quarta-feira, 28 de abril de 2010

O que é a democracia?

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Péricles

«Podemos sentir ou não que há justificação para o estado; mas o facto é que ele existe. E, da perspectiva da nossa situação histórica actual, é muito difícil ver como isto poderá alguma vez ser alterado. Todas as pessoas, por conseguinte - mesmo o anarquista filosófico - têm interesse em saber que tipo de estado e de governo deveríamos ter. Como deveria ser tal governo? Quem deveria governar? Um pressuposto comum é que apenas a democracia é completamente justificável. Tudo o mais - tirania, aristocracia, monarquia absoluta está condenado ao fracasso. Mas o que é uma democracia? Será assim tão atraente?

A democracia, costuma dizer-se, é o governo “do povo, pelo povo e para o povo”. Governo para o povo quer dizer que o governo existe em proveito dos seus cidadãos, não para benefício dos governantes. Os governos democráticos governam “no interesse dos governados”, para utilizar as palavras de Bentham.”

Haverá algo que possamos acrescentar em defesa do tipo de sistema democrático que temos? Talvez o melhor a dizer seja isto: no mundo contemporâneo, temos de aceitar que não conseguimos sobreviver sem estruturas de autoridade coerciva. Mas, se temos tais estruturas, precisamos de pessoas que ocupem os seus lugares no seu seio - por outras palavras, governantes. (…) Só aceitaremos que os indivíduos têm direito de governar se tiverem sido nomeados pelas pessoas e puderem ser destituídos pelas pessoas. Ou seja, só a democracia nos permite dar uma resposta aceitável à questão: “por que devem estas pessoas governar?” ou “o que torna legítimo o seu governo?”. Através de meios democráticos podemos, claro está, exercer igualmente um controlo, até certo ponto, sobre a conduta dos governantes. Talvez isto seja o melhor que podemos esperar, tanto em termos de estrutura política como enquanto defesa derradeira da democracia moderna.»

Jonathan Wolff, Introdução à filosofia política, Edições Gradiva, pp. 95 e 152.

Quais são as críticas que um defensor do anarquismo poderá fazer ao regime democrático?

(Sobre este assunto pode ver um texto aqui e aqui.)

Anarquismo: a vida social é possível sem o estado

Em sociedade admitimos como legítima a imposição de certas restrições e, por vezes, obedecemos a regras ou leis com as quais não concordamos. Fazemos isso porque esperamos em troca que certos direitos nos sejam garantidos pelos governantes, por exemplo: a justiça, a privacidade, a liberdade de expressão e assim por diante.

Contudo, não será a necessidade de respeitar a autoridade do estado uma falsa crença que nos foi incutida para justificar a obediência?

Muitos defensores do anarquismo pensam que sim.

O texto seguinte apresenta algumas das ideias filosóficas em que se basearam os pensadores anarquistas para defender um modelo alternativo de organização social, onde se considera que o exercício da autoridade política do governo não é justificável do ponto de vista racional.

« (…) Peter Kropotkin, anarquista russo (…) conseguiu reunir provas impressionantes de cooperação no reino animal e outros anarquistas afirmaram - sem dúvida correctamente - que há exemplos infindáveis de cooperação não coagida entre seres humanos. Muitos filósofos e estudiosos das ciências sociais admitiram que mesmo agentes muitíssimo egoístas tenderão a desenvolver padrões de comportamento cooperativo, quanto mais não seja por razões meramente egoístas. No longo prazo, a cooperação é melhor para cada um de nós. Se o estado de guerra é prejudicial a todos, então as criaturas racionais e providas de interesse próprio acabarão por aprender a cooperar.

Mas, como observaria Hobbes de imediato, por muitas provas que tenhamos da existência de cooperação, e por mais racional que esta seja, há igualmente inúmeras provas da existência de competição e de exploração, e também isto parece muitas vezes racional. E, como a maçã podre, uma pequena medida de comportamento anti-social consegue transmitir os seus efeitos maléficos a tudo o que toca. O medo e a suspeição conseguirão corroer e desgastar grande parte da cooperação espontânea desenvolvida.

(…) Os anarquistas afirmam que nós propomos o governo como remédio para o comportamento anti-social, mas, em geral, os governos são precisamente a sua causa. Ainda assim a ideia de que o estado está na origem de todos os tipos de conflito entre os seres humanos parece inaceitavelmente esperançosa. De facto, parece que a tese se autodestrói. Se somos todos naturalmente bons, como surgiu um tal estado despótico, que origina a corrupção? A resposta mais óbvia é que uns poucos indivíduos ávidos e ardilosos, recorrendo a vários meios ignóbeis, conseguiram tomar o poder. Mas, então se essas pessoas existiam antes do estado aparecer - como é forçoso que existissem nos termos desta teoria - não podemos ser todos naturalmente bons. Por conseguinte, basear-nos até tal ponto na bondade natural dos seres humanos parece extremamente utópico.

