A primeira história de Mafalda foi publicada a 29 de Setembro de 1964. Fez ontem 45 anos. Parabéns!
“As nossas crenças mais justificadas não têm qualquer outra garantia sobre a qual assentar, senão um convite permanente ao mundo inteiro para provar que carecem de fundamento.” John Stuart Mill
quarta-feira, 30 de setembro de 2009
sábado, 26 de setembro de 2009
Defesa do voto e crítica da abstenção
Amanhã há eleições legislativas em Portugal. Em diversas eleições passadas a percentagem de eleitores que se absteve foi elevada. Por exemplo: 35,7% nas últimas eleições legislativas e 63,5% nas últimas eleições para o Parlamento Europeu.
Na minha opinião, as pessoas que valorizam o facto de viverem num país democrático deviam votar sempre e nunca se abster. A existência de eleições livres é uma das principais diferenças entre uma democracia e uma ditadura. As pessoas que votam, além de escolherem quem vai exercer o poder, exprimem simultaneamente o seu apoio à democracia e à existência de eleições livres. Quem se abstém e não vota faz uma escolha que pode ser interpretada como uma rejeição da democracia ou, pelo menos, como indiferença perante o facto de viver numa democracia ou numa ditadura.
Algumas pessoas justificam o facto de se absterem nas eleições com a circunstância de discordarem de todos os candidatos. É perfeitamente possível, e até razoável (atendendo ao que se vê e ouve em muitas campanhas eleitorais), que um eleitor discorde de todos os candidatos. No entanto, a abstenção não é a melhor maneira de exprimir essa discordância. O voto em branco exprime de modo mais claro e inequívoco uma tal discordância, pois, contrariamente à abstenção, o voto em branco não pode ser confundido com a rejeição da democracia ou com a demissão cívica das pessoas que não vão votar porque preferem ir passear. Quem vota em branco está a dizer que recusa votar naquelas candidatos, mas que quer votar e que é favorável à existência de eleições e de democracia.
Tal não significa, porém, que (como sucede nalguns países) o voto deva ser obrigatório. Se existir uma qualquer sanção para quem não for votar, isso diminuirá o significado político do acto de votar. Este deixará de exprimir um apoio do eleitor à existência de eleições e de democracia. Mesmo as pessoas que rejeitam a democracia ou que lhe são indiferentes tenderão a ir votar para evitar a sanção, pelo que esse acto não poderá ser visto como uma escolha inteiramente livre – em que o cidadão, além de escolher quem exercerá o poder, manifesta o seu apoio ao regime democrático em que vive.
Seja quem for o vencedor das eleições de amanhã, seria bom que a percentagem da abstenção fosse baixa e que quase todos os 9,4 milhões de leitores (ver mais detalhes aqui) fossem votar. Se tal sucedesse seria a democracia que ganharia as eleições.
(A respeito deste assunto vale a pena espreitar aqui.)
quinta-feira, 24 de setembro de 2009
Como é que filosofamos?
O cartoon, sem referência de autor, foi retirado deste sítio.
«Como é que filosofamos? É visivelmente apenas a partir do momento em que nos encontramos em diálogo com os filósofos. Isso implica debatermos com eles os problemas (...). Uma coisa é constatar e descrever as opiniões dos filósofos, outra completamente diferente é debater o que eles dizem.»
Martin Heidegger, Qu’est ce que la philosophie?, Gallimard.
sexta-feira, 18 de setembro de 2009
Em Filosofia estudamos “os problemas da vida”?
Ludwig Wittgenstein (1889-1951).
O filósofo Ludwig Wittgenstein escreveu, num livro intitulado Tratado Lógico-filosófico, o seguinte:
“Sentimos que mesmo quando todas as possíveis questões da ciência fossem resolvidas os problemas da vida ficariam ainda por tocar.”(Ludwig Wittgenstein, Tratado Lógico-filosófico, tradução de M.S. Lourenço, Edição Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1987, pág. 141.)
