“Voltei para casa e tentei aferrar-me ao livro. Quando começo a escrever, verifico que há sempre uma personagem que, obstinadamente, se não torna viva. Nada tem de psicologicamente falso, mas não se mexe, precisa de ser empurrada, é necessário arranjar-lhe um vocabulário próprio, toda a minha técnica, em anos de trabalho, há que empregá-la em conseguir que essa personagem pareça viva ao leitor. Às vezes, colho uma satisfação desconsolada, quando um crítico ma louva como a mais bem desenhada de todas as personagens da obra: se não tiver sido desenhada, por certo foi puxada pelos cabelos. Uma personagem destas pesa-me no espírito, sempre que eu me disponho ao trabalho, como uma refeição mal digerida pesa no estômago, e rouba-me, em qualquer cena em que toma parte, o prazer da criação. Nunca pratica um ato inesperado, nunca me surpreende, nunca trata de si. As outras personagens ajudam todas; aquela só atrapalha.
E, todavia, não se pode passar sem ela. Não me custa imaginar um Deus que, às vezes, a respeito de alguns de nós, sinta o mesmo. Os santos, supor-se-ia, em certo sentido criam-se a si próprios. Vivem por si. São capazes de um gesto ou de um dito surpreendente. Estão fora do enredo, não são por ele condicionados. Nós, porém, precisamos de ser empurrados. (…) Estamos inextrincavelmente ligados ao enredo, e Deus cansadamente nos força, aqui e além, segundo a intenção que é a sua: personagens sem poesia, sem livre-arbítrio, cuja única importância é que, algures, alguma vez, auxiliamos à composição de certa cena em que uma personagem viva se move e fala, e assim fornecemos talvez aos santos uma oportunidade de exercerem o livre-arbítrio deles.”
Graham Greene, O Fim da Aventura, tradução de Jorge de Sena, Edições Asa, 2002, pp. 256-257.
Sem comentários:
Enviar um comentário