Daí que alguns anarquistas mais ponderados tenham dado uma resposta diferente. A ausência de governo não implica que não possam haver formas de controlo social exercido sobre o comportamento individual. A pressão social, a opinião pública, o receio de uma má reputação, e até os mexericos, podem ter influência no comportamento individual. Aqueles que se comportarem de forma anti-social serão votados ao ostracismo.

Além disso, muitos anarquistas reconheceram a necessidade da autoridade dos especialistas na sociedade. Algumas pessoas sabem melhor como cultivar alimentos, por exemplo, e será sensato acatar os seus conselhos. E no seio de qualquer grupo numeroso são necessárias estruturas políticas que coordenem o comportamento ao nível da grande e média escala. Por exemplo, em alturas de conflito internacional, mesmo uma sociedade anarquista precisa de generais e de disciplina militar. O acatamento das opiniões dos especialistas e a observância de regras sociais podem também ser fulcrais em tempo de paz.

Afirma-se que tais regras e estruturas não equivalem a estados, pois permitem que os indivíduos se auto-excluam: por conseguinte, são voluntárias, num sentido em que nenhum estado o é.(…) o estado reivindica um monopólio de poder político legítimo. Nenhum sistema social anarquista, “voluntarista” faria tal.»

Jonathan Wolff, Introdução à filosofia política, Edições Gradiva, pp. 50-52.

1. Quais são as razões apresentadas pelos anarquistas para defender a existência de cooperação, mesmo entre seres egoístas? Como refutaria Hobbes essas razões?

2. Um dos pressupostos do anarquismo é a bondade natural dos seres humanos. Apresente uma objecção a esta concepção da natureza humana.

3. Alguns anarquistas não negam que a organização social implique a existência de determinadas estruturas e regras sociais. Como é que estas se distinguem, então, do estado?

O Estatuto do Aluno: “Baldamo-nos e os professores é que se lixam!”

O governo aprovou recentemente uma proposta de lei que constitui uma revisão do Estatuto do Aluno. Esse Estatuto, ainda em vigor, no que diz respeito à assiduidade significou o fim da reprovação automática por excesso de faltas. Quando atinge um certo número de faltas, o aluno é sujeito a Medidas Correctivas (que consistem quase sempre em fichas de trabalho acerca da matéria leccionada nas aulas a que faltou). Caso falte mais algumas vezes depois de fazer as Medidas Correctivas, tem de fazer uma Prova de Recuperação. Caso não obtenha aprovação nessa Prova, os professores reúnem-se e discutem se o aluno deve ou não ser excluído. Nas várias fases desse processo, o professor de cada disciplina e o Director de Turma trocam vários documentos informativos, tendo também o Director de Turma que informar por escrito o Encarregado de Educação. Não sei se isso se passa em todas as escolas, mas na minha, antes da realização de Medidas Correctivas e de Provas de Recuperação, o professor tem de apresentar um documento escrito ao aluno com a data e este assina declarando que tomou conhecimento.

A experiência de muitos meses mostra aquilo que o simples bom senso permitia perceber a priori: as Medidas Correctivas e as Provas de Recuperação não têm nenhum impacto positivo na aprendizagem dos alunos e não dissuadem os alunos pouco empenhados de faltar. O seu único efeito tem sido sobrecarregar os professores com trabalho inútil (muitas vezes fora do seu horário) e desviá-los do que realmente importa: lerem, pesquisarem e prepararem boas aulas. Uma colega contou-me que, no início da implementação do Estatuto do Aluno, ao explicar aos alunos o seu conteúdo, um deles, particularmente perspicaz e desbocado, disse: “Boa! Nós faltamos e os professores é que têm o trabalho… Baldamo-nos e os professores é que se lixam!”

Segundo o jornal Público, no preâmbulo da referida proposta de lei é dito que as “Provas de Recuperação (…) acabaram por ser um incentivo para os estudantes darem ainda mais faltas”. O que é falso. O que fez os alunos faltarem mais do que faltavam antes foi o fim da reprovação automática por excesso de faltas. Os alunos pouco empenhados interpretaram isso como uma licença para faltar impunemente. Acabando a reprovação automática por excesso de faltas nenhuma medida impedirá os alunos pouco empenhados de faltar - nem as Provas de Recuperação nem nenhuma outra medida. O Estatuto que está agora a ser revisto desresponsabiliza os alunos e promove o insucesso e o abandono escolar.

