas, sobre as quais não deve existir investidura de uma autoridade que sobre elas determine com força de lei, ainda que possa, de facto, educar num ou noutro sentido. Por exemplo, o Estado não deve proibir alguém de não ir à missa. Também não deve proibir ninguém de fumar em casa, embora possa educar num sentido que, de acordo com parâmetros claramente aceites como válidos (neste caso, de âmbito empírico ou científico), foi previamente identificado como preferível socialmente.

Assim, a questão parece-me ser perceber se a educação é do foro público ou privado. Se for do público, pode legitimamente legislar-se, e uma vez legislado, a norma tem força de lei impositiva, coerciva se necessário. Por isso quem assassina é castigado.

Aceitar a lei não é qualquer coisa de privado. O sujeito A pode ser um subjectivista axiológico e, por isso, julgar-se no direito de matar seres humanos, pois sente prazer nisso. O facto de existirem pessoas que pensam de facto assim torna impossível o consenso real e absoluto. Dizer que há um consenso porque a maioria aceita que é errado matar volta a deixar-nos na ditadura da maioria. Mas se não há consenso isto deve significar que os psicopatas devem ser autorizados a matar sem serem punidos?

Se a educação for considerada matéria pública deve poder-se legislar. Então resta saber como legislar.

Na minha opinião, a educação é demasiado importante para que cada um se possa botar a "opinar" sobre o assunto. Deve discutir-se, deve debater-se. Mas que daqui se retire que cada professor pode e deve começar a educar como muito bem entende é como dizer que os alunos são uma espécie de plantas e a sala de aula uma estufa (com o devido respeito, espero que esta comparação não configure qualquer tipo de falta de respeito para com ninguém, nem para os alunos, nem para os professores, nem para quem sustenta que os professores devem educar como muito bem entendem).

Acredito que devem existir parâmetros a ser respeitados pelos professores, e que o seu trabalho (também sou professor de filosofia) deve ser avaliado, e penso ainda que as aquisições dos alunos, relativamente aos conteúdos previamente seleccionados, devem se rigorosamente aferidas.

Desidério Murcho disse...

“Por exemplo, é proibido assassinar pessoas.” Isto não é um bom exemplo da legitimidade para legislar desde que quem legisla tenha sido democraticamente eleito. É um mau exemplo porque já é óbvio que é imoral matar pessoas inocentes e por isso é que é legítimo legislar sobre tal coisa, proibindo-o. Se tudo o que conta para que uma lei seja legítima é ter sido feita pelos representantes democráticos, então se estes decidirem que se pode matar pessoas inocentes desde que tenham olhos azuis, respondendo à maioria da população que os tem castanhos, isso seria legítimo. Mas não seria legítimo. Logo, não é verdade que basta que os representantes democráticos legislem de dado modo para que tal legislação seja legítima. Isto deveria ser óbvio. O que o Luís está a defender não é um princípio de legitimidade democrática; é um princípio de legitimidade da ditadura da maioria. E efectivamente muitas pessoas confundem democracia com ditadura da maioria. Mas eu não faço essa confusão. E o Luís também parece não querer fazê-la.

O que nos obriga a legislar, Luís, é quando há conflito de interesses; e não é relevante saber se tais interesses são privados ou públicos. Muitos interesses de carácter público não são legislados, e muitos interesses privados são-no. O interesse privado que alguém tem em torturar o seu marido, no seio do seu lar, é objecto de legislação; mas a cor da saia que essa mulher usa em público não é objecto de legislação.

Eu também acredito que o trabalho dos professores deve ser avaliado, e que a melhor maneira de o avaliar é por meio de exames externos. E concordo que o que os alunos aprenderam pode ser correctamente avaliado, e que se isso é crucial para um ensino de qualidade.

A questão, Luís, é que muitos dos nossos colegas não concordam connosco, e têm todo o direito de não concordar. Como fazer? Além disso, mesmo quando acabam por aceitar, a contragosto, os exames, têm uma concepção da filosofia, do seu ensino e consequentemente da sua avaliação que é incompatível com a minha, do Carlos, da Sara e talvez também do Luís, não sei. O que fazer então?

Temos, pois, uma aparência de conflito de interesses: eu e a Sara e o Carlos e muitos outros professores queremos 1) exames nacionais rigorosos e 2) competências e conteúdos filosóficos a sério e não conversa fiada. Mas muitos dos nossos colegas não querem exames, ou se os aceitarem querem-nos em moldes completamente diferentes. Há anos que andamos neste debate, e nunca chegaremos a um consenso. O que fazer?

Do meu ponto de vista, o conflito é aparente. Não é preciso que façamos todos igual, como numa linha de montagem. Vários professores podem fazer de uma maneira, vários outros de outra e outros ainda de uma terceira. Qual é o problema do pluralismo educativo? Isso existe nas universidades e não levanta problemas. O que eu ensino em Lógica, na universidade, não tem nada a ver com o que colegas meus ensinam e já ensinaram, e o que avalio idem. Qual é o problema? Por que razão haveremos de formatar os alunos todos por igual, querendo formatar os professores todos por igual? E o que poderá justificar tal coisa?

Luís Mendes disse...

“já é óbvio que é imoral matar pessoas inocentes e por isso é que é legítimo legislar sobre tal coisa, proibindo-o”
- Mas: é óbvio para quem? Para a maioria? Então isso não é também ditadura da maioria?
O facto de X ser imoral não legitima que se legisle. Aliás, pode muito bem acontecer que algo que a lei impõe seja imoral. São coisas diferentes, o Direito não é Ética, e muito menos Moral.
Não é o facto de ser imoral que torna legítimo legislar-se sobre isso, mas o facto de ser do domínio público. Ser imoral, no domínio privado, não dá direito ao Estado para legislar.

