sábado, 30 de maio de 2020

Recursos de Filosofia: o problema do mal


A existência de mal tornará improvável a existência de Deus?

A proposta de trabalho que esta semana eu e a Sara Raposo elaborámos para a Aula Digital da Leya visa a discussão do problema do mal. Inclui um guião com questões e um PowerPoint com breves possibilidades de resposta.

Apesar de no 11º ano as aulas já serem presenciais, a utilização de recursos digitais continua a ser essencial, pois os professores não podem distribuir fotocópias e os manuais do 11º não contemplam a filosofia da religião. Estes recursos podem ser projetados pelo professor durante as aulas ou acedidos pelos próprios alunos através dos seus dispositivos móveis.

Aceda AQUI

(A inscrição é rápida e fácil, caso ainda não esteja inscrito na plataforma.)

Votos de bom trabalho! 

domingo, 24 de maio de 2020

Mulheres na ciência (passado e presente): Marie Curie e Maria de Sousa

 

                       Marie Curie                                                        Maria de Sousa                                      
Em Cidadania e Desenvolvimento - no âmbito de uma DAC entre as disciplinas de Filosofia, Biologia e Física e Química - os alunos do 11º B realizaram vários trabalhos, subordinados ao tema “Mulheres na ciência: passado e presente”.
As alunas do 11º B, Mariana Aguiar e Filipa Silva, são as autoras do trabalho que se segue, finalizado nas duas últimas semanas de aulas em condições diferentes das previstas inicialmente.
Agradeço a ambas as alunas o empenho, a disponibilidade e o interesse manifestado. Muito obrigada!

Aos leitores: se querem descobrir o que terá a teoria de Kuhn a ver com o tema deste trabalho, é só espreitar e descobrirão a resposta

sábado, 23 de maio de 2020

O que é que o dinheiro não deve poder comprar?


«Há algumas coisas que o dinheiro não pode comprar, mas, hoje em dia, são cada vez menos. Atualmente, quase tudo está à venda. Eis alguns exemplos:
Uma cela de prisão mais cómoda: 82 dólares por noite. Em Santa Ana, na Califórnia, e noutras cidades, os delinquentes não violentos podem pagar por melhores instalações: uma cela limpa e sossegada, afastada das ocupadas pelos reclusos não pagantes. (…)
Barrigas de aluguer indianas: 6250 dólares. Os casais ocidentais que procuram barrigas de aluguer recorrem cada vez mais a esses serviços na Índia, onde o procedimento é legal e o preço é um terço inferior ao praticado nos Estados Unidos. (…)
O direito de abater um rinoceronte-negro em vias de extinção: 150 mil dólares. A África do Sul começou a permitir que os proprietários de herdades vendam aos caçadores o direito de matarem um número limitado de rinocerontes, por forma a incentivar os proprietários a criarem e a protegerem essa espécie em vias de extinção. (…)
O direito de emitir uma tonelada métrica de dióxido de carbono para a atmosfera: 13 euros. A União Europeia criou um mercado de emissões de dióxido de carbono que permite às empresas comprarem e venderem o direito de poluírem o ar.
A admissão do seu filho numa universidade prestigiada: montante desconhecido. Embora o preço não seja do domínio público, representantes de algumas das mais prestigiadas universidades relataram ao The Wall Street Journal que aceitam alunos que sendo tudo menos brilhantes e cujos abastados pais estejam dispostos a despender quantias substanciais de dinheiro. (…)
Hoje, a lógica de compra e venda já não se aplica apenas a bens materiais, mas domina cada vez mais todos os aspetos da vida. Está na altura de nos perguntarmos se queremos viver desta forma. (…)
Para lidar com esta situação, não nos basta protestar contra a ganância; precisamos de repensar o papel que os mercados devem desempenhar na nossa sociedade. Necessitamos de um debate público sobre o que significa manter os mercados no seu devido lugar. E, para que isso aconteça, precisamos de refletir sobre os limites morais dos mercados. Precisamos de nos perguntar se há algumas coisas que o dinheiro não deve comprar. (…)
[Nos últimos anos] passámos de uma situação em que tínhamos uma economia de mercado para uma situação em que somos uma sociedade de mercado. (…)
O grande debate ausente da política contemporânea tem que ver com o papel e o alcance dos mercados. Queremos uma economia de mercado ou uma sociedade de mercado? Que papel devem ter os mercados na vida pública e nas relações pessoais? Como podemos decidir que bens devem ser comprados e vendidos e quais devem ser regidos por valores não mercantis? Que domínios da vida o imperativo do dinheiro não deve reger?»