Como é que se pode entender a expressão “problemas da vida”?
Será a afirmação de Wittgenstein verdadeira? Porquê?
quinta-feira, 17 de setembro de 2009
Problemas filosóficos e problemas não filosóficos
Um certo fenómeno pode ser estudado simultaneamente por diferentes disciplinas. A religião, por exemplo, interessa nomeadamente à Sociologia, à Psicologia, à História e à Filosofia. Todavia, isso não significa que estudem a mesma coisa. Os problemas de que se ocupa a Filosofia da Religião são muito diferentes dos problemas de que se ocupam os estudos sociológicos (ver o post Estudo da religião: a parte da Sociologia e a parte da Filosofia), históricos e psicológicos da religião. Contrariamente à Filosofia, nenhuma dessas disciplinas procura determinar se, por exemplo, a afirmação “Deus existe” é verdadeira ou falsa.
Outro exemplo possível é a pena de morte.
«Vamos considerar como as diferentes Ciências Sociais podem abordar o tema polémico da pena de morte. Os historiadores estariam interessados no desenvolvimento [nos EUA] da pena capital do período colonial até ao presente. Os economistas poderiam fazer uma pesquisa para comparar os custos das pessoas encarceradas durante toda a vida com as despesas dos recursos que ocorrem nos casos de pena de morte. Os psicólogos observariam os casos individuais e avaliariam o impacto da pena de morte na família da vítima e na do preso executado. Os cientistas políticos estudariam as diferentes posições assumidas pelos políticos eleitos e as implicações dessas posições nas suas campanhas para a reeleição.
E qual seria a abordagem dos sociólogos? Eles poderiam verificar [entre outros aspectos] como a raça e a etnia afectam o resultado dos casos de pena de morte. De acordo com um estudo publicado em 2003, 80% dos casos de pena de morte nos Estados Unidos envolvem vítimas de cor branca, apesar de apenas 50% de todas as vítimas de assassinato serem brancas. Parece que a raça da vítima influencia a decisão sobre se o réu será condenado à pena capital (...). Assim, o sistema de justiça criminal parece tender a impor penas mais pesadas quando as vítimas são brancas do que quando elas pertencem a uma das minorias.”
Richard T. Schaefer, Sociologia, 6ª edição, McGraw-Hill, São Paulo, 2006, pp. 6-7.
Por seu turno, os filósofos discutem se a pena de morte é justa ou injusta, ou seja, se é certa ou errada em termos morais.
Mas porque é que problemas como “será que Deus existe?” ou “a pena de morte é justa ou injusta” são filosóficos e, por exemplo, a relação entre a raça das vítimas e a aplicação da pena de morte não é um problema filosófico?
quarta-feira, 16 de setembro de 2009
Estudo da religião: a parte da Sociologia e a parte da Filosofia
O 1º e o 2º parágrafos do texto apresentam alguns dos aspectos que, no estudo da religião, interessam à Sociologia. O 3º parágrafo refere alguns dos aspectos que, nesse estudo, interessam à Filosofia.
«Em 2002, o Pew Center, uma empresa de opinião pública (…), perguntou a pessoas de 44 países em que medida a religião era importante para elas. Nos EUA 59 % disseram que a religião desempenhava um papel “muito importante” na sua vida. Esta percentagem é invulgarmente alta. Em Inglaterra, apenas 33 por cento disseram que a religião era importante. Noutros países, as percentagens foram as seguintes: 27% em Itália, 21 % na Alemanha, 12% no Japão e 11 % na França. No entanto, as percentagens relativamente à Bolívia, à Venezuela e ao México foram semelhantes à dos EUA, o que levou os analistas a concluir, de forma pouco generosa, que as atitudes norte-americanas “estão mais próximas das atitudes das pessoas das nações em vias de desenvolvimento do que das pessoas das nações desenvolvidas”.