A referida proposta de lei determina o fim das Provas de Recuperação (o que é bom), mas não o regresso da reprovação automática por excesso de faltas (o que é mau e anula qualquer outro efeito positivo). Por isso, se a Assembleia da República a aprovar e a proposta se tornar realmente lei, o número de faltas não diminuirá. O que fará o  insucesso escolar aumentar e o abandono escolar aumentar na realidade e diminuir nas estatísticas (pois os alunos faltarão às aulas e não realizarão as aprendizagens e as avaliações, mas continuarão inscritos).

De acordo com a proposta do governo, sempre que um aluno atingir o limite de faltas deverá realizar “medidas de apoio pedagógico diferenciado”. Estas são, ao fim e ao cabo, Medidas Correctivas com outro nome. Não é difícil calcular que serão tão ineficazes como as suas antecessores. Ineficazes pedagogicamente, mas eficazes a sobrecarregar os professores com trabalho inútil e a desviá-los das tarefas realmente importantes. Pelo menos no que diz respeito à assiduidade, a proposta de revisão é quase tão má como o próprio Estatuto.

Se a Assembleia da República aprovar a proposta do governo, os alunos pouco empenhados poderão continuar a dizer: “Baldamo-nos e os professores é que se lixam!” Esperemos, por isso, que os deputados tenham lucidez e bom senso suficientes para rejeitar esta péssima revisão do péssimo Estatuto do Aluno.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Kairos, uma revista de Filosofia da Ciência

O Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa está a criar uma revista intitulada: Kairos - Revista de Filosofia & Ciência.

De acordo com a informação do CFCUL, será uma revista “orientada para a publicação e difusão de textos (artigos, recensões, traduções…) que problematizem, reflictam e esclareçam as diversas relações entre a filosofia e as ciências”.

É também dito que se trata de “uma revista com arbitragem científica”. Se o procedimento for tão exigente como o descrito por Jorge Buescu (ver post O refereeing ou arbitragem científica) é possível que se trate de uma revista interessante e útil.

O primeiro número está previsto para Julho de 2010 e o segundo para Dezembro de 2010. A data limite para candidaturas de textos destinados ao primeiro número é 15 de Maio de 2010. O endereço de recepção de candidaturas de textos é: cfcul@fc.ul.pt.

Mais informações em http://kairos.fc.ul.pt.

O refereeing ou arbitragem científica

«Um trabalho científico de qualquer área, para ser aceite como tal, necessita de ser validado pela comunidade científica, como se deduz imediatamente do critério de falsificabilidade de Karl Popper [ver a propósito o post As teorias científicas são falsificáveis]. Essa validação, independentemente da área científica, processa-se através da peer review, ou aprovação pelos pares. O cientista escreve os seus resultados sob a forma de um artigo - talvez depois de apresentar versões preliminares sucessivamente em seminários locais e em conferências internacionais - que submete para publicação a uma revista profissional da especialidade. Essa publicação tem obrigatoriamente de possuir um sistema de refereeing (que em português poderia traduzir-se por arbitragem), que consiste no seguinte: o conselho editorial está em contacto com centenas dos maiores especialistas mundiais nas matérias cobertas pela publicação e envia o artigo em questão a pelo menos dois especialistas (normalmente três ou mesmo mais), cuja identidade é confidencial e que irão desempenhar o papel de referees.

O trabalho dos referees é, literalmente, o de advogados do diabo. O artigo será cuidadosamente analisado sob todos os pontos de vista, tentando detectar incorrecções ou pontos fracos (ou seja, falsificar os resultados!). No final deste processo, que tipicamente demora meses, elaboram um relatório sobre o artigo com as recomendações relevantes: rejeição, reenvio ao autor para correcções ou aceitação. O editor reenvia então o artigo e os relatórios ao autor e o processo recomeça. Nas revistas mais importantes de certas áreas este pingue-pongue pode durar anos.

Sendo optimista, e admitindo que o artigo foi finalmente aceite, é publicado. Isto não é, no entanto, o final; após a publicação, o artigo será estudado, analisado, as eventuais experiências reproduzidas, etc. Em qualquer destas fases podem encontrar-se erros no trabalho; no caso de isso acontecer, não terá qualquer validade científica e espera o cientista o maior opróbrio de todos: a suprema humilhação da retratação pública.

Apenas depois de passadas todas estas fases o artigo é considerado aprovado pela comunidade científica e aquilo que descreve pode ser considerado conhecimento legitimamente científico.

Esta descrição exaustiva tem o objectivo de explicar a seguinte afirmação. O valor científico de um artigo publicado, nem que fosse por Albert Einstein, numa publicação sem sistema de refereeing e peer review é nulo. Isto é uma afirmação com a qual 100% dos cientistas estão de acordo: em termos de avaliação da sua carreira científica, sabem por experiência própria que as publicações não validadas pela comunidade científica através do refereeing valem zero. São meras opiniões, talvez interessantes, mas com tanto valor científico como o editorial do jornal de domingo.