Michael J. Sandel, O que o dinheiro não pode comprar, Editorial Presença, Lisboa, 2015, pp. 13, 14, 16, 17 e 20.

sábado, 16 de maio de 2020

O argumento teleológico de Tomás de Aquino e uma objeção


«Na sua obra mais importante e mais conhecida, Tomás conclui teleologicamente que Deus existe:

Vemos que as coisas sem inteligência, como os corpos naturais, atuam tendo em vista uma finalidade, e isto é evidente a partir do facto de atuarem sempre, ou quase sempre, da mesma maneira, de modo a obter o melhor resultado. Assim, é óbvio que não é fortuitamente, mas antes com desígnio, que atingem as suas finalidades. Ora, o que não tem inteligência não pode direcionar-se a uma finalidade, a menos que seja direcionada por um ser dotado de conhecimento e inteligência, como a flecha é disparada para o alvo pelo arqueiro. Logo, existe um ser inteligente por meio do qual todas as coisas naturais são direcionadas para as suas finalidades; e é a este ser que chamamos Deus. 

(Tomás de Aquino, Suma Teológica, Ia. Q2. A3.)

O raciocínio de Tomás parte da observação de finalidades na natureza, em entidades que não são dotadas de inteligência. As raízes de uma árvore cumprem a finalidade de captar a água de que a árvore precisa, mas, tal como a própria árvore, não têm qualquer inteligência. Uma vez que nenhuma entidade sem inteligência atua com vista a uma finalidade, alguma outra entidade inteligente dirige as raízes da árvore. Essa entidade é Deus. Daí a analogia com a flecha: sem uma inteligência que a direcione para a sua finalidade, que é atingir o alvo, a seta não fará tal coisa, por si mesma, precisamente porque não tem qualquer inteligência.»

Desidério Murcho, A existência de Deus – O essencial, Plátano, 2020, pp. 17-18

(Trata-se de um Ebook, ainda sem edição em papel: 

Há várias objeções ao argumento teleológico. Uma delas alega que, mesmo que admitamos a necessidade de o mundo ter um criador inteligente, isso não implica a sua identificação com o Deus teísta (omnipotente, sumamente bom, etc.) nem sequer monoteísta – pois pode suceder, por exemplo, que tenha vários criadores imperfeitos.

David Hume formulou essa objeção do seguinte modo (não cito diretamente o livro de Hume - Diálogos sobre a Religião Natural -, mas um artigo da revista Crítica que inclui, além de excertos do filósofo, breves explicações).

«Em vez de ser a obra de um único Deus, o mundo pode ser a obra de muitos deuses, todos mais finitos e imperfeitos do que a sua própria obra.

“Mas, mesmo que este mundo fosse uma produção tão perfeita, continuaria a ser duvidoso que se pudesse corretamente atribuir ao artífice todas as perfeições da obra. Se examinarmos um navio, que ideia elevada não formaremos do engenho do carpinteiro que construiu uma máquina tão complicada, útil e bela? E que surpresa não deveremos sentir ao verificarmos que se trata de um estúpido mecânico que imitou outros e copiou uma arte que, durante uma longa sucessão de épocas, após múltiplas tentativas, enganos, correcções, deliberações e controvérsias, foi gradualmente melhorada? Muitos mundos podem ter sido atamancados e destruídos ao longo de uma eternidade, antes que este sistema tenha surgido; muito trabalho perdido; muitas tentativas infrutíferas feitas; e um lento, mas gradual aperfeiçoamento na arte de fazer mundos ter sido levado a cabo durante épocas sem fim”. (Diálogos, Parte V). (…)

Tem de se admitir todas as hipóteses imagináveis para explicar o mundo, desde uma divindade infantil a um deus senil passando por uma divindade inferior e subalterna.

“Por aquilo que se sabe, quando comparado com um padrão superior, este mundo é muito defeituoso e imperfeito; e foi apenas a primeira e grosseira tentativa de uma Deidade infantil, que a seguir o abandonou, envergonhada da sua defeituosa realização; é meramente a obra de uma Deidade inferior e subalterna e constitui o objecto de troça dos seus superiores; é a produção de velhice e de senilidade de uma Deidade aposentada e, desde a sua morte, continua, à aventura, devido ao primeiro impulso e à força activa que dela recebeu” (Diálogos, Parte V)

Álvaro Nunes, “Será que Deus existe?”, Crítica - https://criticanarede.com/anunesseraquedeusexiste.html

(Infelizmente desconheço o autor e a origem da imagem.)

sexta-feira, 15 de maio de 2020

Recursos de Filosofia: objeções a Kant e Stuart Mill


A proposta de trabalho que esta semana eu e a Sara Raposo elaborámos para a Aula Digital da Leya visa a discussão de uma objeção a Kant e de uma objeção a Stuart Mill. Inclui textos, questões e propostas de resolução.

