sexta-feira, 25 de março de 2016

Ser livre é obedecer à lei moral

kant

Somos livres quando obedecemos à lei moral 1. Quando li essa afirmação de Kant, por volta dos 16 anos, fiquei muito espantado. E impressionado. Ser livre é obedecer a uma lei?

Geralmente as pessoas associam a liberdade à ausência de regras ou mesmo à sua desobediência. Daí a surpresa.

O nome dado por Kant à lei moral é quase célebre: imperativo categórico 2. Trata-se de um critério que permite distinguir as ações certas das ações erradas e desse modo descobrir o que devemos e o que não devemos fazer.

Uma das maneiras de formular a lei moral, ou imperativo categórico, é semelhante à célebre regra de ouro: não faças aos outros o que não queres que te façam a ti. Ou seja: as ações certas são aquelas em que as pessoas são respeitadas (na linguagem de Kant: em que as pessoas são consideradas fins em si mesmas) e as ações erradas são aquelas em que as pessoas são usadas como se fossem apenas meios, ou seja, são instrumentalizadas. A lei moral não é, portanto, uma regra de conduta específica, mas um critério, uma espécie de teste mental que, em cada situação, nos indica o que está certo – tal como uma bússola indica o norte. Por exemplo: pedir dinheiro emprestado a um amigo sem ter a intenção de o devolver será certo ou errado? Aplicando o critério descrito é fácil de ver que é errado, pois implica considerar o amigo como se fosse uma coisa, um mero meio de resolver as dificuldades do agente e sem qualquer consideração pelo seu ponto de vista.

Kant considerava esse género de ações erradas mesmo que o agente tivesse um objetivo supostamente bom, pois pensava que os fins não justificam os meios e que, portanto, nunca temos motivos suficientes para usar e manipular as pessoas.

Mas como é que isso se relaciona com a liberdade?

Se, através do teste da lei moral, percebemos que uma ação é correta então devemos mesmo fazê-la. Não para obter qualquer vantagem pessoal (por exemplo, ficar bem visto) mas apenas porque é isso que está certo. Kant achava que as ações só têm valor moral quando fazemos o dever pelo dever, sem nenhum outro motivo.

Se percebo o que está certo mas não o faço, porque vai contra os meus interesses, desejos ou sentimentos, então não sou livre. Sou, pelo contrário, um escravo desses interesses, desejos e sentimentos – a que Kant chamava “inclinações”. Por exemplo, se sei que a ação X é errada mas ainda assim a faço, empurrado por exemplo pelo medo ou pelo ciúme, não sou livre 3. Só sou livre quando faço aquilo que tenho a obrigação moral de fazer. Assim, não basta escolher para ser realmente livre, é preciso escolher bem.

Só sou livre quando faço aquilo que tenho a obrigação moral de fazer… Já não tenho 16 anos, mas continuo a achar esta ideia impressionante.

Para Kant isso não é contraditório. Somos seres racionais e é a razão que nos faz perceber a lei moral. Obedecer à razão, e àquilo que ela ordena, é obedecer a nós próprios e não a algo exterior. Kant pensava que, enquanto seres racionais, cada um de nós é como se fosse co-autor da lei moral. Por isso, se decido não fazer a referida ação X revelo uma vontade autónoma e livre. Autonomia significa, de acordo com a sua etimologia, “dar lei a si próprio”.

Talvez paradoxalmente, Kant considerava que obedecer aos nossos desejos e sentimentos não é obedecermos a nós próprios, pois, apesar de sermos também animais e o nosso corpo ter imensa importância, é a racionalidade que nos define. Para ele, obedecer às “inclinações” era equivalente a obedecer a outra pessoa. Era sinal de heteronomia e não de autonomia.

Uma das muitas críticas que se fazem a Kant é que ele desvalorizou os desejos e os sentimentos e esqueceu que devemos escutar o corpo e não apenas a razão.

Essa crítica é plausível e precisamos certamente de uma maneira de entender as pessoas que não oponha a racionalidade e a afetividade, como Kant fazia. Mas, ainda assim, continua teimosamente a fazer sentido a ideia de que só somos verdadeiramente livres quando conseguimos ter força de vontade para escolher o que está certo. Ou, pelo menos, o que julgamos estar certo.

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1 Kant, Immanuel“, Fundamentação da Metafísica dos Costumes, tradução de Paulo Quintela, Introdução de Pedro Galvão, 2009, Lisboa, Edições 70, pág. 100. A expressão usada é: “vontade livre e vontade submetida a leis morais são uma e a mesma coisa”.

2 Segundo Kant, se existisse um ser racional dotado de uma vontade perfeita ou santa (Deus, por exemplo) a lei moral não lhe surgiria sob a forma de um imperativo ou dever, pois a sua vontade seria sempre determinada pela razão e ele escolheria sempre o bem (se é que isso seria escolher). Mas, para seres comos nós (que temos uma vontade imperfeita que tanto pode ser determinada pela razão como pelos sentimentos e desejos), a lei moral surge como imperativo ou dever. Daí que no nosso caso se possa identificar lei moral e imperativo categórico. Kant, op.cit., pp. XXXVI e 89.

3 Mas sou, ainda assim, responsável, pois, como ser racional conhecedor da lei moral, tinha em aberto a possibilidade de agir de outro modo. Kant, op.cit., pág. LII e nota da pág. 100.

2 comentários:

Anónimo disse...

Claro e didáctico ; gosto bastante, parabéns!

Rafael Gasparini Moreira disse...

Na verdade, para Kant, havia dois conceitos distintos de liberdade, que chamo aqui de "liberdade em sentido empírico" e "liberdade em sentido racional". A primeira é a liberdade de ação irrestrita, a anarquia propriamente dita. A segunda, conforme é de certa forma definida por Kant em "O que significa orientar-se no pensamento?", que se refere à liberdade de pensamento, diz que "liberdade de pensamento significa ainda que a razão não se submete a nenhumas outras leis a não ser àquelas que ela a si mesmo dá.". O jargão popular já tentou no passado diferenciar esses conceitos com a expressão "não confunda liberdade com libertinagem". Libertinagem seria a "liberdade em sentido empírico" e a liberdade a "liberdade em sentido racional".

O exercício da liberdade em sentido racional pressupõe um certo grau de restrição à liberdade empírica, e a liberdade empírica irrestrita (anárquica) de certo modo impede o exercício da liberdade em sentido racional, porque, por exemplo, um grupo mais forte do que eu poderia me impedir de expressar livremente o meu pensamento, por ameaças, coação, etc... Então é necessária uma força que o impeça de fazer isso. O próprio Kant disse isso na sequência: "A consequência que daí se tira é naturalmente esta: se a razão não quer submeter-se à lei, que ela a si própria dá, tem de se curvar sob o jugo das leis que um outro lhe dá; pois, sem lei alguma, nada, nem sequer a maior absurdidade, se pode exercer durante muito tempo."

Creio que a confusão se dá pelo uso da mesma expressão (liberdade) para expressar duas ideias completamente distintas.