Crónica do historiador Rui Tavares no jornal Público de hoje (17-02-2014). Vale a pena ler.
“Tendes talvez mais medo vós, que pronunciais essas palavras, do que eu, que as escuto.” Não é preciso estar em frente à Inquisição romana, a ouvir a sua própria sentença de morte, para invejar a coragem de alguém capaz de reagir assim.
E quem reagiu assim foi Giordano Bruno, após nove anos nos cárceres do Santo Ofício, quando o chamaram para lhe comunicar que ele seria queimado numa fogueira, no Campo das Flores, em Roma, no dia 17 de fevereiro de 1600 — há exatamente 414 anos.
A ideia que fazemos do nosso mundo por comparação com o mundo pré-moderno é a de um mundo em que se circula e viaja muito, e em que existe uma cultura da celebridade transnacional. No mundo pré-moderno, pensamos nós, as pessoas nasciam, viviam e morriam no mesmo lugar — sem contacto com a maior parte dos outros humanos. Mas não era bem assim, e Giordano Bruno é um grande contra-exemplo. Nascido na pequena aldeia de Noli, perto de Nápoles, viajou por toda a Europa, ensinando em universidades e casas particulares de Paris, de Londres ou de Praga. Em Toulouse, encontrou-se com o médico e filósofo português Francisco Sanches. Giordano Bruno tinha muitas certezas. Francisco Sanches era tão cético — um “pirronista”, como então se dizia — que a sua obra-prima se chamava Que Nada Se Pode Saber.
Giordano achava que tudo se podia saber, e muito se podia memorizar. E por isso se tornou uma celebridade no seu tempo. Reis e príncipes de todos os reinos e principados queriam aprender a memorizar, porque achavam que memória era poder. Alguns acreditavam até que memória era feitiçaria. Um nobre veneziano chamado Giovanni Mocenigo, chamou Giordano Bruno à sua casa para aprender a arte mágica. Um dia, quando se fartou, denunciou Giordano Bruno à Inquisição.
O dia 17 de fevereiro é um dia muito importante, e não só por ter sido o dia em que queimaram Giordano Bruno na fogueira.
Quase setenta e três anos mais tarde, adoeceu em cena o dramaturgo francês Jean-Baptiste Poquelin, mais conhecido por Molière. Por azar estava a encenar — e representar — uma comédia contra os médicos, uma das melhores dele, o Doente Imaginário. O seu sarcasmo era tão profundo que não foi para admirar quando, depois de se sentir mal, nenhum médico quis cuidar dele.
Mas os médicos não eram os únicos inimigos de Molière. Os padres e outros devotos também não gostavam dele, e, ao saber que Molière estava moribundo, prepararam a vingança que lhes escapava desde que contra eles Molière escrevera O Tartufo. Quando a notícia da morte de Molière chegou, moveram os seus esforços para que lhe fosse negada a sepultura em cemitério.
E foi assim que o dramaturgo mais famoso da sua época, que em tempos tinha sido o favorito do Rei-Sol Luís XIV, foi enterrado em solo não-consagrado, como um proscrito. Era um dia chuvoso, 17 de fevereiro de 1673. Dizem que era terça-feira de Carnaval.
Porque decidi escrever sobre hereges e proscritos não sei. Sei que devemos muito a estes dois em particular. E por isso merecem que celebremos a vida neste dia das suas mortes.
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