Entretanto, na sondagem Gallup International Millenium Survey, perguntou-se a pessoas de 60 países se acreditavam em Deus. Apenas 45 % disseram acreditar num Deus “pessoal”, ao passo que outros 30 % disseram acreditar “numa espécie de espírito ou força vital”. A sondagem Gallup mostrou não só que a crença religiosa é mais forte nos mais velhos e nos que têm menos educação, mas também que o índice de crença é mais elevado na África Ocidental, onde predomina o Islão. Aí, 99 % acreditam num Deus pessoal. Nos EUA, 86 % têm essa crença, enquanto os europeus, conclui a sondagem, “são os mais agnósticos”. (…)
No entanto, não queremos apenas saber no que acreditam as pessoas – queremos saber se as crenças religiosas são verdadeiras. (…) Existirá alguma boa razão para acreditar que o mundo foi criado por uma divindade todo-poderosa? (…) Será possível apresentar boas razões que apoiem a crença em Deus?»
James Rachels, Problemas da Filosofia, tradução de Pedro Galvão, Gradiva, Lisboa, 2009, pp.27-29.
Se clicar no nome do livro e na imagem, poderá ler informações úteis sobre o mesmo.
terça-feira, 15 de setembro de 2009
Ajudas online para estudantes e professores de Filosofia
Nos sítios a seguir referidos pode encontrar inúmeros recursos filosóficos: pequenos textos de apoio sobre aspectos importantes do programa de Filosofia, artigos sobre problemas filosóficos, debates sobre problemas filosóficos e pedagógicos, informações sobre novidades editoriais, críticas de livros, vídeos, etc.
Alguns dos textos e artigos são traduções inéditas e de qualidade. Quase todos os recursos conciliam o rigor com a clareza; por isso, podem ser compreendidos mesmo por quem não é especialista e por quem está a iniciar o estudo da Filosofia.
Para os professores são um excelente apoio na preparação das aulas. Para os alunos são um excelente contributo para a sua aprendizagem (quando estudam para os testes, quando efectuam trabalhos de pesquisa e, sobretudo, quando tentam ir além daquilo que o professor e o manual dizem).
É de assinalar que se trata de recursos grátis.
Para professores e alunos:
Dicionário Escolar de Filosofia
Revista Crítica
A Arte de Pensar (site de apoio aos manuais Arte de Pensar -10 e 11º anos)
O Laboratório do Pensamento (de Luís Rodrigues, autor do manual de Filosofia para o 10º ano adoptado na ES Pinheiro e Rosa)
Sobretudo para professores:
A Filosofia no Ensino Secundário
Na imagem: “O pensador”, escultura de Auguste Rodin.
domingo, 13 de setembro de 2009
O que é a Filosofia?
Muitos dos alunos, a frequentar pela primeira vez o 10ºano, perguntam-se:
Que espécie de disciplina é a Filosofia?
No caso das outras disciplinas - bem ou mal, de forma mais ou menos vaga -, têm uma ideia sobre as matérias a estudar. Em relação à Filosofia, não sabem nem o quê nem como terão de estudar.
Há também alguns alunos que formam, à partida uma imagem negativa, baseada em impressões e ideias vagas veiculadas por outras pessoas.
Por isso, aqui fica uma resposta inicial, em linguagem simples, a essa questão. Bem-vindos, então!
«O núcleo da filosofia reside em certas questões que o espírito reflexivo humano acha naturalmente enigmáticas, e a melhor maneira de começar o estudo da filosofia é pensar directamente sobre elas (...).
A filosofia é diferente da ciência (...). Ao contrário da ciência, não assenta em experimentações nem na observação, mas apenas no pensamento. A filosofia faz-se colocando questões, argumentando, ensaiando ideias e pensando em argumentos possíveis contra elas e procurando saber como funcionam realmente os nossos conceitos.