“Se tudo o que conta para que uma lei seja legítima é ter sido feita pelos representantes democráticos, então se estes decidirem que se pode matar pessoas inocentes desde que tenham olhos azuis, […], isso seria legítimo”
- Bem, aqui é que a Filosofia do Direito e Política encontram o seu calcanhar de Aquiles, não é?! Porque deixaria de ser legítimo se, e apenas se, isso deixasse de ter o apoio democrático e se quebrasse o contrato social. Não é isso que dizemos aos EUA quando pretendem impor a Democracia a outros? Quando é que o regime Nazi se tornou ilegítimo? Mas quando é que as leis dos países árabes que não permitem que as mulheres conduzam se tornam ilegítimas? Quando nós impomos a “nossa” legitimidade? Quem pode dizer o que é legítimo? Há uma forma objectiva? Ou dizemos apenas: “é óbvio que”. A lei que proíbe que as mulheres conduzam é ilegítima porque nós dizemos “que é imoral”, ou porque foi feita por um governo não democrático?
Mas: não foi isso que eu disse. Não disse que tudo o que o é legislado é legítimo, mas que o Estado pode legislar sobre tudo o que é do domínio público. Foi isso que eu disse.

Luís Mendes disse...

“não é verdade que basta que os representantes democráticos legislem de dado modo para que tal legislação seja legítima”
- Concedo. O contrato social pode quebrar-se. Aconteceu na Tunísia, todos se lembram. E varre ainda pelo mundo verde a revolução que nos faz aumentar o preço dos combustíveis. Quando os representantes legislam contra a vontade dos representados, ou mais concretamente, quando o soberano (o representado) retira a sua confiança no representante.
Existem ainda as leis de base, as leis que são prioritárias. A legislação está por camadas, como uma cebola. Uma circular não revoga uma lei ordinária, uma lei ordinária não revoga a constitucional.
Mas não foi isso que eu disse. Eu não disse que basta legislar-se para a lei ser boa! Disse que o Estado pode legislar sobre o domínio público. Depois, disse eu, é ainda preciso perguntar como legislar. Eu disse que sobre o assassínio o Estado PODE LEGISLAR, não disse que se se legalizasse o assassínio esta legalização seria legítima.

“é um princípio de legitimidade da ditadura da maioria”
- Não é não, não é isso que defendo.
Mas como fazer as coisas funcionar? Democracia directa? ἀδύνατον: não vejo que isso seja praticável. Assim, tem-se que submeter os representantes ao escrutínio, e neste a maioria irá ter um peso maior. A Democracia estabelece, com certeza, princípios que protegem os direitos da minoria. Contudo, aqui também começa a ser indistinto o que é minoria e o que é imoral. Haverá sempre minorias não aceites, nem que sejam os tais psicopatas (considerados imorais) cuja acção pública se vê coarctada pela moralidade maioritária. O que é que faz com que não seja legítimo violar os direitos de um indivíduo em nome da maioria? Em primeiro lugar, o facto de a MAIORIA ter identificado ESSE DIREITO e o ter considerado UNIVERSAL.
As minorias devem ter os seus direitos protegidos, mas dizemos nós: os direitos que, precisamente, a maioria reconheceu como direitos de todos. Por isso o próprio psicopata tem direitos inalienáveis, não porque Deus os tenha inscrito numa pedra, mas porque estes foram reconhecidos como universais e, assim, garantidos por mecanismos legislativos, jurídicos, etc.

“O interesse privado que alguém tem em torturar o seu marido, no seio do seu lar, é objecto de legislação”
- Sim. Mas aqui o domínio é público. Aliás, trata-se de um crime público! Não é, na verdade, privado, porque, precisamente, diz respeito a todos nós. De resto, o perpetrador não o pode perpetrar sem interferir com os direitos de outros. Depois há a questão de toda sociedade ser afectada por este tipo de crimes. Os antigos sentiam isto muito vivamente. O crime é um atentado a todos, à comunidade, e não apenas àquele que sofre. Os casos de raparigas sequestradas décadas pelos próprios pais também nos revelam isto de forma algoz, dolorosa. É um crime público.

Luís Mendes disse...

“mas a cor da saia que essa mulher usa em público não é objecto de legislação”
- Sim, porque é matéria privada na medida em que não interfere com os direitos (consignados) de mais ninguém. Porque se interferisse, então legislar-se-ia. Exemplos: países onde não se pode, de facto, usar minissaia; a nudez pública; etc.

“A questão, Luís, é que muitos dos nossos colegas não concordam connosco, e têm todo o direito de não concordar”
- Bem, muita gente não concorda em pagar impostos. Vamos deixar de os pagar? A minha questão é: é a opinião do professor que realmente nos interessa aqui, ou obter uma boa educação para os alunos? É melhor para a educação dos alunos os professores terem liberdade de ensinar o que lhes apetece?

“Como fazer?“
- Bem, antes de mais, penso que é importante recolocar o problema. Eu preferia dar Nietzsche, Heidegger, Kierkegaard… Por que deverei ter o direito de o fazer? A questão não deverá ser: o que deve ser ensinado aos nossos alunos?