É um sistema rigoroso? Sim. É um sistema injusto? Não. Este mecanismo foi desenvolvido ao longo do tempo para protecção contra erros de boa fé (e algumas fraudes de má fé) com que a ciência se debateu ao longo da era moderna. É, provavelmente, o mecanismo de autocontrolo intelectual mais rigoroso que alguma vez foi concebido - uma espécie de seguro antierros. Relaxe-se o crivo - e os erros começarão a penetrar.»

Jorge Buescu, O Mistério do Bilhete de Identidade e Outras Histórias, 9ª edição, Gradiva, Lisboa, 2004, pp. 14-15.

Este texto faz parte do prefácio do livro. Este inclui diversos pequenos textos onde o autor procura, numa linguagem clara e rigorosa acessível a não especialistas, responder a questões como: “O que significa aquele misterioso algarismo que se segue ao número do bilhete de identidade? Qual é a relação do jogo Minesweeper com o problema mais importante da matemática? O que é a teleportação quântica? Por que é falso e completamente absurdo o mito segundo o qual os seres humanos ‘usam apenas 10% do seu cérebro’?” Ou seja: divulgação científica de grande qualidade.

Clique aqui para ler mais acerca de O Mistério do Bilhete de Identidade e Outras Histórias.

O Mistério do Bilhete de Identidade e Outras Histórias Jorge Buescu

domingo, 25 de abril de 2010

Salgueiro Maia e Sócrates

salgueiro-maia 25 de Abril
Salgueiro Maia

Aquele que na hora da vitória
respeitou o vencido

Aquele que deu tudo e não pediu a paga

Aquele que na hora da ganância
Perdeu o apetite

Aquele que amou os outros e por isso
Não colaborou com a sua ignorância ou vício

Aquele que foi «Fiel à palavra dada à ideia tida»
como antes dele mas também por ele
Pessoa disse

Sophia de Mello Breyner Andresen, Musa, 3ª edição, Editorial Caminho, Lisboa, 1994, pág. 17.

“Aquele que amou os outros e por isso / Não colaborou com a sua ignorância ou vício”… Estas palavras de Sophia de Mello Breyner Andresen acerca de Salgueiro Maia, um dos protagonistas do 25 de Abril, aplicar-se-iam igualmente bem ao filósofo grego Sócrates e a qualquer outra pessoa interessada na verdade e no conhecimento – filósofos, cientistas, artistas, etc.

Dizê-lo não diminui a grandeza de Salgueiro Maia. Antes pelo contrário. Com efeito, se Salgueiro Maia é - em Portugal - um símbolo da conquista da democracia e da liberdade política, Sócrates é um símbolo universal do pensamento crítico e da liberdade de pensamento.  

Outra semelhança entre ambos, embora muito menos importante, é o facto de o reconhecimento do seu valor ter sido principalmente póstumo. Sócrates morreu vítima de uma acusação falsa e de um julgamento injusto. Salgueiro Maia morreu quase na miséria e sem as honras que os seus feitos justificavam.

A democracia é um regime político imperfeito e incapaz de impedir totalmente a ocorrência de injustiças. Por exemplo: quando Sócrates foi condenado à morte e executado existia um regime democrático em Atenas; Salgueiro  Maia contribuiu para a implementação da democracia em Portugal e essa mesma democracia ignorou-o e não reconheceu o seu valor. Mesmo assim, as injustiças numa democracia são muito menos frequentes do que noutros regimes políticos. Acresce que numa democracia existem mecanismos para corrigir as injustiças que não existem noutros regimes políticos. Por isso, vale a pena celebrar o 25 de Abril.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Devemos acomodar-nos ou pensar por nós próprios?

 image Fotografia de Gérard Castello Lopes.

“(…) É tão cómodo ser menor. Se eu tiver um livro que tem entendimento por mim, um director espiritual que tem em minha vez consciência moral, um médico que por mim decide da dieta, etc., então não preciso de eu próprio me esforçar. Não me é forçoso pensar, quando posso simplesmente pagar; outros empreenderão por mim essa tarefa aborrecida.

Porque a imensa maioria dos homens (…) considera a passagem à maioridade difícil e também muito perigosa é que os tutores de boa vontade tomaram a seu cargo a superintência deles. Depois de, primeiro, terem embrutecido os seus animais domésticos e evitado cuidadosamente que estas criaturas pacíficas ousassem dar um passo fora da carroça em que as encerraram, mostram-lhes  em seguida o perigo que as ameaça, se tentarem andar sozinhas. Ora, este perigo não é assim tão grande, pois aprenderiam por fim muito bem a andar.”