Em função da matéria que estiver a lecionar o professor pode optar por debater uma das objeções ou ambas. Pode também, obviamente, usar os textos com outro enquadramento e finalidade, uma vez que os documentos são editáveis.

Dado que as aulas presenciais do 11º vão ser retomadas na próxima semana foram apenas elaborados materiais para o 10º ano.

Para aceder basta fazer uma rápida inscrição e depois visualizar o menu de recursos na Aula Digital. (A apresentação do menu foi reorganizada e agora é mais fácil encontrar os recursos lá existentes.)

domingo, 10 de maio de 2020

Forma indiciária do problema do mal: um exemplo de sofrimento desnecessário e injustificado


William L. Rowe, no livro “Introdução à Filosofia da Religião”, ao discutir o problema do mal apresenta de exemplos de males alegadamente desnecessários e injustificados, nomeadamente o caso de um corço que durante cinco dias sofre dores terríveis provocadas por queimaduras até finalmente morrer num lugar isolado.

É de salientar que também apresenta e discute diversas maneiras de rejeitar o problema do mal.

«A forma indiciária do problema do mal baseiase em exemplos de sofrimento intenso, em seres humanos ou animais, que aparentemente não servem qualquer propósito benéfico. Desenvolvemos aqui o argumento centrandonos num exemplo de sofrimento animal: um corço que fica horrivelmente queimado durante um incêndio provocado pela descarga de um raio, sofrendo terrivelmente durante cinco dias antes de morrer. Ao contrário dos seres humanos, não se atribui livrearbítrio aos corços, pelo que não podemos imputar o terrível sofrimento do corço a um mau uso do livrearbítrio. Por que permitiria então Deus que isto acontecesse quando, se existe, podia têlo impedido com tanta facilidade? Admitese em geral que somos simplesmente incapazes de imaginar um bem superior cuja realização dependa, sob qualquer perspetiva razoável, de Deus permitir que aquele corço sofra terrivelmente. Tãopouco parece razoável supor que há um mal imenso que Deus seria incapaz de impedir se não permitisse que o corço sofresse durante cinco dias. Suponhase que por «mal sem sentido» entendemos um mal que Deus (se existe) poderia ter impedido sem com isso perder um bem superior ou sem ter de permitir um mal igualmente mau ou pior. Será que o sofrimento do corço é um mal sem sentido? Seguramente que o terrível sofrimento do animal durante esses cinco dias não parece do nosso ponto de vista fazer qualquer sentido. Quanto a isto, o consenso é, ao que parece, quase universal. Pois dada a omnisciência e o poder absoluto de Deus, serlheia extremamente fácil ter impedido o incêndio ou ter impedido que o corço fosse apanhado pelas chamas. Além disso, como vimos, é extraordinariamente difícil imaginar um bem superior cuja realização dependa, sob qualquer perspetiva razoável, de Deus permitir que aquele corço sofra terrivelmente. E é igualmente difícil imaginar um mal equivalente, ou até pior, que Deus se visse forçado a permitir caso impedisse o sofrimento do corço. Parece, portanto, perfeitamente razoável pensar que o sofrimento do corço é um mal sem sentido, um mal que Deus (se existe) podia impedir sem com isso perder um bem superior ou ter de permitir um mal equivalente ou pior.
À luz de tais exemplos de males horríveis, podese formular da seguinte maneira o argumento indiciário:

1. Provavelmente, há males sem sentido (por exemplo, o sofrimento do corço).
2. Se deus existe, não há males sem sentido.
Logo,
3. Provavelmente, Deus não existe.»

William L. Rowe, Introdução à Filosofia da Religião, Verbo, 2011, pp. 123-124.

(Tradução de Vítor Guerreiro e revisão científica de Desidério Murcho.)

Um diálogo, no céu, entre duas cientistas: Maria Mayer e Lise Meitner

A física Maria Goeppert Mayer, vencedora do Nobel de Física de 1963.