“Mas muitos dos nossos colegas não querem exames, ou se os aceitarem querem-nos em moldes completamente diferentes. Há anos que andamos neste debate, e nunca chegaremos a um consenso. O que fazer?”
Recolocar a questão. O que é que deve ser ensinado? E não tentar satisfazer todos os professores.
A ausência de exames cria a ideia, na esmagadora maioria dos alunos, e em muitos professores, que a Filosofia é um pouco como ir ao café “mandar uns bitaites”. Ou uma espécie de “poesia semi-religiosa, meio acção cívica, meio psicologia”. Aborrece-me a falta de rigor muitas vezes posta em marcha na nossa disciplina.
Mas o que me aborrece é irrelevante para o caso. Interessa-me saber o que é melhor para os meus alunos e para os alunos em geral: a) ter um conjunto de parâmetros falíveis e erróneos (não se esqueça nunca que a educação é também algo de humano), mas que estipula um percurso e, por isso, se for bem traçado, pode garantir um percurso que obriga todos os professores a obterem um certo nível de aprendizagem, …; b) dar liberdade aos professores e ter alguns muito bons, a procurar a excelência, e outros a abdicarem de qualquer rigor.
Não é que as orientações façam o bom professor, mas sempre ajudarão nos casos em que o professor não é bom. Concedo que seja necessário fazer boas orientações; não concedo que não são necessárias orientações.

“Qual é o problema do pluralismo educativo?”
- A sala de aula não é o jardim do professor. O problema é: a) que muitos professores precisam de facto de linhas que os orientem; b) que precisamos de ter formas rigorosas de avaliar o trabalho feito. E esta avaliação não pode apenas ser a do professor. A educação não é “do professor”. O professor deve avaliar os seus alunos, segundo o que ele pensa importante? Penso que se deve antes perguntar: o que é importante ensinar? Será mais importante que o professor ensine o que pensa ser importante, e avalie segundo o que pensa ser importante ter-se aprendido, ou sabermos antes o que o humano deve aprender em busca da excelência nisso que é ser humano e depois tratarmos de ensinar isso?
Não será fácil responder a este problema, já não o era no século V a.C.
Educação há sempre, em todos os povos, todas as sociedades e comunidades. Mas os helenos tomaram consciência deste processo até então inconsciente e procuraram agarrá-lo com as duas mãos. As nossas crianças estão sujeitas à educação. Procuremos, então, saber o que deve ser a educação. E não como tornar possível que cada professor possa ter um laboratório educativo.

Desidério Murcho disse...

Se torturar alguém no seu lar é um crime público, e se é o facto de ser público que justifica que se legisle proibindo tal prática, então também fazer amor com pessoas do mesmo sexo, na nossa casa, é um crime público, o que justificaria que sobre ele se justificasse. Dado que que a consequente anterior é falsa, segue-se que a antecedente também o é.

É preciso compreender o que justifica que se legisle sobre algo, contrariando as preferências de alguém, e é preciso distinguir isso de quando é ilegítimo que se legisle de um certo modo, contrariando as preferências de alguém. A chave aqui é compreender quando é legítimo usar o poder do estado para contrariar as preferências de alguém.

E a resposta é o conceito de imparcialidade, que infelizmente a maior parte das pessoas é incapaz de entender. A experiência mental de Rawls aqui pode ajudar: trata-se de pensar como vou legislar sem eu saber se serei homossexual ou não, assassino ou não. E a ideia é que ao fazer isso reconheço que não quero permitir a tortura nem o assassínio porque não sei se serei o torturador ou o torturado, o assassino ou o assassinado. Mas quando considero a homossexualidade, nada tenho a perder em permiti-la, porque muito ganho se for homossexual, e nada de especial perco se não o for (a não ser um incómodo vago, que resulta do preconceito).

Basta compreender os fundamentos da legitimidade da legislação para compreender que é indefensável a situação actual, em que alguns professores, os que têm o poder, impõem aos outros a sua vontade. As pessoas não vêem a iniquidade disto porque não estão a pensar de um modo imparcial; estão apenas a defender os seus interesses e as suas ideias. Se eu fizer isso, defenderei os exames nacionais segundo os moldes que a mim me parecem correctos. Mas basta em pôr-me no lugar de pessoas que não sabem o que é uma derivação, nem a factividade, nem são capazes de escrever duas páginas claras e precisas sobre a teoria dos universais de Armstrong, para ver que é iníquo que eu lhes imponha a eles o meu modelo de filosofia, do seu ensino e da sua avaliação. E, claro, é também iníquo que eles me imponham a deles -- o que acontece desde há quase 40 anos.

Desidério Murcho disse...

Luís, se o ensino for plural e livre continuará a haver programas e orientações e exames nacionais. Apenas serão feitos em liberdade e em liberdade adoptados. E existirão diferentes modelos. E alguns professores poderão não querer usar nenhum desses modelos.

Você diz e com razão que os professores precisam de orientação; mas diga-me lá se recebeu mais orientação, nos últimos 20 anos, do Ministério, ou dos livros e outros materiais que eu eu outros temos livremente publicado, contra a vontade e para raiva dos responsáveis ministeriais e dos que gravitam em seu torno?

A resposta parece-me óbvia. A única diferença, Luís, se houver plena liberdade, é que você e o Carlos, a Sara e o Aires, o Rolando e muitos outros professores preocupados com a excelência educativa, poderão fazer um bom trabalho, sem as interferências arbitrárias e sempre tolas dos responsáveis ministeriais.

Eis as minhas duas ideias cruciais:

Primeiro, nunca teremos programas, orientações e exames nacionais controlados pelo ministério e que tenham o mínimo de qualidade científica e pedagógica. Tudo o que teremos é conversa fiada a fingir que é coisa séria.

