Imagine que se chama Humphrey van Weyden e que numa viagem de barco cai borda fora. Após horas a flutuar na água fria, é recolhido por um navio que está a iniciar a temporada da caça à foca. O capitão desse navio é um homem violento e impiedoso que recusa ir pô-lo em Terra (apesar disso significar apenas um atraso de poucas horas numa viagem de muitos meses). Dá-lhe a escolher entre regressar à água fria do mar e o trabalho como criado de bordo. Como o caro leitor é uma pessoa rica, que nunca lavou um prato nem sabe fazer sopa, tem de aprender a efectuar inúmeras tarefas práticas. Enquanto faz essa dura aprendizagem descobre que o capitão, conhecido como Lobo Larsen, é um homem muito inteligente. É um autodidacta que lê avidamente obras literárias, científicas e filosóficas. Lobo Larsen é capaz de questionar todas as crenças, por muito comuns que sejam, e de lançar dúvidas pertinentes quanto à sua justificação. Ou seja: Lobo Larsen é um filósofo, apesar de ser capaz de espancar um marinheiro por causa de uma ninharia.
No final da aventura Humphrey van Weyden ganhará, além da mulher dos seus sonhos, algo que por vezes a filosofia também permite: um melhor conhecimento de si próprio. Jack London escreve tão bem que o caro leitor, se ler o “Lobo do Mar”, talvez ganhe o mesmo.
Eis um excerto:
“- No menor número possível de palavras – começou ele – Spencer põe a questão mais ou menos assim: primeiro, o homem deve agir em seu próprio benefício… proceder dessa maneira é ser-se bom e moral; a seguir, deve agir em benefício dos filhos; e, em terceiro lugar, em benefício da sua raça.
- E a conduta mais elevada, melhor e mais certa interrompi – é aquela que beneficia ao mesmo tempo o homem, os seus filhos e a sua raça.
- Não perfilho essas ideias – replicou. – Não as acho necessárias nem sensatas. Suprimo a raça e os filhos. Não sacrificaria nada por eles. Não passa de sentimentalismo, pelo menos para aqueles que não acreditam na vida eterna. Com a perspectiva da imortalidade, o altruísmo tornar-se-ia uma operação compensadora. (…) Mas sem nada de eterno diante de mim, a não ser a morte, apenas com um curto espaço de tempo para que este fermento, que se chama vida, rasteje e se contorça… Ora, será imoral praticar qualquer acto que constitua um sacrifício para mim. Qualquer sacrifício que me faça perder um único movimento, uma única vibração, é rematada loucura; mais: representa um acto prejudicial a mim próprio, um acto cruel. (…)
- Então o senhor é um individualista, um materialista e, consequentemente, um hedonista.
- Palavras pomposas! – disse ele sorrindo. – Que é um hedonista?”Este excerto foi retirado da edição do “Lobo do Mar” da Livraria Civilização de 1988, pág. 63. Essa edição parece estar esgotada. A acreditar no Google e nos funcionários de várias livrarias, a única tradução em língua portuguesa actualmente disponível é da editora brasileira Martin Claret.
Ocorreu-me escrever este post depois de ler, no blogue da revista Crítica, um texto - intitulado "Pensamento selvagem" - de Desidério Murcho acerca de outros dois livros de Jack London: “O Apelo da Selva” (The Call of the Wild) e “Canino Branco” (White Fang). Vale a pena ler.