Kant, “Resposta à pergunta: que é o Iluminismo?” em Paz perpétua e outros opúsculos, tradução de Artur Morão, Lisboa, 1992, Edições 70. pp 11-12.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

quarta-feira, 21 de abril de 2010

O senso comum não basta para compreender o mundo

A Gente Não Lê

(Composição: Carlos Tê / Rui Veloso)

Ai Senhor das Furnas
Que escuro vai dentro de nós,
Rezar o terço ao fim da tarde,
Só p´ra espantar a solidão,
Rogar a Deus que nos guarde,
Confiar-lhe o destino na mão.

Que adianta saber as marés,
Os frutos e as sementeiras,
Tratar por tu os ofícios,
Entender o suão e os animais,
Falar o dialecto da terra,
Conhecer-lhe o corpo pelos sinais.

E do resto entender mal,
Soletrar assinar em cruz,
Não ver os vultos furtivos,
Que nos tramam por trás da luz.

Ai Senhor das Furnas,
Que escuro vai dentro de nós,
A gente morre logo ao nascer,
Com olhos rasos de lezíria,
De boca em boca passando o saber,
Com os provérbios que ficam na gíria.

De que nos vale esta pureza,
Sem ler fica-se pederneira,
Agita-se a solidão cá no fundo,
Fica-se sentado à soleira,
A ouvir os ruídos do mundo,
E a entendê-los à nossa maneira.

Carregar a superstição,
De ser pequeno ser ninguém,
E não quebrar a tradição,
Que dos nossos avós já vem.

terça-feira, 20 de abril de 2010

Enganar por amor

“Sentaram-se diante da fogueira e comeram as últimas bolachas de água e sal e uma lata de salsichas. Numa bolsa da mochila ele encontrara um pacote de cacau meio cheio, o último que lhe restava, e preparou a bebida para o rapaz e depois encheu a própria caneca de água quente e ficou recostado, a soprar para o bordo.
Prometeste que não fazias isso, disse o rapaz.
O quê?
Tu sabes o quê, papá.
Despejou a água quente para dentro da caçarola e pegou na caneca do rapaz e verteu uma parte do cacau para dentro da sua e depois devolveu-lha.
Tenho de estar sempre de olho em ti, disse o rapaz.
Eu sei.
Quem quebra as pequenas promessas também quebra as grandes. Foi o que tu disseste.
Eu sei. Mas eu não vou fazer isso.”

Cormac McCarthy, A Estrada, Relógio D’ Água, Lisboa, 2007, pp 28-29.

O pai tentou dar a sua parte de cacau ao filho sem ele perceber e levando-o a pensar que o tinha repartido. Tentou, portanto, enganá-lo por amor.

Como podemos avaliar moralmente a acção do pai? Na sua opinião, agiu correctamente ou incorrectamente? E o que diriam Kant e Stuart Mill? Concorda com Kant, Stuart Mill ou com nenhum deles? Porquê?

a estrada cena 338 pai e filho abraço

Na imagem: fotografia do filme A Estrada, baseado no romance homónimo de Cormac McCarthy.

Átomo: um excelente documentário sobre ciência

Este documentário foi produzido pela BBC e emitido em 2007.

O Professor Jim Al-Khalili explica-nos as diversas consequências de uma das grandes descobertas da ciência: a matéria é formada por átomos.

Disponibilizo aqui apenas a primeira parte de cada um dos três episódios, legendados em português europeu. Cada um destes três episódios está dividido em 6 partes (que podem se visionadas no YouTube).

Agradeço ao Rui Barqueiro, do blogue Átomo e Meio, o facto de me ter dado a conhecer estes vídeos.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Quais são as acções que têm valor moral?

Ficha de trabalho - 10ºano

Indique o número correspondente a cada uma das alíneas:

  1. Acção praticada contra o dever.
  2. Acção praticada por dever.
  3. Acção praticada em conformidade com o dever – por interesse.
  4. Acção praticada em conformidade com o dever – motivada por sentimentos.

A. O Godofredo obedece à norma moral: “não roubar” apenas por medo de ser preso.

B. Não minto porque se o fizer, arrisco-me a que o meu namorado já não goste de mim.

C. Há adolescentes que se divertem a maltratar mendigos na rua.

D. Para ganhar o jogo fiz batota.

E. O Abelardo ajudou uma pessoa que se encontrava doente na expectativa de receber uma recompensa pelo seu incómodo.

F. Ajudo um mendigo na rua apenas por ter pena dele.

G. A Guilhermina resolveu falsificar a sua assinatura num cheque para poder ficar com o dinheiro.

H. A Tristana faz doações para acções de caridade apenas para aumentar a sua popularidade entre os amigos.

I. Aristides de Sousa Mendes e Oskar Schindler, durante a segunda guerra mundial, salvaram muitos judeus, fazendo o que consideravam correcto e não o que era mais fácil fazer, nem o que lhes traria mais benefícios.

