Há duas ideias que com frequência são referidas ao falar dos sonhos. A primeira corresponde a uma questão filosófica: se os nossos sonhos podem reproduzir o real em todos os seus detalhes, então como posso eu saber (ou o caro leitor) se a experiência que estou a vivenciar neste preciso momento não passa afinal de um sonho? Mais: como posso eu saber se a vida não é toda ela um sonho?
Alguns filósofos, como por exemplo Descartes nas Meditações Metafísicas, procuraram responder a este problema imaginando certas experiências mentais. Num dado momento da reflexão cartesiana supõe-se que existirá um Génio Maligno que nos engana não só quanto ao conhecimento sensorial que julgamos ter da realidade, como em relação a conhecimentos aparentemente tão certos e objectivos como os da Matemática. A argumentação cartesiana foi alvo de fortes objecções por parte de outros filósofos, algumas delas referidas aqui neste blogue. Mas a questão de saber qual o critério que permite distinguir o sonho da realidade permanece em aberto e foi também abordada em filmes muito conhecidos, como por exemplo o Matrix.
A segunda ideia sobre os sonhos insere-se no domínio da psicanálise e não da filosofia. Segundo a teoria de Freud, os sonhos são manifestações disfarçadas de certos desejos – de natureza sexual – que o indivíduo no estado consciente reprime por não serem socialmente aceitáveis. Durante o sono, como a vigilância exercida pelos mecanismos de censura do Eu se encontra atenuada, esses desejos manifestam-se de forma indirecta (simbólica). Daí que seja necessário distinguir o conteúdo manifesto do sonho – aquilo que a pessoa se lembra de ter sonhado, ser atacada por uma cobra, por exemplo – do conteúdo latente ou oculto, cuja interpretação cabe ao psicanalista. Deste modo, sendo a cobra na linguagem freudiana um símbolo fálico, quem sonha com cobras tem, na verdade, desejos sexuais que se recusa a assumir.
Pode-se defender que Freud tem razão e que as motivações de natureza inconsciente têm um papel muito importante na personalidade e no comportamento dos seres humanos. Ou então, pelo contrário, que a teoria freudiana não tem nada de científico, pois não garante um dos critérios fundamentais da ciência: a objectividade. E, portanto, podemos sonhar em paz, pois nada do que nos vem à cabeça durante o sono revela as perversidades do nosso carácter.
O filme “Sonhos”, do japonês Akira Kurosawa, é constituído por oito contos: histórias com que o realizador, de facto, sonhou. Os vídeos referem-se ao número dois: “O pomar de pêssegos” e ao número cinco: “Corvos”. O filme é constituído por outros, como por exemplo: “O brilho do Sol através da chuva”, “A tempestade de neve”, “O túnel” e “O monte Fuji em vermelho”.
Com ou sem interpretações psicanalíticas, com ou sem reflexões filosóficas (estas mais difíceis de evitar que aquelas), vale a pena ver este filme. Nele são abordados temas como a morte, a guerra, a consciência moral e ambiental, o sentido da vida, entre outros.
Vi-o há aproximadamente vinte anos em Lisboa num cinema que já não existe. Revi-o estas férias e continuo a achá-lo tão belo e perturbador como da primeira vez.
É a existência de obras belas como esta, bem como de coisas como o amor e a amizade – muitas vezes incólumes à passagem do tempo -, que permite dar significado às nossas vidas breves e árduas.