A física austríaca, Lise Meitner, e o químico alemão Otto Hahn.
“Ambos trabalharam na fissão nuclear (quebra de um núcleo em dois mais pequenos), mas o mérito da descoberta foi atribuído exclusivamente a Hahn, que ganhou (sozinho) o prémio Nobel da Química em 1944. E isto apesar de, entre 1901 e 1965, Lise Meitner ter sido nomeada 29 vezes para o Nobel da Física e 19 vezes para o Nobel da Química.” Fonte: jornal online “Observador
Em Cidadania e Desenvolvimento - no âmbito de uma DAC entre as disciplinas de Filosofia, Biologia e Física e Química - os alunos do 11º B realizaram vários trabalhos, subordinados ao tema “Mulheres na ciência: passado e presente”.
As alunas do 11º B, Beatriz André e Isabel Costa, são as autoras do trabalho que se segue, finalizado nas duas últimas semanas de aulas em condições diferentes das previstas inicialmente. Assim sendo, foi feita uma adaptação do projeto inicial e foi escrito um diálogo imaginário, que mistura humor e criatividade com informação científica e filosófica.
Agradeço a ambas as alunas o empenho, a disponibilidade e o interesse manifestado. Muito obrigada!

sexta-feira, 8 de maio de 2020

Visita de estudo à Gulbenkian a propósito da Filosofia da arte



O trabalho que se segue foi realizado pela aluna Nicoleta Manoli, a quem agradeço a disponibilidade para partilhar a sua experiência.





No dia 21 de fevereiro de 2020 no período da tarde, a minha turma (11°F) e duas outras turmas do 11º ano (C e E) visitaram a Fundação Calouste Gulbenkian e fizeram visitas guiadas aos dois museus lá existentes, estas inseriram-se no âmbito da disciplina de Filosofia e do estudo do problema da definição de arte: como distinguir as obras de arte de outro tipo de objetos?
Nessa tarde, começamos por visitar uma exposição gratuita: “Downtime / Tempo de Respiração” de Manon de Boer enquanto esperávamos que a nossa visita guiada começasse. Essa exposição foi algo de diferente para mim e todos os meus colegas, pois exigia, tal como o nome indica, um tempo de respiração/uma pausa para absorver e perceber o sentido da mensagem que a artista queria passar através de vídeos.
Em seguida, realizámos uma visita guiada à Coleção Moderna acompanhados por uma guia, bastante interativa, que nos foi fazendo perguntas acerca das obras e explicando depois o que observámos, nomeadamente a mensagem que o artista pretendeu transmitir, as correntes artísticas em que estavam inseridas as obras e o contexto histórico em que foram produzidas, seguindo uma linha cronológica. A ideia era que, ao tentarmos interpretar as obras, desenvolvêssemos um pouco mais o nosso pensamento crítico e criativo e foi muito interessante conhecermos mais sobre artistas mais recentes que não costumamos estudar.
Nesta visita explorámos vários quadros, entre os quais destaco os de Amadeo de Souza-Cardoso, visto que foi um dos artistas de quem a nossa guia mais falou, destacando alguns aspetos das obras analisadas por vezes surpreendentes, como por exemplo: o quadro onde se retratam cães galgos ter sido pintado sobre uma pintura já existente.
No final, tivemos também a possibilidade de ver outras obras de arte pertencentes à coleção. Entre essas obras, algumas delas fizeram-nos pensar “Isto é arte?”, o que, coincidentemente, era o nome da visita orientada e a questão com a qual fomos confrontados pela nossa guia ao contemplar diferentes obras de arte.
Concluindo, gostei imenso de visitar o museu e ter a experiência de ver obras, que nunca tinha visto, da Coleção Moderna. É sempre curioso e diferente vê-las “ao vivo e a cores”, ao contrário do que acontece normalmente aquando do estudo de algumas obras artísticas.
Por fim, acrescento que a obra que mais me surpreendeu foi um quadro, pintado a óleo, de um pedaço de carne que, inicialmente, parecia uma fotografia. Este faz parte da corrente artística do hiper-realismo e foi-nos o último quadro apresentado na visita guiada.

Nicoleta Manoli, 11º F





Diversas versões do argumento cosmológico de Tomás de Aquino

quinta-feira, 7 de maio de 2020

Duas objeções ao argumento cosmológico


Qual é a causa de Deus?

«Se um universo requer um deus para explicar a sua existência, o que explica a existência do próprio Deus? Da mesma maneira, ou Deus existiu desde sempre ou apenas apareceu ou então deve ter tido uma causa. No entanto, é tão implausível pensar que Deus sempre existiu ou que tenha simplesmente surgido, como pensar que também foi assim com o universo. O próprio raciocínio que nos leva a propor um deus como causa do universo deve levar-nos a propor um supradeus como causa de Deus. E, claro, o supradeus também precisa de uma causa, o suprasupradeus e assim infinitamente. Portanto, sejam quais forem as voltas que dermos, o que obtemos no fim é igualmente implausível. É tão implausível um deus incausado como um universo incausado, e é tão incrível uma série infinita de causas como uma série infinita de deuses.»