J. O Gregório é contra a pena de morte por considerar que a vida humana é um valor em si e por isso deve ser respeitada de modo incondicional.

Bom trabalho!

O nosso lugar no universo

sábado, 17 de abril de 2010

O elogio de Péricles à democracia

Num dos seus discursos, elogiando a constituição ateniense Péricles terá dito o seguinte:

“O regime político que nós seguimos não inveja as leis dos nossos vizinhos, pois temos mais de paradigmas para os outros do que de seus imitadores. O seu nome é democracia, pelo facto de a direcção do Estado não se limitar a poucos, mas se estender à maioria; em relação às questões particulares, há igualdade perante a lei; quanto à consideração social, à medida que cada um é conceituado, não se lhe dá preferência nas honras públicas pela sua classe, mas pelo seu mérito; nem tão pouco o afastam pela sua pobreza, devido à obscuridade da sua categoria, se for capaz de fazer algum bem à cidade.”

Tucídides (séc. V a.C)

Ainda que existam diferenças significativas entre o modo como os gregos entenderam a democracia e as democracias actuais, continuamos a identificar, no discurso de Péricles, algumas das características desta forma de governar, por exemplo: a igualdade dos cidadãos perante a lei e o reconhecimento baseado no mérito.

Serão estes atributos do regime democrático, em muitas ocasiões, meros ideais da Constituição, que são ignorados pelos políticos? 

Esta é uma questão que o cidadão comum coloca, de certo, a propósito da implementação de certas medidas que afectam a sua vida.

Vejamos um exemplo: a decisão do actual governo considerar no concurso dos professores a avaliação atribuída no ano lectivo transacto.

A aplicação deste modelo de avaliação foi alvo de uma grande contestação. Esta deveu-se, entre outros motivos, à falta de objectividade e de imparcialidade dos critérios utilizados. A avaliação do desempenho profissional dos professores, dentro de cada uma das escolas, foi pouco transparente e houve da parte dos envolvidos (de muitos) um sentimento de arbitrariedade e injustiça em relação às classificações atribuídas.

Além disso, as diferentes escolas não interpretaram nem aplicaram da mesma forma, e ao mesmo tempo, as directrizes emanadas do ministério da educação. Quando comparamos o que aconteceu, no ano lectivo passado, em escolas diferentes constatamos ter existido uma total arbitrariedade  do ponto de vista administrativo, ou seja, um tratamento desigual das pessoas que se encontravam em situações semelhantes. Onde está a igualdade perante a lei que deve ser salvaguardada num regime democrático?

Será justo, então, as classificações atribuídas – que não permitiram distinguir o mérito profissional – serem um critério para, no concurso dos professores, alguns ficarem com maior graduação profissional e passarem à frente de outros?

Será  este o tratamento igualitário que os cidadãos  devem esperar numa democracia?

Nota: o texto de Tucídides foi traduzido por Maria Helena da Rocha Pereira a partir do grego e pode ser encontrado no livro: Hélade, antologia da cultura grega, 5ª Edição, Coimbra, 1990, pág. 295.

 

sexta-feira, 16 de abril de 2010

A eutanásia deve ser um direito? Porquê?

Critérios holandeses para permitir um acto de eutanásia

Na Holanda, “em consequência de uma decisão tomada, em 1984, pelo Supremo Tribunal holandês, a eutanásia já não é alvo de procedimento criminal em determinadas circunstâncias aprovadas. (…)

A comunidade médica dos Países Baixos [Holanda] estabeleceu critérios que têm de ser preenchidos antes de um acto de eutanásia ser considerado médica e eticamente aceitável. A situação clínica do doente tem de ser intolerável, sem perspectivas de melhoria. O paciente tem de estar racional e tem de pedir, voluntária e repetidamente, a eutanásia ao médico. O paciente tem de estar totalmente informado. Não pode haver outros meios de aliviar o sofrimento e dois médicos têm de estar de acordo com o pedido.”

Sidney H. Wanzer e outros, “A responsabilidade do Médico para com os doentes em estado desesperado”, in: Eutanásia – As questões morais, Organização de Robert Baird e Stuart Rosenbaum, Bertrand Editora, 1997.