A preocupação fundamental da filosofia consiste em questionarmos e compreendermos ideias muito comuns que usamos todos os dias sem pensarmos nelas. Um historiador pode perguntar o que aconteceu em determinado momento do passado, mas um filósofo perguntará: “O que é o tempo?” (...) Um psicólogo pode investigar como é que as crianças aprendem uma linguagem, mas um filósofo perguntará: “Que faz uma palavra significar qualquer coisa?” [ou “O que é a linguagem?”] Qualquer pessoa pode perguntar se entrar num cinema sem pagar está errado, mas um filósofo perguntará: “O que torna uma acção certa ou errada?”
Não poderíamos viver sem tomarmos como garantias as ideias de tempo, linguagem, certo e errado [entre outras], mas em filosofia investigamos essas mesmas coisas. O objectivo é levar o conhecimento do mundo e de nós um pouco mais longe. É óbvio que não é fácil. Quanto mais básicas são as ideias que tentamos investigar, menos instrumentos temos para nos ajudarem. Não há muitas coisas que possamos assumir como verdadeiras ou tomar como garantidas. Por isso, a filosofia é uma actividade de certo modo vertiginosa, e poucos dos seus resultados ficam por desafiar por muito tempo.»
Thomas Nagel, O que quer dizer tudo isto? – Uma iniciação à filosofia, Gradiva, pág. 8-9.
sábado, 12 de setembro de 2009
Vale a pena estudar – o discurso do presidente dos EUA aos alunos
Clique aqui e leia, no jornal i, o discurso que Barack Obama, presidente dos EUA, fez aos alunos do seu país no início de mais um ano lectivo. Vale a pena ler, pela sensatez, pertinência e clareza das ideias.
Hoje à noite, os líderes dos dois maiores partidos portugueses e principais candidatos ao cargo de primeiro-ministro, farão um debate na televisão. Era bom que, ao falarem da educação, conseguissem revelar pelo menos metade da sensatez e clareza de Obama.
Seria igualmente bom que os alunos portugueses, agora que nos aproximamos do primeiro dia de aulas, prestassem atenção às suas palavras, pois estas não são válidas apenas para os alunos americanos.
Eis um excerto, para confirmar que vale a pena.
“Já fiz muitos discursos sobre educação, e falei muito de responsabilidade. Falei da responsabilidade dos vossos professores de vos motivarem, de vos fazerem ter vontade de aprender. Falei da responsabilidade dos vossos pais de vos manterem no bom caminho, de se assegurarem de que vocês fazem os trabalhos de casa e não passam o dia à frente da televisão ou a jogar com a Xbox. Falei da responsabilidade do vosso governo de estabelecer padrões elevados, de apoiar os professores e os directores das escolas e de melhorar as que não estão a funcionar bem e onde os alunos não têm as oportunidades que merecem.
No entanto, a verdade é que nem os professores e os pais mais dedicados, nem as melhores escolas do mundo são capazes do que quer que seja se vocês não assumirem as vossas responsabilidades. Se vocês não forem às aulas, não prestarem atenção a esses professores, aos vossos avós e aos outros adultos e não trabalharem duramente, como terão de fazer se quiserem ser bem sucedidos.”
quinta-feira, 10 de setembro de 2009
A origem dos problemas filosóficos
Sócrates, um filósofo grego que viveu entre 470 e 399 a. C., foi condenado à morte. Horas antes deste ingerir o veneno vários amigos foram ter com ele à prisão. Estavam tristes e revoltados, pois consideravam Sócrates o homem mais justo e sensato que conheciam e entendiam que as acusações contra ele eram falsas. Platão (discípulo e amigo de Sócrates) descreveu as últimas horas de vida de Sócrates num livro chamado Fédon.
Enquanto conversavam, é referido o problema da alma ser ou não imortal: será que a morte é o fim de tudo ou, pelo contrário, depois dela existe uma outra vida? Os amigos de Sócrates insistem para saber o que pensa ele sobre isso.
Sócrates aceita examinar o problema e diz: "...talvez nada seja tão apropriado para aquele que vai partir para o Além como reflectir e discorrer sobre o significado desta viagem e o que imaginamos que seja". (Platão, Fédon, 5ª edição, Lisboa Editora, 1997, pág. 45.)