Segundo, se tivermos o que eu penso que nunca teremos, o que raio justifica que se imponha isso aos nossos colegas que o não querem? Se você admite que, na ausência de directrizes ministeriais, muitos professores irão para as aulas fazer conversa fiada, o que raio lhe dá a si o direito de os impedir de fazer tal coisa? Você gostaria de ser obrigado a fazer conversa fiada nas aulas, em vez de fazer o que você considera correcto? Claro que não.

Só há dois argumentos contra a minha posição e os dois não são bem-sucedidos.

Primeiro, podemos argumentar que apesar da diversidade é possível um consenso, um mínimo denominador comum. E isso justificaria a imposição de um modelo centralizado de ensino: porque seria consensual. Como é óbvio, a premissa deste argumento é falsa. Com os colegas que querem fazer conversa fiada nas aulas nenhum consenso é possível que agrade a todos.

Segundo, podemos argumentar que a liberdade do professor acaba onde começa o direito do aluno a uma boa educação. Eu concordo com este princípio. Só que isto é totalmente irrelevante para a discussão porque os colegas que gostam de fazer conversa fiada nas aulas irão dizer que os alunos têm direito a essa liberdade espiritual e que somos nós, pelo contrário, que os oprimimos com os modus tollens e as factividades e o raio. Logo, este argumento também não é cogente porque o nosso conflito é sobre o que é ter uma boa educação em filosofia, no secundário.

anabela moutinho disse...

*ethos de aristóteles

Luís Mendes disse...

“ então também fazer amor com pessoas do mesmo sexo, na nossa casa, é um crime público”
- Como é que do facto de a tortura ser crime público se segue que também a prática do acto sexual homossexual o é? Bem, isso é como dizer que: se é proibido andar nu na rua, então também é proibido andar com chapéu!
1º: é da nossa lei: considera que a violência doméstica é um crime que atinge toda a sociedade (por isso, não é necessário que o agredido se queixe, pois a lei considera que o ofendido não é [apenas] a vítima directa, mas todos);
2º: se eu fizer sexo seja com quem for, onde quer que seja, contra a sua vontade, isso é crime. O Estado legisla também sobre o sexo: em tudo o que ultrapassa a esfera privada: quando fere a comunidade (violando os indivíduos).
3º: parece-me que a educação é do interesse público, o Estado pode legitimamente legislar sobre ela e determinar linhas orientadoras de como ela deve ser. Considero esta uma aquisição civilizacional importantíssima: o Estado, em nome da sociedade, chamar a si a responsabilidade sobre a educação. Porque o que é mais importante é a educação, não a vontade dos professores.
“Rawls”.
Parece-me que Rawls reforça a minha posição: quando é rés privada (“um incómodo vago, que resulta do preconceito”) não se legisla sobre isso. Já se legisla se é pública (Rawls, e muito bem, descobriu um estratagema que permite que cada indivíduo tome como seu o interesse público – desculpe-se a utilização de termos que não são os dele). Rawls é uma mistura de contrato social e Kant (falando por grosso). Aquilo que interfere com o que é considerado um direito (interesse que deve ser garantido) pode ser legislado, sobre tudo o resto (que não interfira com a liberdade de todos – isto é, com o espaço público) não se deve dizer nada (legislativamente).
“indefensável a situação actual, em que alguns professores, os que têm o poder, impõem aos outros a sua vontade.”
- Concordo.
“é iníquo que eu lhes imponha a eles o meu modelo de filosofia, do seu ensino e da sua avaliação”
- Concordo. Repito: centremo-nos nos alunos e no que eles precisam, não nas ideias favoritas dos professores.

“E alguns professores poderão não querer usar nenhum desses modelos”
- Mas acredita mesmo que a educação SERIA MELHOR (porque o que me interessa é apenas uma boa educação, e não o que os professores preferem) se cada professor pudesse optar por um modelo, ou “NENHUM”? Acredita mesmo que haveria melhor ensino?

“mas diga-me lá se recebeu mais orientação, nos últimos 20 anos, do Ministério, ou dos livros e outros materiais”
- Concordo!
“você e o Carlos, a Sara e o Aires, o Rolando e muitos outros professores preocupados com a excelência educativa, poderão fazer um bom trabalho, sem as interferências arbitrárias e sempre tolas dos responsáveis ministeriais.”
- Não digo que o que se fez até aqui é óptimo, digo sim: precisa ser melhorado, não eliminado. Se as interferências têm sido tolas, trabalhe-se para que não o sejam. ἄνδρ' ἀγαθὸν μὲν ἀλαθέως γενέσθαι | χαλεπὸν (Simónides: “ao homem é verdadeiramente árduo tornar-se bom”), mas isso não significa que não se deva fazer o melhor possível.

“Tudo o que teremos é conversa fiada a fingir que é coisa séria”
- Concordo! E o pior tem sido o facilitismo, a ideia do «faremos o que gostardes, em vez de vos espevitar o gosto pelo difícil» e a ausência de exames (obrigatórios). É contra a conversa fiada que me manifesto. Deve-se discutir “que caminho” e não “abolir o caminho e que cada um vá pela selva que gostar mais”. Falta rigor; não há rigor a mais. Talvez venha a existir mais no futuro, o que louvo.

“o que raio justifica que se imponha isso aos nossos colegas que o não querem?”
- O facto de que na educação o importante não é a vontade do professor, mas o por-vir dos alunos. A educação é uma responsabilidade, não um passatempo. Repito-me: a educação não é o quintal dos professores. O Disidério defende, de facto, que os filhos de todos os portugueses passassem de hoje em diante a ser ensinados por professores que fizessem apenas o que lhes parece bem?

