«Imagine-se que amanhã chegam
três pacientes em estado grave a um hospital com recursos escassos: um rapaz de
15 anos com diabetes, uma mãe de 25 anos sem historial de doenças e um avô com
80 anos. Por causa do novo coronavírus, eles estão a lutar pela vida e só nos
resta um ventilador. A quem o devemos administrar? Qual é a acção correcta?
Este não é um cenário meramente ficcional de uma aula teórica de ética; é algo
que já está a acontecer em Itália, Espanha e, em breve, é provável suceder em
Portugal.
Como possível resposta para esse
dilema ético, há duas teorias éticas rivais: o consequencialismo das regras e a
deontologia. Essas duas teorias aceitam que uma acção é moralmente correcta se,
e só se, não infringir as regras morais correctas. Onde há desacordo é na
concepção e fundamentação do que são “regras morais correctas”. Para o
consequencialista das regras, tudo o que importa para determinar a correcção
moral de uma determinada regra são as suas consequências, ao passo que, para o
deontologista, há regras morais que não podemos quebrar mesmo que tenham as
melhores consequências.
Por um lado, de acordo com o
consequencialismo das regras, com raízes em Stuart Mill, as “regras morais
correctas” são aquelas que, a serem adoptadas por todas ou quase todas as
pessoas, mais promovem o bem de uma forma imparcial no máximo grau possível.
Assim, devemos seguir aquelas regras que têm as melhores consequências. Para
sabermos se uma regra moral é correcta, devemos imaginar como seria o mundo se
todos ou quase todos a aceitassem. Se descobrirmos que a aceitação geral de uma
regra seria prejudicial para a promoção do bem geral, teremos de considerá-la
incorrecta. Mas se entendermos que a sua aceitação geral teria um impacto muito
positivo no bem geral, então poderemos considerá-la correcta.
Por outro lado, de acordo com o
deontologismo, com raízes em Kant, as “regras morais correctas” são (1) aquelas
que podemos querer que sejam adoptadas universalmente e (2) aquelas que nos
levam a tratar as pessoas como fins e não como meros meios. A ideia da cláusula
(1) não consiste em ver se teria boas ou más consequências que todos agissem de
acordo com uma determinada regra. Consiste, antes, em mostrar se é ou não
possível todos agirem segundo uma tal regra. Já a cláusula (2) salienta que,
seguindo uma regra moral correcta, nunca poderemos manipular as pessoas, ou
instrumentalizá-las para alcançar os nossos objectivos.
Seguindo essas teorias éticas,
que regra devemos adoptar para solucionar o dilema ético inicial? A quem
devemos administrar o nosso único ventilador? Em Itália adoptou-se a seguinte
regra para resolver esses casos: dar prioridade àqueles doentes com maior
probabilidade de sucesso e esperança de vida. Mas será essa uma regra moral
correcta, de acordo com as teorias acima descritas?
Podemos dizer que sim. Pois, por
um lado, seguindo a ética consequencialista das regras, se violarmos essa regra
e adoptarmos uma regra alternativa em que aplicamos o nosso único ventilador ao
doente que tem menos probabilidade de recuperar, gera-se um estado de coisas
que tem piores consequências: nessa situação é provável que todos morram. Por
outro lado, seguindo a ética deontológica, pode-se argumentar que naquela
situação de recursos escassos é possível todos agirem de acordo com a regra
adoptada pela Itália e, além disso, será implausível defender que, ao
adoptar-se uma tal regra, estamos a “instrumentalizar” as pessoas com menos
probabilidade de sucesso de recuperação para alcançar os nossos objectivos.
Simplesmente, dada a situação ilustrada pelo nosso dilema inicial, seria
impossível dar a mesma assistência médica aos três doentes. Portanto, as duas
principais tradições rivais da ética acabam por concordar nesta situação
trágica.»
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