 

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Tipos de eutanásia

«Há dois tipos básicos de eutanásia: activa e passiva. A primeira consiste em tomar medidas activas que causem a morte. A segunda consiste em abster-se de usar os meios e oportunidades que impedem a morte. Esta distinção básica não é suficiente; como se verá a seguir, terá de ser enriquecida para dar conta de todos os casos possíveis de eutanásia. Assim, quando se mata activamente a pedido do paciente, estamos perante a prática de eutanásia activa voluntária; quando se mata activamente um paciente que caiu em coma irreversível ou se encontra em estado vegetativo persiste, e o paciente não teve a oportunidade de exprimir esse desejo, estamos perante a prática de eutanásia activa não-voluntária; quando se mata activamente um paciente que exprimiu o desejo contrário, ainda que para seu benefício, estamos perante a prática de eutanásia activa involuntária.

A estes três tipos de eutanásia activa correspondem igualmente três tipos de eutanásia passiva. Deixar morrer alguém a seu pedido é um caso de eutanásia passiva voluntária; deixar morrer alguém que não teve a oportunidade de exprimir esse desejo, dado encontrar-se em coma irreversível ou em estado vegetativo persistente, é um caso de eutanásia passiva não voluntária; deixar morrer alguém contra o seu desejo expresso, ainda que para seu benefício, é um caso de eutanásia passiva involuntária.

São então seis os tipos de eutanásia:

  1. Eutanásia activa voluntária
  2. Eutanásia activa não voluntária
  3. Eutanásia activa involuntária
  4. Eutanásia passiva voluntária
  5. Eutanásia passiva não voluntária
  6. Eutanásia passiva involuntária

Ter em mente os casos possíveis de eutanásia é essencial. Não é possível um debate claro e rigoroso do problema ético da eutanásia quando não se esclarece, à partida, que tipo de eutanásia se discute.»

Faustino Vaz, “O problema ético da eutanásia”, Crítica: Revista de Filosofia.

Deve também distinguir-se a eutanásia do suicídio assistido: neste, embora exista a ajuda de outra pessoa, o acto final é realizado pelo próprio paciente.

terça-feira, 13 de abril de 2010

Caricaturar o profeta Maomé constituirá um abuso da liberdade de expressão?

cartoon sobre Maomé

Um jornal da Dinamarca publicou, em 2005, uma caricatura que representa o profeta Maomé usando um turbante com uma bomba. Milhares de muçulmanos em todo o mundo protestaram nas ruas, nalguns casos violentamente, pois consideraram que o cartoon colocava em causa a honra do profeta. O autor da caricatura, Kurt Westergaard, passou a viver com protecção policial e foi, recentemente (a 01-01-2010 - para saber mais veja aqui), alvo de uma tentativa de homicídio por parte de um  fundamentalista islâmico.

O jornal e o cartoonista em causa fizeram um uso legítimo da liberdade de expressão ou abusaram dela? 

Os meus alunos, André Estêvão e Joana Teixeira do 11ºC, expressaram em relação a esse problema duas opiniões que vale a pena ler.

Ei-las.

O cartoon retrata uma realidade com que se vive hoje em dia: membros de grupos terroristas, como a Al Qaeda por exemplo, explodem consigo próprios em nome da religião e do fanatismo. Depois de anos de atentados frequentes e da guerra no Iraque, Kurt Westergaard caricaturou Maomé, profeta do Islão, representando-o como um bombista suicida.

Stuart Mill defendeu, com argumentos racionais, a liberdade de expressão mas com restrições. Esta não deve, por exemplo, ser usada para incentivar à violência ou para difamar e invadir a vida privada. Assim, considero que o jornal e o cartoonista não fizeram um bom uso da liberdade de expressão, pois ao publicarem esta caricatura de Maomé incentivaram ainda mais à violência os fanáticos e difamaram os crentes não fanáticos. Todos se sentiram insultados por ver o seu profeta retratado deste modo. Milhares de pessoas manifestaram-se, algumas com violência, recusando-se a analisar de forma racional a situação em causa ou a questionar as suas convicções religiosas. Pelo contrário, este cartoon reforçou as crenças de algumas delas e deu-lhes um objectivo novo: vingarem-se em nome de Maomé por este ter sido insultado por infiéis.

Ora, sucede que neste cartoon foram difamados os crentes não fanáticos. Estes crentes mais tolerantes deviam pôr o cartoon em causa, mas explicando porque motivo não se devem atribuir, a todos  os muçulmanos, as características daqueles que são radicais e matam em nome do Corão. Na verdade, podemos apresentar inúmeros contra-exemplos que provam a falsidade desta generalização: há muçulmanos que respeitam as outras religiões, os direitos humanos, os direitos das mulheres e que lutam pacificamente pelo fim do terrorismo.

Concluindo, defendo que Kurt Westergaard e o jornal não fizeram um bom uso da liberdade de expressão. Do meu ponto de vista, seria desejável que houvesse mais reflexão sobre este assunto - por parte dos muçulmanos e das pessoas em geral - e a sua discussão fosse realizada de forma pacífica. Contudo, como sabemos, muitas vezes é difícil questionar as crenças religiosas (desta ou de outra religião) e adaptá-las aos tempos modernos. O problema não está na religião, mas sim nalgumas pessoas que a praticam, pois também existem e existiram fanáticos de outras religiões além do Islão.