Luís Mendes disse...

“o que raio lhe dá a si o direito de os impedir de fazer tal coisa?”
- A mim? Lá está, eu não vejo o problema dessa forma, mas já agora, posso ir pelo mesmo caminho: e aos pais? Porque a educação não é minha, do Desidério, do Carlos, da Sara, mas de todos nós. Porque o futuro constrói-se hoje. A educação é o modo como o humano talha a sua humanidade, molda o futuro, esculpe a matéria que fará a consistência dos espíritos de amanhã. Queremos que o mundo seja melhor para os NOSSOS filhos: para isso temos que deixar FILHOS MELHORES no mundo.
Tenho o direito de querer que os meus filhos não tenham professores com o direito de lhes ensinarem o que lhes parece individualmente. Prefiro que todos ensinem o que a maioria dos professores considera “melhor” do que ter cada um por si. Contudo: a educação é demasiado importante para se deixar apenas aos professores.
Os pais têm o direito de exigir que os responsáveis pela educação sejam isto: responsáveis. Não devem dizer o que se deve ensinar em química, mas têm o direito de não quererem a educação dos filhos abandonada aos caprichos de cada professor.

“Com os colegas que querem fazer conversa fiada nas aulas nenhum consenso é possível que agrade a todos.”
- E então vamos dizer ao país: “de hoje em diante cada professor é plenipotenciário na sua sala, pode muito bem discutir o sexo dos anjos todo o ano, ou discutir a estética das teias de aranha, ou ensinar outra coisa qualquer que mais ninguém consideraria Filosofia senão ele próprio, pois ninguém tem o direito de dizer aos professores de Filosofia (e também aos outros?, aos de matemática?) o que devem ensinar”? Vamos dizer isto?
Imagine-se na POSIÇÃO ORIGINAL de Rawls: não sabe em que escola os seus filhos vão calhar, nem com que professor. Concorda que cada professor defina o que ensina?
Então isso dever-se-ia fazer em todas as disciplinas.
Concorda, sabendo que o seu filho pode cair na olaria de um professor de física que passará as suas aulas a analisar fotos de ONVI’s? Os professores de geografia podem passar o ano a ensinar sobre a indústria de laticínios na região centro do Afeganistão, enquanto os professores de História a “História de um cerco de Lisboa”…
Eu não quereria os meus filhos num sistema assim. Ou apenas o professor de Filosofia deve gozar desse direito ensinar a dança das rãs?

“ isto é totalmente irrelevante para a discussão porque os colegas que gostam de fazer conversa fiada nas aulas irão dizer que os alunos têm direito a essa liberdade espiritual e que somos nós, pelo contrário, que os oprimimos com os modus tollens e as factividades e o raio”
- Os alunos têm essa liberdade? Não percebo. Se fizermos o que os alunos desejam apenas, bem… nem vou comentar, pois parece-me que temos andado perto disso nos últimos anos.
Se um professor de filosofia não sabe lógica aprenda-a. Imagine-se que os professores de matemática começam a pensar o mesmo. Ou os de Biologia: começando a ensinar apenas aquilo que à partida cada sabia melhor. O de matemática ensinaria os números reais, porque o restante é chato e maça. O de Biologia ensinaria apenas criacionismo porque é católico e pensa que Darwin era um charlatão. O professor de português não ensina gramática que é coisa esdrúxula. Digo: não sabe gramática? Aprenda-a. Não sabe lógica, estude-a.

Luís Mendes disse...

Isso não é irrelevante para mim, nem para qualquer pai. Eu, pelo menos, quero que os meus filhos saibam coisas de que não gostam, quero que aprendam sobretudo aquilo que lhes custa, quero que saibam que o verdadeiro perigo do humano é “ficar todo o tempo de vida em casa da mãe”, como diz Píndaro.
Pergunte-se a qualquer pai se concorda que os professores ensinem apenas o que e como lhes apetece. Penso mesmo que muitos pensam que é isto que todos os professores querem - isto é que tem disseminado na sociedade, como erva daninha, a opinião que ela tem dos professores e dos professores de filosofia em particular. Mas a ideia que os professores têm de que são eles os donos da educação está equivocada.
Mas agora é importante que um professor não goste de lógica, e é irrelevante o direito à educação? Recuso-me a pensar assim. Se isto vier alguma vez a verificar-se, espero ter euros para retirar os meus filhos do ensino público. Prefiro ensiná-los eu em casa, do que ter uma Escola em que cada professor é um ditador. O professor que se acha no direito de ser ele a definir como os seus alunos devem ser ensinados, esse sim é um ditador. Porque os alunos não são os seus animais domésticos, e a educação não é a sua estufa.
Se isto vier a acontecer os mais desfavorecidos ficarão cada vez mais desamparados num sistema público ao deus dará, enquanto os ricos pagarão para colocar os filhos em escolas onde os professores TERÃO REGRAS A OBJECTIVOS A CUMPRIR. E então Rawls estará na sargeta.
Se se permite que se faça pouco, a maioria dos professores fará o menos possível, pois parece ser assim que funciona a maioria. O professor exigente tornar-se-á um pária e não auspício nada de bom.

Desidério Murcho disse...