Sócrates, tal como outros filósofos, foi algumas vezes acusado de andar com a cabeça nas nuvens e de se interessar por assuntos inúteis e desligados da vida. Assim, ao dizer que, uma vez que vai morrer, reflectir acerca da morte e do sentido da vida é “apropriado” está a dizer que esse assunto não é exterior à vida humana.
Ora, tal como Sócrates, nós também somos mortais. Também vamos morrer um dia. Por isso, faz sentido – é “apropriado” – que reflictamos acerca da morte e do significado da vida. Para nós, a morte não é um assunto inútil e desligado da vida. É um assunto que se impõe a partir da nossa experiência.
Esse raciocínio pode estender-se a outros problemas filosóficos. Os problemas filosóficos são problemas que se impõem a partir da nossa experiência e não assuntos demasiado abstractos, inúteis e desligados da vida. Por isso, é apropriado reflectirmos acerca deles.
Eis alguns exemplos.
Temos amigos, por isso é apropriado reflectir acerca da amizade.
Queremos ser felizes, por isso é apropriado reflectir acerca da felicidade.
Dizemos muitas vezes que certas coisas são belas e outras feias, por isso é apropriado reflectir acerca da beleza.
Argumentamos, por isso é apropriado reflectir acerca dos argumentos e daquilo que os torna correctos ou incorrectos.
Utilizamos diariamente palavras como “verdadeiro”, “falso”, “justo” e “injusto”, por isso é apropriado reflectir acerca da verdade e da justiça.
Etc.
Sendo assim, estudar filosofia e reflectir acerca dos problemas filosóficos não é perder tempo com assuntos demasiado abstractos, inúteis e desligados da vida, mas sim tentar esclarecer problemas que, pelo contrário, fazem parte da nossa vida. Ao estudar filosofia e ao reflectirmos sobre esses problemas tornamo-nos conscientes de coisas que, sem sabermos, já existiam na nossa vida.
À entrada do templo de Delfos, na Grécia, estava escrito um conselho que Sócrates considerava fundamental: “Conhece-te a ti mesmo”. Filosofar é uma forma de o pôr em prática.
*-*-*-*
No Dúvida Metódica existem vários posts com a etiqueta “Sócrates”, dos quais o mais útil para alunos do 10º ano é este: Conselho de Sócrates: pensem bem antes de me darem razão.
Na imagem: quadro de Jacques Louis David - "A morte de Sócrates", de 1787.
quarta-feira, 9 de setembro de 2009
O que não se deve perguntar num teste de diagnóstico
Cartoon de Randy Glasbergen, retirado do blogue Today’s Cartoon.
A razão pela qual esta pergunta não deve ser feita num teste de Filosofia, nomeadamente no teste de diagnóstico, não é apenas o facto de incidir num assunto matemático e não filosófico.
terça-feira, 8 de setembro de 2009
Pseudoprofundidade: como não ser um filósofo
Este texto de Stephen Law insere-se num capítulo do seu livro chamado “Ferramentas da Filosofia” e apresenta um exemplo de uma prática intelectual fraudulenta, mas muito comum: apresentar ideias triviais de um modo vago e obscuro para parecer que são profundas e intelectualmente valiosas. A ideia é que o treino crítico e argumentativo proporcionado pelo estudo da Filosofia pode ser uma arma contra esse género de aldrabices.
«Por todo o lado, multidões veneram especialistas de marketing, treinadores pessoais, místicos, líderes religiosos e outros pretensos gurus, à espera de uma revelação profunda. Como é que esses indivíduos iluminados obtêm a sua sabedoria? Infelizmente, em alguns casos o público é enganado por uma pseudoprofundidade.