Limites da conclusão

«[Mesmo que aceitássemos o argumento, este] apenas provaria, no melhor dos casos, que a primeira causa existe, não que essa primeira causa seja Deus. Em vez disso, a primeira causa poderia ter sido o Diabo (um candidato plausível, dada a natureza do universo). E mesmo que o argumento tivesse provado que a primeira causa tinha de ser um deus, não provaria que ele tivesse de ser o seu Deus (se for um crente) ou um deus que encaixasse na imagem comum que os cristãos, judeus ou muçulmanos têm de Deus. Poderia ser qualquer um dos milhares de deuses diferentes em que os seres humanos acreditam ou, talvez, um deus em que os seres humanos nunca tenham pensado. De facto, o argumento da primeira causa abre a possibilidade de que tenha existido um Deus que criou o universo (ou talvez muitos deuses), mas que agora Deus está morto.»

Howard Kahane, “Há boas razões para acreditar que Deus existe?”, Crítica - https://criticanarede.com/hkahanehaboasrazoesparaacreditarq…

Pintura: William Blake, The Ancient of Days.

sábado, 2 de maio de 2020

Morrer de fome


QUARENTENA

Na pior hora da pior estação
do pior ano de todo um povo
um homem saiu do albergue com a mulher
e caminhou- caminharam os dois - para norte.

Ela estava doente com a febre da fome e não o conseguia acompanhar.
Ele levantou-a e colocou-a às costas.
E caminhou assim para oeste, para oeste e para norte,
até ao anoitecer, sob as estrelas geladas.

De manhã, os dois foram encontrados mortos.
De frio. De fome. Das toxinas de toda uma história.
Mas os pés dela apoiavam-se no esterno dele.
O último calor da sua carne foi o último presente para ela.

Que nenhum poema de amor jamais chegue a este limite.
Não há aqui lugar aqui para o impreciso
louvor da elegância e da sensualidade do corpo.
Apenas tempo para este inventário impiedoso:

A sua morte no inverno de 1847.
O que sofreram. E como viveram.
E o que existe entre um homem e uma mulher.
E em que escuridão se pode ver melhor.

Eavan Boland e Dorothea Lange

Eavan Boland foi uma poeta irlandesa: 1944-2020. A tradução é de Jorge de Sousa Braga.

Dorothea Lange foi uma fotógrafa norte-americana, que na década de 30 do século XX fotografou camponeses e outras pessoas pobres para documentar os efeitos da Grande Depressão. É autora de uma das mais célebres fotografias da história: “Mãe Migrante”, de 1936.

sexta-feira, 1 de maio de 2020

Não nos devemos resignar com a injustiça

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Fotografia de Lewis Hine 

Podemos «rejeitar a afirmação de que a ordenação das instituições é sempre deficiente porque a distribuição natural de talentos e as circunstâncias sociais são injustas, estendendo-se estas injustiças, inevitavelmente, às estruturas concebidas pelos homens. Por vezes, esta reflexão surge como uma desculpa para ignorar a injustiça, como se a recusa em aceitar a injustiça fosse da mesma natureza que a impossibilidade em aceitar a morte. A distribuição natural não é justa nem injusta; tal como não é injusto que se nasça numa determinada posição social. Trata-se de simples factos naturais. A forma como as instituições lidam com estes factos é que pode ser justa ou injusta. As sociedades aristocráticas ou de casta são injustas porque fazem desta circunstância a base que determina as classes sociais mais ou menos fechadas e privilegiadas. A estrutura básica destas sociedades incorpora a arbitrariedade que encontramos na natureza. Mas não é necessário que os homens se resignem a tais contingências. O sistema social não é uma ordem imutável, para lá do controlo humano, mas um padrão da ação humana. Na teoria da justiça como equidade os homens, os homens acordam em aproveitar os incidentes da natureza e as circunstâncias sociais apenas quando tal resulta em benefício de todos [de acordo com o princípio da diferença apenas são aceitáveis as desigualdades que redundem em benefício de todos e, principalmente, dos mais desfavorecidos]. Os dois princípios [da justiça] são uma forma equitativa de contrariar a arbitrariedade da sorte e, embora sejam sem dúvida imperfeitas quando analisadas sob outros ângulos, as instituições que satisfazem estes princípios são justas.»

John Rawls, Uma Teoria da Justiça, Editorial Presença, 3ª edição, 2013, Lisboa, pág. 96.

(Tradução de Carlos Pinto Correia.)