O argumento a favor da centralização do ensino baseado no superior interesse dos alunos não é cogente porque:

1) O que está em causa no conflito que temos desde o 25 de Abril é precisamente que diferentes responsáveis educativos, incluindo diferentes pais, têm diferentes ideias sobre quais são os superiores interesses dos alunos. Eu penso, como o Luís e muitos outros que o esforço é importante, e que é importante a filosofia a sério, assim como a matemática, as ciências e as artes. Mas muitos pais e professores discordam.

2) Uma descentralização do ensino não implica uma desresponsabilização dos professores; apenas implica que estes terão de responder a quem realmente devem responder -- alunos e pais -- e não ao estado que, supostamente, defende os interesses destes dois últimos. Mas defende mal, dado que não conseguimos concordar quais são afinal os melhores interesses de alunos e pais.

O que dificulta esta discussão é duas coisas.

Primeiro, a dificuldade em pensar fora da mentalidade centralista que recebemos. A mentalidade portuguesa é a mentalidade salazarista em que o estado é o pai, zelando pelos superiores interesses dos cidadãos -- e mesmo que esses mesmos cidadãos esperneiem e afirmem que esses não são os seus interesses, o estado dá-se a si mesmo o direito de dizer que eles não sabem o que querem.

Segundo, a incompreensão do conceito de imparcialidade e da sua centralidade no pensamento político. O Luís, como todas as pessoas que têm tido a paciência de me aturar, não vê que do seu ponto de vista as coisas são muito óbvias, mas do ponto de vista contrário as coisas são igualmente muito óbvias. Você só está a ver as coisas do seu ponto de vista; não está sequer a considerar que os seus colegas e superiores que pensam de maneira diferente tenham sequer em hipótese o direito de ensinar, divulgar, publicar e agir segundo as suas concepções de ensino. Não vê isso porque para si é óbvio que eles estão errados, objectivamente errados. Mas isto é totalmente, repito, totalmente irrelevante precisamente porque eles pensam que somos nós, Luís, que estamos objectivamente errados. No pensamento político, o que é objectivamente verdade ou falso é irrelevante quando duas pessoas discordam sobre o que é objectivamente verdade e nenhuma consegue persuadir racionalmente a outra. Quando isto acontece -- que é o que ocorre na educação há 38 anos em Portugal -- temos de passar para a fase seguinte: aprender a viver juntos. Ora, neste caso isso é muitos simples: deixar que diferentes professores e responsáveis educativos façam a sua vida de acordo com os seus ideais de ensino.

Luís Mendes disse...

“O Luís, como todas as pessoas que têm tido a paciência de me aturar” – é para mim uma honra discutir consigo e o assunto parece-me de monta. Mas não concordo quando diz “Você só está a ver as coisas do seu ponto de vista”, mas já lá irei. Penso já ter abordado todas as suas objecções, mas como não o fiz de forma clara e distinta vou fazê-lo agora, e espero não ser muito maçador.
Não é que não veja a posição dos outros. Não é que não me ponha numa posição imparcial (e não discutirei aqui a impossibilidade humana de granjear um ponto de vista efectivamente imparcial), o meu ponto é que o argumento dos interesses dos alunos é cogente porque deve estar a montante do argumento da divergência entre os professores. Vejo esse problema, mas não com o significado e a amplitude que o Desidério lhe atribui. Passo a explicar-me:
- α) A legitimidade do Estado para legislar sobre aquilo que é interesse público, ou interesse comum, está suficientemente bem explicitada por muitos mais capazes que eu, como Locke, Hobbes, Rousseau, Espinosa, mas bastar-me-á referir Platão: idealmente não existiriam leis, mas dados os defeitos humanos segue-se que… Ou seja, precisamos do Estado dada a nossa imperfeição, mas sobretudo dada a nossa constante procura da excelência. Não somos deuses, mas também não somos bestas (diz Aristóteles).
- β) Deve-se começar por perguntar o que é melhor para a educação. Ora, o melhor é haver um conjunto de normas, de objectivos, métodos de aferição, etc. É pior cada professor fazer o que lhe apetece. Dado que o Estado tem legitimidade para legislar sobre o que é público, seguindo o interesse comum, ergo…
- γ) Há divergência entre os professores. Que haja. Isso é positivo, para que isso aconteça é que vivemos em democracia. Se fosse para existir unanimidade, valia mais a ditadura, se fosse para cada um agir por si, valia mais a selva. O Estado impõe a sua visão à opinião dos professores? Mas, precisamente, o Estado legisla e regula em nome do bem comum, e não em nome dos interesses, nem da classe dos professores, nem do professor Luís, ou do professor Desidério.

Resumo:
1: o problema deve ser recolocado, indo a montante perguntar “para que é a educação”;
2: começando aí fazemos primeiro as perguntas sobre “o que se deve fazer em nome de uma melhor educação?”
3: chegamos à conclusão de que é pior que cada professor tenha plenos poderes para ensinar o que, como, quando lhe parecer, do que ter um método, um sistema, um programa, um currículo, ou um sistema para regular currículos, etc. Chegamos a outras conclusões sobre o que é melhor, se começarmos precisamente aí. Talvez também ajude se eu pensar em Rawls: em que tipo de sistema quero os meus filhos se eu apenas souber que tenho filhos, mas não souber que professor ele vai ter, nem que escola, nem quanto dinheiro eu terei, etc.?
4: se chegarmos à conclusão que um sistema educativo é melhor que um não sistema, então não fará sentido dizer que os professores têm direito a ter liberdade de ensinar o que lhes apetece…
Escrevi originalmente muito mais, mas como me estou a tornar maçador, fico por aqui.

Desidério Murcho disse...

