Li ontem, no jornal Público, a notícia de que a presidente da assembleia da república mostrou disponibilidade para ler as propostas saídas da “assembleia popular” que os participantes na manifestação dos indignados iriam realizar. Vivendo nós numa democracia, as pessoas têm o direito de protestar quando não concordam com as medidas tomadas pelo governo e também emitir opiniões, como as de Boaventura Sousa Santos, para quem estes manifestantes “pedem mais democracia, uma democracia real e verdadeira” (ver aqui).
Todavia, depois de ler estas notícias não pude deixar de pensar: mas, afinal, essa “assembleia popular” representa quem? E porque é que opinião das centenas pessoas dessa assembleia ou dos milhares que estiveram na rua valem mais do que as dos milhões de eleitores que votaram nos partidos do governo?
As pessoas participaram na contestação ao governo por razões diferentes: há os que se manifestaram por considerarem socialmente injustas as medidas tomadas e há os que se manifestaram para defender a necessidade de realizar uma nova revolução para substituir o atual regime por uma dita “democracia real e verdadeira”.
A propósito da famosa afirmação de Karl Marx, a exortar à ação revolucionária, escreveu o filósofo Simon Blackburn:
«Marx disse que os filósofos anteriores tinham procurado compreender o mundo, ao passo que o que era preciso era mudá-lo – uma das asserções famosas mais tolas de todos os tempos (e completamente desmentida pela sua própria prática intelectual). Teria sido melhor que Marx tivesse acrescentado que, sem compreender o mundo, pouco saberemos em termos de o mudar – pelo menos para melhor. Rosencranz e Guildenstern admitem não saber tocar gaita- de-foles, mas tentam manipular Hamlet. Quando agimos sem compreensão, o mundo está perfeitamente preparado para dar voz à reação de Hamlet: “Pensais que sou mais fácil de controlar que uma gaita-de-foles?”»*
Assim, independentemente da urgência de corrigir as injustiças sociais, é preciso explicar, analisar criticamente e compreender as ideias políticas daqueles que têm intentos revolucionários. Tal como é preciso ouvir os que, em democracia, pensam de modo diferente e não presumir que o fervor revolucionário se pode substituir à análise racional ou à discussão pública. O que, às vezes, não se passa em Portugal, pois algumas pessoas pressupõem que os ideais de esquerda têm uma certa superioridade moral que as exime de explicar as suas ideias e lhes dá um automático direito à indignação.
A história tem demonstrado, nos diferentes países onde se implementaram as ideologias da esquerda revolucionária, que ideais democráticos, como a igualdade e a liberdade, se eclipsaram muito rapidamente. Por conseguinte, após a ocorrência das revoluções, sociedades que se queriam justas e igualitárias foram substituídas por sociedades onde, parafraseando Orwell (no Triunfo dos porcos) todos eram iguais mas havia uns mais iguais do que outros (os do partido no poder, por exemplo).
Portanto, era desejável que alguns críticos do capitalismo e defensores da necessidade de um novo modelo de democracia – embora tenham até aqui usufruído das benesses do sistema capitalista – explicassem as consequências das ideias alternativas que propõem para resolver a presente crise económica. Convinha também que tivessem em conta a principal lição que a História nos tem ensinado acerca dos regimes económicos não capitalistas: estes levam à supressão das liberdades (política, de expressão, de estilo de vida…). Conhecem algum país que tenha sido uma exceção?
Eu não. Os regimes democráticos, com todas as suas imperfeições, possibilitam aos cidadãos liberdade, discussão pública de ideias e a participação ativa - com os meios legais disponíveis – na contestação ao poder político instituído. Cidadãos mais informados, reivindicativos e exigentes podem levar à melhoria da qualidade da democracia que temos. Esta imperfeita democracia é a melhor que podemos ter, pois é aperfeiçoável. A dita democracia das ruas ou das assembleias populares não seria o seu aperfeiçoamento mas sim o seu fim.
Apesar de algumas injustiças e da incompetência de alguns políticos, eu prefiro as vicissitudes do regime político que temos. Felizmente, como estamos de facto numa democracia, há quem possa defender ideias contrárias às minhas.
*Simon Blackburn, Pense, uma introdução à Filosofia,Edições Gradiva, 1ª edição, Lisboa, 2oo1, pág. 22.