A arte de parecer profundo é bastante fácil de dominar. Também você poderá fazer declarações com aspecto de profundas e sérias se seguir algumas regras básicas. Primeiro, tente declarar o incrivelmente óbvio. Mas faça-o m-u-i-to d-e-v-a-g-a-r, acenando com ar de entendido. Isso resultará especialmente bem se a sua observação tiver a ver com um dos grandes temas da vida: o amor, a morte e o dinheiro. Eis alguns exemplos: “A morte toca a todos”; “Todos queremos ser amados”; “O dinheiro usa-se para comprar coisas”. Experimente você. Se declarar o óbvio com seriedade suficiente, seguido de uma pausa sugestiva, talvez em breve veja os outros acenar em sinal de concordância e murmurar: “Isso é bem verdade”.
Agora que já fez o aquecimento passemos a outra técnica. Algumas palavras grandes e difíceis de perceber podem reforçar a ilusão de profundidade. Só é preciso um pouco de imaginação. Para começar, tente inventar alguns termos com significado semelhante a palavras familiares, mas que delas difiram de modo subtil e não totalmente claro. Por exemplo, não diga que as pessoas são alegres ou tristes, diga que têm “orientações comportamentais positivas ou negativas”, o que é muito mais impressionante. (…)
Além disso, quer seja um guru dos negócios, um líder religioso ou um místico, é sempre benéfico falar de “energias” e “equilíbrios”. Dá a impressão de que você descobriu um algum poder ou mecanismo profundo que possivelmente pode ser dominado e usado pelos outros. Assim será muito mais fácil convencer as pessoas de que, se não acreditarem nos seus conselhos, sairão a perder.
Infelizmente, alguns líderes religiosos, gurus de negócios e místicos usam estas e outras técnicas para gerar a ilusão de que conhecem verdades profundas. Como pode ver, é muito fácil gerar as suas próprias pseudoprofundidades. De certeza que [o caro leitor] ficará menos impressionado da próxima vez que os encontrar.»
Stephen Law, Guias Essenciais – Filosofia, Civilização Editora, Porto, 2009, 214-215.
O cartoon é a autoria de John Chase e foi tirado daqui.
segunda-feira, 7 de setembro de 2009
O tempo e o uso do tempo
Fotografia de Gérard Castello-Lopes.
Associo, inevitavelmente, o início do ano lectivo às seguintes ideias: “gestão do tempo”, “falta de tempo” (para realizar actividades que considero fundamentais: preparar aulas e ler livros) e “perda de tempo” (com tarefas burocráticas inúteis, por sinal inúmeras, que fazem parte do quotidiano de um professor).
Todos os anos, reflectindo sobre a experiência dos anos lectivos anteriores, prometo a mim mesma: é desta vez que uma maior capacidade de organização me permitirá ganhar tempo para o que é importante. Esta expectativa em relação ao futuro, embora contrariada pela memória dos factos passados, renasce em cada ano lectivo.
Na execução dos preparativos - planificações, cronogramas e grelhas - para alcançar a tão desejada eficácia na gestão temporal, ocorreu-me a passagem das Confissões (livro XI), onde o filósofo cristão Santo Agostinho (354-430) diz o seguinte:
“Que é, pois, o tempo? Quem poderá explicá-lo clara e brevemente? Quem o poderá apreender, mesmo só com o pensamento, para depois nos traduzir por palavras o seu conceito? E que assunto mais familiar e mais batido nas nossas conversas do que o tempo? Quando dele falamos, compreendemos o que dizemos. Compreendemos também o que nos dizem quando dele nos falam. O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém mo perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei.”
A evidência deste conceito, aparentemente familiar, esvai-se quando temos de o explicar.
Quando pensamos na passagem do tempo, percepcionamo-lo como um fluxo, em que se distingue o passado, o presente e o futuro. Porém, Santo Agostinho considera que “É impróprio afirmar: os tempos são três, pretérito, presente e futuro. Mas talvez fosse próprio dizer: presente das coisas passadas, presente das presentes e presente das futuras. Existem, pois estes três tempos na minha mente que não vejo em outra parte: lembrança presente das coisas passadas, visão presente das coisas presentes e esperança presente das coisas futuras.”