Caro Luís, acabo de responder aos seus argumentos mas como é longo e pode ser informativo, vou responder no De Rerum Natura, ok?

http://dererummundi.blogspot.com.br/

Carlos Pires disse...

Desidério:

Peço desculpa por não ter respondido antes, mas não foi possível. Obrigado pelos teus comentários e pelo debate que mantiveste com o Luís.

Não conheço a teoria dos universais de Armstrong. Mas quando tiver oportunidade vou tentar descobri-la.
Nem sempre soube o que é a factividade (nunca ouvi falar de tal coisa na Universidade), depois descobri.
Conheço professores de Filosofia que descobriram tardiamente a factividade e outras ideias filosóficas relevantes, mas que as aprenderam com menos gosto que eu. Aprenderam-nas à pressa e de má vontade por causa das antigas Orientações de gestão do programa, mas agora continuam a ensiná-las nas aulas.
Porquê? Porque descobriram que as aulas funcionam muito melhor com essas ideias do que com a dita "análise fenomenológica" que punha o sujeito a sair de si e viajar até ao objeto e tretas semelhantes.
A liberdade inteletual desses professores terá sido posta em causa pela "pressão" introduzida pelas Orientações? Talvez...
Mas com um programa nacional minimalista (com a indicação dos problemas filosóficos a estudar, mas deixando os professores escolher as teorias a discutir, apresentando talvez uma pequena lista de possibilidades; mas dando completa liberdade na escolha dos métodos de ensino) conseguiríamos dar liberdade aos professores e simultaneamente levar alguns a estudar o que é a factividade e a ler uns livros.
Os professores ensinariam como achassem melhor, mas sabendo que no final os alunos fariam um exame nacional em que teriam que demonstrar alguns conhecimentos e competências.
Aquilo a que chamas pluralismo educativo dá uma liberdade ainda maior a cada professor, é verdade, mas é menos capaz de promover o aperfeiçoamento dos menos competentes e menos informados.
Julgo também que és demasiado pessimista relativamente ao debate público, em Portugal, de diferentes conceções de Filosofia e educação. Possivelmente não se conseguiria chegar a nenhum consenso se quiséssemos um programa muito detalhado, mas é possível relativamente a um programa minimalista como referi. O facto de no passado as coisas terem corrido mal não implica que corram mal no futuro. Nos últimos anos as coisas melhoraram um pouco no que diz respeito à filosofia. Repara, por exemplo, que mesmo os manuais que acham fundamental falar do “ethos” aristotélico já discutem a definição do conhecimento como CVJ. O facto de um tal debate ser possível e minimamente frutuoso é importante pois significa que o programa que dele resultasse não seria uma imposição de uma fação a outra fação.
Escreveste várias vezes que não é legítimo uns professores imporem a outros a sua conceção de ensino. Discordo do uso que fazes da palavra “imposição”. O resultado de um debate, mesmo que não seja um debate ideal, não é uma imposição. E não é por isso uma limitação, pelo menos significativa, da liberdade.

Carlos Pires disse...

(Cont.)
Para terminar.
Os erros, as imprecisões e as irrelevâncias filosóficas contidas neste teste intermédio não significam que há visões irredutíveis e incomparáveis da filosofia e que portanto não vale a pena fazer provas iguais para todos e que não vale a pena debater com os defensores de outras conceções. O modo claro e objetivo como tu, o Aires de Almeida, a Sara e muitas outras pessoas têm apontado esses defeitos mostra que as visões não são irredutíveis nem incomparáveis. Esses defeitos não são relativos e podem ser apontados, discutidos e corrigidos. Ao discutir-se os defeitos de um teste estamos também a confrontar diferentes conceções de educação e de filosofia e dessa discussão fica claro – para algumas pessoas - que algumas conceções são melhores que outras.
No sistema a que chamas pluralismo educativo não se conseguiria esse efeito, pois as diferentes conceções não se confrontariam realmente umas com as outras. É como se jogassem em campeonatos diferentes. É melhor para um aluno que o seu professor de filosofia discuta a definição de conhecimento como CVJ ou fale da dita “análise fenomenológica” do conhecimento? É melhor para um aluno discutir se Kant tem ou não razão e aprender a justificar as suas opiniões ou é melhor limitar-se a comentar e parafrasear textos de Kant? Com o teu sistema, um pai que se tentasse informar-se da resposta a essas perguntas para decidir em que escola devia matricular os filhos não conseguiria chegar a conclusão nenhuma, pois encontraria versões antagónicas da adequação e eficácia das duas conceções. Quem, no uso da sua liberdade de ensinar, dedicasse as aulas à “análise fenomenológica” do conhecimento e coisas semelhantes faria disso uma descrição abonatória - e se mostrasse muitos filmes e desse boas notas teria alunos e pais satisfeitos. Para poder fazer essa comparação é preciso que as duas conceções “joguem” no mesmo “campeonato” – ou seja, que precisem de se sentar e discutir programas, testes e exames, critérios de correção, perguntas mal formuladas, etc. Se não for assim, estaremos a prejudicar os alunos que tiveram azar com os professores que lhes calharam em sorte.

Carlos Pires disse...

Luís:

Peço desculpa por não ter respondido antes, mas não foi possível. Obrigado pelos teus comentários e pelo debate que mantiveste com o Desidério.

Tal como tu discordo da ideia do Desidério de que não devem existir programas nacionais obrigatórios e que cada professor deve poder escolher em total liberdade o que ensina. Julgo também que isso poria em causa os direitos dos alunos. E não me parece ilegítimo o estado legislar no sentido que defendeste, embora tenha dúvidas quanto a alguns argumentos utilizados.
Fiquei com curiosidade relativamente ao tipo de programas, nomeadamente de Filosofia, que defendes.

