No dia 11 de agosto as Aprendizagens Essenciais de Filosofia (por enquanto apenas para o 10º ano) foram finalmente tornadas públicas. Vale a pena assinalar que hoje, 31 de agosto, as AE de várias disciplinas ainda não foram divulgadas: é o caso da Matemática A, História B, Literatura Portuguesa e Desenho A, entre outras disciplinas. Note-se que nas 236 escolas que vão participar no projeto-piloto da flexibilização curricular as AE são para aplicar nos anos iniciais de cada ciclo e as aulas começam daqui a duas semanas.
Critiquei o facto de o governo ter entregue a definição das AE apenas à Associação de Professores de Filosofia. Contudo, numa declaração conjunta da APF e da Sociedade Portuguesa de Filosofia é dito que, afinal, ambas colaboraram nesse processo. Ainda bem que os professores envolvidos foram mais sensatos que o governo.
Importa dizer, em primeiro lugar, que fizeram um trabalho positivo. As AE são um progresso em relação às “Orientações para efeitos de avaliação sumativa externa das aprendizagens na disciplina de Filosofia” (que já tinham muito mérito) e, principalmente, em relação ao próprio Programa de Filosofia - que é péssimo. Apesar disso, as AE têm algumas falhas e, num aspeto que explicarei depois, são uma oportunidade perdida.
Vou deixar para outra altura a análise das indicações metodológicas e analisar apenas as opções feitas acerca dos conteúdos a lecionar.
Ao ler as AE o primeiro aspeto em que se repara é a sua linguagem clara e a ausência (tal como já sucede nas Orientações) da linguagem vaga e confusa e, pior ainda, tendenciosamente valorativa que caracteriza o Programa. O que não significa que não possa haver melhorias: por exemplo, em “caracterizar a noção de filosofia como uma atividade conceptual crítica” a “noção” não está lá a fazer nada.
Outro aspeto notório é o facto de se assumir o carácter crítico e argumentativo da filosofia e cada capítulo apresentar de modo explícito e direto o problema filosófico que deve ser analisado e discutido. No Programa cada capítulo é uma amálgama confusa de temas, nunca não sendo claro qual é problema filosófico em causa.
Na mesma linha, outra mudança igualmente salutar são as sugestões de “Temas / problemas do mundo contemporâneo”, pois têm carácter filosófico e são assuntos genuinamente importantes, contrariamente ao que sucede com as propostas do Programa. Pedir aos alunos, nesse contexto, um ensaio filosófico é uma coisa que muitos professores já fazem. Assumi-la nas AE é uma boa ideia. Espero que contribua para um ensino da filosofia mais filosófico.
Uma alteração de monta é o fim da opção entre a estética e a filosofia da religião, passando ambos os capítulos a ser lecionados no 11º ano. A necessidade de escolher entre essas duas áreas é uma das infelicidades do Programa que as Orientações não puderam corrigir e, portanto, essa é uma alteração bem vinda.
Igualmente positivo é o desaparecimento da “Articulação entre ética e direito” e o tratamento mais conciso dos conceitos de ação e valor (ainda mais do que nas Orientações, que já dão uma machadada substancial nos exageros do Programa a esse respeito).
As alterações relativas à lógica são grandes e muito significativas. Infelizmente, dessas alterações a única que é inteiramente boa e isenta de senãos é o desaparecimento do capítulo sobre a retórica, que além de filosoficamente irrelevante é um amontoado de tópicos desorganizados e descontextualizados.
Passar a lecionação da lógica do 11º para o 10 ano é uma boa alteração, pois é suposto a lógica fornecer aos alunos instrumentos críticos indispensáveis ao estudo da filosofia. Contudo, envolve um risco: adiar durante demasiado tempo o contacto dos alunos com a discussão dos problemas filosóficos. Como evitar isso?
O fim da opção entre a lógica aristotélica e a lógica proposicional, passando esta última a ser obrigatória, é também muito positivo, já que a lógica aristotélica não consegue dar conta da maior parte da argumentação filosófica e quotidiana, sendo o seu interesse principalmente histórico (o quadrado da oposição, que ajuda a entender a negação de proposições e é útil na argumentação, mantém-se).
Julgo que não existem boas objeções filosóficas ou didáticas a essa alteração. No entanto, ela coloca uma dificuldade prática: alguns professores desconhecem a lógica proposicional e sem receberem formação dificilmente conseguirão lecioná-la. Não sei quantas escolas, das 236 que vão participar no projeto-piloto da flexibilização curricular, têm ensino secundário, mas suponho que sejam muitas e que nelas existam alguns professores que precisam dessa formação. Como as AE só foram divulgadas a 11 de agosto, em plenas férias, não é possível providenciá-la a tempo.
Como é dito na declaração da APF e da SPF, “uma das indicações centrais do ministério da Educação foi a de redução dos conteúdos”. Trata-se de um objetivo muito importante, pois o Programa é excessivamente grande e, apesar das Orientações tornarem exequível a lecionação dos capítulos objeto de exame, falta ainda assim tempo para realizar com os alunos de atividades reflexivas e argumentativas em número suficiente.
Infelizmente, as AE não cumprem esse objetivo: têm conteúdos a mais e, bem vistas as coisas, não vão mais longe que as Orientações na redução de conteúdos.
Em alguns capítulos há mesmo um aumento de conteúdos. Na lógica, a lista de falácias informais aumentou desnecessariamente. Na filosofia política, as Orientações pedem para confrontar a teoria de Rawls com “as críticas a que está sujeita” e a generalidade dos professores costuma apresentar as críticas de Nozick. As AE acrescentam as críticas de Michael Sandel. Apesar de ter Sandel em grande conta e de considerar a sua teoria comunitarista muito interessante, esse acrescento não me parece boa ideia, pois para os alunos perceberem o que está em causa nas críticas é preciso explicar a sua teoria e isso contraria o objetivo da redução de conteúdos. Caso apenas se esboce a teoria compromete-se a compreensão e gasta-se ainda assim algum tempo que devia ser dedicado à discussão e argumentação.
As aulas poupadas com os cortes de conteúdos que referi e com a passagem da estética e da filosofia da religião para o 11º ano serão utilizadas para lecionar a lógica. Continuará portanto a faltar tempo para deixar os alunos discutir ideias, ou seja, filosofar. (Aprofundei um pouco mais esse tópico no texto Um programa de filosofia mais pequeno e mais… filosófico.)
Por isso, as AE, apesar das suas muitas qualidades, não ajudarão os professores que querem fazer mais do que preparar os alunos para o exame e são uma oportunidade perdida. Vão certamente contribuir para uma pequena mudança no ensino da filosofia, mas se tivesse havido coragem de diminuir substancialmente a quantidade de conteúdos poderiam talvez promover uma grande mudança.
Em todas as folhas do documento que contém as AE está escrito “documento de trabalho”. Oxalá seja ainda possível realizar alterações, antes da sua generalização a todas as escolas. Para que no fim desse processo as AE não sejam, afinal, uma oportunidade perdida.
Ao escrever o que escrevi pensei apenas na natureza da filosofia e no modo como seria desejável que o seu ensino fosse. Ignorei propositadamente o contexto político e educativo em que as AE surgiram, pois estou convencido que o projeto da flexibilização curricular vai falhar e ser esquecido, como já aconteceu a outros projetos mais ou menos similares. As modas pedagógicas vão passando, mas a filosofia permanece.
Por último: tenho esperança que as AE relativas ao 11º ano sejam divulgadas antes de 11 de agosto de 2018.