Deste modo, o passado depende das imagens mentais – seleccionadas e guardadas na memória - que o sujeito consegue evocar no presente e o futuro consiste em antecipar, no presente, imagens das coisas que ainda não existem. Daí que, Santo Agostinho afirme “o passado já não existe e o futuro ainda não veio”. Portanto, existe apenas o presente.
Todavia, à medida que cada momento (único e irrepetível) do presente flui, torna-se passado e pode apenas ser lembrado. Por exemplo: quando eu acabo de dizer a palavra “Filosofia”, o momento em que comecei a dizê-la já pertence ao passado.
A reflexão sobre o modo como apreendemos o tempo e a natureza deste – que constitui, desde os antigos gregos, um problema filosófico importante e complexo - poderá ter algumas consequências práticas na forma como gastamos o nosso tempo no dia-a-dia?
Vai iniciar-se mais um ano lectivo, durante o qual tanto alunos como professores vão investir muito do seu tempo na árdua tarefa de aprender e ensinar. Ter consciência que cada um dos instantes presentes da nossa vida é irrecuperável pode, talvez, ajudar-nos a vivê-los de modo que valha a pena.
As citações foram retiradas do livro de Santo Agostinho, Confissões, Livraria Apostolado da Imprensa, Porto, 1984, 11ª edição, pp. 303, 304 e 309.
quinta-feira, 3 de setembro de 2009
Livros de Filosofia para alunos do Ensino Secundário – 1: “Que Quer Dizer Tudo Isto?”
QUE QUER DIZER TUDO ISTO? Uma iniciação à filosofia, de Thomas Nagel, editado pela Gradiva, é uma excelente introdução à filosofia. Trata-se de um livro pequeno, constituído por 9 capítulos independentes, cada um deles contendo um breve ensaio sobre um problema filosófico diferente. Por exemplo: “Como sabemos seja o que for?”, “Livre-arbítrio”, “Certo e errado”, “O sentido da vida”, etc.
Thomas Nagel escreve de modo muito claro e sem pressupor conhecimentos prévios do leitor, pelo que pode ser compreendido por pessoas que nunca estudaram filosofia. Em cada um dos ensaios, Nagel formula com brevidade, embora de modo rigoroso, o problema em causa, e depois analisa várias respostas possíveis, discutindo os seus pontos fortes e fracos e comparando argumentos e contra-argumentos. Ao escrever dirige-se directamente ao leitor, como se estivesse a debater o assunto com ele. Ou seja: procura que o leitor ao lê-lo comece a filosofar.
Vejamos um excerto do capítulo “Outras mentes”:
“Que sabes realmente sobre aquilo que se passa na mente de qualquer outra pessoa? É claro que só observas os corpos de outras criaturas, incluindo os das pessoas. Observas aquilo que fazem, escutas aquilo que dizem e os outros sons que produzem, vês como respondem ao ambiente que as rodeia – quais as coisas que as atraem e quais as que lhe repugnam, aquilo que comem, e assim sucessivamente. Também podes abrir outras criaturas, observar o interior dos seus corpos e comparar mesmo a sua anatomia com a tua.
Mas nada disto te dará um acesso directo às suas experiências, pensamentos e sentimentos. As únicas experiências que podes realmente ter são as tuas próprias: se acreditas em alguma coisa acerca da vida mental de outras pessoas, só fazes com base na observação da sua constituição física e dos seus comportamentos.