Desidério Murcho disse...

Espero que tenhas razão; mas não tens. O próximo programa de filosofia serão tão tolas quanto os exames, e estes serão cada vez mais tolinhos. O problema do exame não é ter erros de pormenor; é estar todo radicalmente errado, no sentido em que não avalia uma só competência genuinamente filosófica final; na melhor das hipóteses, avalia competências filosóficas instrumentais.

E é mais do mesmo que podes esperar. Em breve serás proibido de ensinar a discutir a ideia redutora e logicista de que o conhecimento é crença verdadeira justificada. Em breve, manuais como o meu serão impossíveis, porque o programa será de tal modo que por mais que o tente, um autor como eu será incapaz de meter filosofia a sério onde só há devaneio para-religioso anti-racionalidade e anticiência.

Se isso está errado -- e está -- não pode ser porque eu tenho razão e os colegas que pensam que a conversa da carochinha que ensinavam era a descrição fenomenológica do conhecimento (coitado do Husserl!). Se está errado, é apenas porque essas pessoas são tão qualificadas quanto eu -- mas usam o poder do estado para me silenciar e para te obrigar a ensinar o que eles querem que seja ensinado.

Mas, por simetria, se está errado que me façam isso a mim e a ti, está errado que nós façamos isso aos outros.

O que preconizas é impossível. É um sonho ingénuo. Um programa minimalista, directrizes mínimas, exames sérios. Isso, Carlos, foi um sonho. E agora acordámos para a realidade.

A única batalha que vale a pena travar é a do direito a ensinar filosofia como consideramos correcto, mostrando as bibliografias sérias em que nos apoiamos. Se toda a gente no país faz isso ou outra coisa, é problema dos pais dos alunos. Cada qual sabe de si. Se fizermos esta batalha, talvez -- talvez -- consigamos a liberdade necessária para não andar a ensinar disparates. Mas se entrarmos na batalha que preconizas, e na qual já participei durante anos sem quaisquer resultados, os dias do ensino da filosofia tal como o entendemos têm os dias contados. Na melhor das hipótese, terás agora algo nessa direcção, se o professor Nuno Crato conseguir ir contra os tantos interesses do Ministério que estão contra ela. Mas no logo depois terás a reacção na direcção oposta. E andamos nisto há décadas.

Luís Mendes disse...

Considero um dever e é para mim discutir o assunto "ensino", mormente se da Filosofia se trata.

De facto parece-me que a educação é um direito dos alunos, enquanto veículo de mobilidade social, mas sobretudo como criador de consciência crítica face ao que o mundo oferece imediatamente... por isso me parece que fazendo prática a teoria do Desidério se correria um risco grave, mais grave do que aquele que se corre com exames imprecisos.

A posição do Desidério, levada ao limite, parece(-me) dizer que os pais têm direito a dizer o que os professores devem fazer e ensinar em cada disciplina (e não os pais em geral, mas cada pai em particular para o seu filho). No limite, então, os pais poderiam decidir que os filhos não fossem à escola. Que uma criança de 13 anos engravide com o beneplácito cultural da família, e que os seus pais decidam que ela ficará doravante em casa dedicando-se às mais elevadas lidas familiares - e que o Estado venha dizer que cada pai tem todo o direito de deixar o seu filho não ir à escola... ou que cada pai deve poder escolher o que é ensinado... bem, tudo isto me parece muito perigoso, tão ou mais perigoso que amanhã ficarmos sem polícia. É que a educação não é menos crítica que a segurança, apenas não é tão evidentemente premente. Não conheço, realmente não conheço, nenhum Estado moderno onde tal aconteça (o que não prova que não devesse verificar-se, é verdade...).

Quanto aos programas: bem, há com toda a certeza gente mais abalizada para sugerir ideias. Eu neste campo sou mais ágil a encontrar questões, dúvidas e críticas do que, propriamente, a perceber qual seria o programa "melhor". Tenho as minhas ideias - sobre o "como deveria ser" e sobre a distinção entre o que assumo como a "minha prática", e o "padrão" que "deveria ser" o programa.

Quem já leccionou Área de Integração já pôde verificar que um programa com muitas hipóteses também pode criar dificuldades práticas. Mas é possível fazer programas assim: com várias hipóteses de onde o professor pode escolher caminho. Mas não defendo programas demasiado minimalistas. É curioso que nós tanto critiquemos os programas por não especificarem o que pretendem quando dizem isto ou aquilo, como os criticamos por serem limitadores. A maioria de nós penso que gostaria de exames que especificassem muito bem cada ponto, mas que essa especificação correspondesse aos seus gostos particulares.
Bem, penso que o programa deveria: contemplar 3 anos (e não 2); em cada ano ter uma regência; focar-se em problemas (não em autores ou teorias), e concentrar-se mais em "colocar os problemas"; abordar metodologias de resposta; confrontar diferentes tipos de resposta e diferentes respostas aos problemas; nunca assumir uma resposta como óbvia ou natural (o que faz muitas vezes, por exemplo, dando como objectivo "reconhecer a necessidade de..."); discutir os problemas, não abordar os problemas apenas para passar uma mensagem previamente estipulada; abandonar a ideia de "competência" como definidora da "aprendizagem" e da "avaliação"; o que for mencionado como "objectivo", deve ser claramente apresentado como tal e poder ser objectiva e concretamente pesado...
Algumas destas já acontecem, mais ou menos, outras não.