André Estêvão, 11º C

A liberdade de expressão significa que temos o direito de dar a nossa opinião relativamente a todos os assuntos e em qualquer lugar. Quando se dá um embate entre o direito à liberdade de expressão e outros direitos que estão legislados o estado deve intervir, impondo limites. Segundo Stuart Mill, a possibilidade de intervenção do estado justifica-se a partir do princípio do dano e só deve ocorrer quando as acções de certas pessoas causam prejuízo a outras. As excepções ao direito da liberdade de expressão são, portanto, o incitamento à violência e a difamação. O que se torna difícil, na aplicação da teoria de Stuart Mill a um caso em particular, é saber se de facto o dano é causado ou não.

Posto isto, as duas questões que se podem colocar relativamente a este cartoon são: Terá sido um abuso da liberdade de expressão a publicação do cartoon por parte do cartoonista dinamarquês? Ou será que a religião islâmica é demasiado extremista e pouco compreensiva relativamente a este género de actos?

Na minha opinião, o jornalista fez um uso legítimo da liberdade de expressão que lhe é concedida no país onde vive, a Dinamarca. Julgo, portanto, que o problema reside nalguns dos princípios da religião muçulmana - tal como é entendida pelos fundamentalistas e muitos outros muçulmanos - onde não existe o direito à liberdade de expressão. Segundo esta religião  não deve ser permitida a publicação de imagens dos profetas, mesmo que estas sejam positivas. Daí o cartoon ter sido visto com maus olhos por parte da generalidade dos muçulmanos, mesmo os não radicais.

Todavia, nos jornais muçulmanos é permitida a publicação de cartoons que ridicularizam a religião cristã e não é por isso que os cristãos se revoltam e tentam matar o cartoonista que os desenhou. Acho, portanto, que alguns muçulmanos (foram milhares os que se manifestaram em todo o mundo pelas ruas) são pouco ou nada tolerantes e aí é que reside o problema.

Devemos nós tolerar a intolerância em nome do respeito por uma cultura e uma religião diferente da nossa?

Penso que não. Muitos dos praticantes desta religião deveriam é tirar partido de situações como esta para perceber que liberdade de expressão é um direito de todas as pessoas. Não faz sentido alguns muçulmanos tentarem impor, àqueles que não partilham a sua religião, restrições que são inaceitáveis numa sociedade democrática, como por exemplo: a possibilidade de um jornal e uma pessoa expressarem livremente as suas ideias.

Tal como Stuart Mill, julgo ser através do confronto de ideias opostas que as pessoas podem aprender, corrigindo os seus erros e alterando ou melhorando algumas das ideias que possuem.

Joana Teixeira,  11ºC

sábado, 10 de abril de 2010

A inutilidade da força

“Se alguém sustentar que os homens devem ser obrigados, a ferro e fogo, a professar certas doutrinas e a seguir esta ou aquela forma de culto (…), se alguém tentar converter os heterodoxos à fé obrigando-os a professar coisas em que não crêem” engana-se. O “fogo e a espada não são instrumentos apropriados para convencer do erro as mentes dos homens e elucidá-los sobre a verdade. (…) Se a verdade não arrebata o entendimento pela sua luz, de nada lhe serve uma força exterior.”

Jonh Locke, Carta sobre a Tolerância.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Ler e discutir acerca da eutanásia

eutanasia--herberth-reis vida ou morte

No 3º período os alunos redigirão (numa aula) um texto argumentativo acerca da eutanásia, em que responderão à seguinte questão: “A eutanásia é moralmente correcta ou incorrecta?” Posteriormente, será efectuado um debate na aula.

Para se prepararem os alunos deverão ler o artigo “O erro da eutanásia”, de J. Gay-Williams, e um outro artigo (favorável à eutanásia) cuja fotocópia colocarei na Reprografia da Escola no primeiro dia de aulas do 3º período. O artigo de Gay-Williams pode ser encontrado aqui, na revista Crítica, e deve ser lido nas férias da Páscoa. Essas serão as leituras obrigatórias, mas os alunos poderão fazer outras. Na etiqueta “Ética” da referida revista encontrarão outros artigos úteis e interessantes.

Ao informar os alunos acerca desse trabalho disse que lhes daria a escolher entre dois ou três temas de Ética Aplicada (eutanásia, aborto, direitos dos animais…). Entretanto, depois de pensar melhor, decidi restringir o trabalho à eutanásia para evitar a dispersão e permitir a posterior realização de um debate.

Boas férias!