Tomemos um exemplo simples: quando comes gelado de chocolate com um amigo, como sabes que o teu gelado e o do teu amigo têm o mesmo sabor para ele e para ti? Podes provar o gelado dele, mas o facto de ter o mesmo sabor que o teu apenas quer dizer que para ti o sabor é o mesmo: não tiveste nenhuma experiência do sabor que o gelado tem para ele. (…)
A mesma questão pode ser colocada relativamente a outros tipos de experiências. Como sabes que o teu amigo não vê as coisas vermelhas tal como tu vês as amarelas? É claro que, se lhe perguntares qual é a cor de uma boca-de-incêndio, te responderá que é vermelha, como o sangue, e não amarela, como um dente-de-leão, mas isso acontece porque ele, tal como tu, usa a palavra vermelho para a cor que vê nas bocas-de-incêndio e no sangue, seja qual for essa cor. Talvez seja a cor a que chamas azul, até mesmo uma cor que nunca viste e que nem sequer podes imaginar. (…)
Se continuarmos a seguir este caminho, seremos finalmente conduzidos ao mais radical dos cepticismos acerca das outras mentes. Como sabes que o teu amigo é consciente? Como sabes que há outras mentes para além da tua?
O único exemplo que já observaste de uma correlação entre mente, comportamento, anatomia e condições físicas é o teu. Mesmo que as outras pessoas e animais não tivessem quaisquer experiências, nem vida mental interna de qualquer tipo, mas fossem apenas máquinas biológicas elaboradas, teriam para ti precisamente a mesma aparência. Portanto, como sabes que não são assim de facto? Como sabes que os seres que te rodeiam não passam de robots sem mente?”
Thomas Nagel, O que quer dizer tudo isto? - Uma iniciação à Filosofia, Gradiva, Lisboa, 1995, pp. 22-26.
(Se clicar no nome do livro poderá obter mais informações úteis acerca dele.)
Qual é a pena justa para os autores de um massacre?
“Um grupo de uma dezena de homens encapuzados tomou de assalto ontem à noite uma clínica de reabilitação de toxicodependentes no México, alinhando 17 pessoas que ali estavam internadas antes de as abaterem à queima-roupa.” Leia mais aqui.
Se tivessem efectuado esse massacre em Portugal a pena máxima a que esses homens poderiam ser condenados seria 25 anos de prisão. Todavia, há países democráticos onde as penas de prisão são bastante maiores.
25 anos de prisão será um castigo justo para um crime tão grave? Deveriam as penas de prisão em Portugal ser maiores?
Gostaria de ver os políticos portugueses discutir esse assunto na campanha eleitoral.
Uma outra questão filosófica que se pode pôr (mas não na campanha eleitoral, pois o assunto em Portugal não tem dimensão política) é se crimes tão graves justificam ou não a pena de morte.
No Dúvida Metódica encontra, na etiqueta “Castigo”, alguns posts sobre o problema da pena de morte, bem como este sobre a duração das penas: 150 fraudes ou 150 assassínios: em Portugal, Madoff não poderia ser condenado a mais de 25 anos de prisão, este sobre a natureza e a função do castigo: Castigar porquê?
quarta-feira, 2 de setembro de 2009
Beleza e tristeza
“Tomaso Albinoni foi um dos maiores compositores do barroco italiano, mas o chamado "Adagio de Albinoni" não foi composto por ele. O verdadeiro autor desta belíssima peça foi um musicólogo italiano do séc XX chamado Remo Giazotto, que a compôs em 1945, com base num andamento de uma sonata de Albinoni.” Informação tirada daqui.
Há dias vi na rua um antigo aluno que uma vez me disse detestar música clássica, excepto o "Adagio de Albinoni", por ser “tão, tão triste”. Ia rua abaixo gesticulando e falando sozinho. De vez em quando parava e, para embaraço dos outros transeuntes, levantava a voz: “Hipócrita… és uma hipócrita! Andaste este tempo todo a brincar com os meus sentimentos!”
Não creio que seja necessário estar triste, e muito menos de cabeça perdida, para gostar desta música, apesar da sua melancólica lentidão - que, de resto, não constitui por si só uma qualidade estética (contrariamente ao que é sugerido pelo tom elogioso da expressão “tão, tão triste”).
(Já agora: a música vale por si e dispensaria qualquer acompanhamento visual, mas o vídeo tem interesse e merece ser visto.)