terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

Problemas da Filosofia

Problemas da Filosofia, de James Rachels

Tradução de Pedro Galvão

Revisão científica de Aires Almeida

Gradiva, maio de 2009, 337 pp.

James Rachels Problemas da Filosofia

Reli há semanas os dois capítulos de Problemas da Filosofia dedicados ao livre-arbítrio para me ajudar a preparar algumas aulas, mas depois não resisti e reli vários outros capítulos. Entre outros temas, o livro fala também de Deus, da identidade pessoal, da inteligência artificial e do sentido da vida.

Porque é que este livro é tão bom e irresistível?

Como outros livros da coleção Filosofia Aberta, é um livro introdutório de grande qualidade, que alia o rigor filosófico e a simplicidade, sendo suficientemente claro para ser entendido por pessoas que nunca tenham lido nada acerca dos assuntos que aborda. Contudo, é um livro introdutório ainda melhor que os outros.

Problemas da Filosofia está muito bem escrito, mesmo de um ponto de vista literário. James Rachels escreve de maneira envolvente e cria um interesse crescente no leitor – que quer chegar depressa ao final do capítulo para ver se o problema tem solução, à semelhança do leitor de um policial que quer descobrir quem é o criminoso. Poderá uma máquina realmente pensar? Os argumentos a favor da existência de Deus serão ou não mais fortes que os argumentos contrários? Afinal, a ética é ou não objetiva?

Alguns filósofos, mesmo em artigos ou livros introdutórios, discutem os problemas filosóficos de maneira um pouco seca e genérica. Por exemplo, no caso do livre-arbítrio, para discutir se as nossas ações são ou não livres, falam genericamente das leis da natureza e dos acontecimentos passados e depois mergulham rapidamente nas teorias. James Rachels, contudo, além de dar exemplos do dia a dia muito cativantes (veja-se, na pág. 195, o exemplo da amiga cinéfila que, como ele previra, prefere Os Despojos do Dia a McQuade, o Lobo Solitário), apela aos conhecimentos da Biologia, da Psicologia, da Sociologia e de outras ciências e analisa factos da natureza e da sociedade para averiguar se podem ou não determinar as nossas ações. De modo conciso mas esclarecedor, descreve, por exemplo, os estudos com gémeos idênticos, os efeitos do óxido nítrico (um neurotransmissor), a taxa de presidiários dos EUA e algumas experiências clássicas da psicologia social (nomeadamente a célebre experiência de Milgram sobre a obediência).

Rachels tem essa abordagem em todo o livro. Por exemplo, ao discutir se a existência de um Deus bom e omnipotente é compatível com a existência de tanto mal no mundo, em vez de falar genericamente de sofrimento refere concretamente doenças como o Ébola e a epidermólise bolhosa, “uma doença de pele genética que provoca bolhas por todo o corpo, de tal forma que o bebé não pode ser agarrado ou mesmo ficar deitado de costas sem sentir dor” (pág. 58).

Os problemas filosóficos são concetuais e não empíricos, mas isso não significa que alguns dados empíricos não possam contribuir para os esclarecer e, eventualmente, solucionar. Por isso, essa abordagem não é uma exibição gratuita de erudição. James Rachels justifica-a deste modo impressivo:

“Alguns filósofos acreditam que a filosofia é uma investigação ‘pura’ que pode ser desenvolvida à margem das ciências. Não partilho esta ideia. A melhor forma de abordar os problemas da filosofia é usar todos os recursos disponíveis. W. V. Quine observou uma vez que ‘O universo não é a universidade’. A divisão da investigação humana em disciplinas distintas pode ser útil para organizar os departamentos académicos, mas tem pouco interesse quando estamos a tentar descobrir como é o mundo. Neste livro irá encontrar referências à biologia, à psicologia, à história e até às descobertas do Espantoso Randi. Tudo isto faz parte de um único projeto - a tentativa humana de compreender o mundo e o lugar que nele ocupamos.” (pág. 12)

A propósito da ética Rachels diz que em qualquer questão difícil “há muito a dizer a favor de ambos os lados” (pág. 250). Talvez se possa dizer o mesmo de todo e qualquer problema filosófico: há boas ideias em qualquer um dos lados da controvérsia. Além disso, como os problemas filosóficos têm sido discutidos ao longo da história por pessoas muito inteligentes ou mesmo geniais, é fácil ficar impressionado com os argumentos e explicações de qualquer um dos lados. Por isso, são frequentes as introduções à filosofia que se limitam a expor as diferentes perspetivas filosóficas, esquecendo uma questão essencial: quem tem razão?

James Rachels, pelo contrário, não desiste de comparar as teorias e argumentos na tentativa de mostrar quem tem razão, embora não seja simplista na avaliação e pese bem os argumentos de ambos os lados. Vários capítulos têm uma conclusão em que é feito um balanço, uma avaliação da discussão do problema, mas, mesmo nos capítulos em que não há uma conclusão explícita, o autor não deixa de comparar as teorias e de fazer uma avaliação da sua plausibilidade – com imparcialidade, de modo equilibrado e não tendencioso. Claro que outros autores e alguns leitores poderão discordar das suas avaliações e conclusões, mas o facto de as apresentar ajuda o leitor a pensar filosoficamente e a formar as suas próprias ideias.

Esse procedimento crítico inicia-se, com algum simbolismo, logo no capítulo inicial, intitulado “O legado de Sócrates”, em que James Rachels, além de descrever as circunstâncias em que este foi condenado à morte, analisa os argumentos que o levaram a aceitar essa condenação e a preferir a morte ao exílio. Rachels considera esses argumentos fracos. Sócrates é, para muitas pessoas, uma personificação da própria filosofia, mas isso não impede Rachels de o criticar: “nenhum dos argumentos prova que Sócrates tinha de beber a cicuta. Mas isto deixa-nos com uma questão embaraçosa: como pôde Sócrates ter cometido um erro tão desastroso?” (pág. 24) Ao criticar Sócrates, James Rachels não está a menosprezá-lo mas sim a continuar a tradição socrática de discutir livre e imparcialmente ideias (que é, justamente, uma das características mais marcantes da filosofia). No fundo, tanto nesse capítulo como no resto do livro, James Rachels seguiu um conselho que, segundo Platão conta, Sócrates terá dado aos amigos com quem debatia:

“Se querem um conselho, preocupem-se pouco com Sócrates e muito mais com a verdade! Se vos parecer que o que eu digo é verdadeiro, pois dêem-me razão; caso contrário, apresentem-me tudo o que têm a objetar.” 1

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1 Platão, Fédon, 91c, tradução de Maria Teresa Schiappa Azevedo, 5ª edição, Lisboa Editora, 1997, pág. 88.

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